21.7.09

A nova casa do HMBF:

19.3.09

A nova casa da Maria João:


Maria João

FIM



No fim de tudo dormir.
No fim de quê?
No fim do que tudo parece ser…,
Este pequeno universo provinciano entre os astros,
Esta aldeola do espaço,
E não só do espaço visível, mas até do espaço total.

Álvaro de Campos


Quem não acredita em vidas para além desta sabe nada haver de mais precioso na vida do que saúde e tempo. Com saúde podemos passar o tempo e pelo tempo sem sermos levados por contingências irremediáveis. Quero dizer que os quase seis últimos anos da minha vida foram ocupados, em grande parte, por este acto de partilha que é ter e alimentar um weblog. Em vez de divulgar centenas de poetas e de livros, em vez de cagar postas de pescada, em vez de exercitar a vaidadezinha da escrita como se tivesse algo de importante a dizer ao mundo, eu podia ter coçado as virilhas, podia ter jogado à bola com os putos do bairro, podia ter brincado mais com as filhas, podia ter dormido, podia ter visto mais filmes e lido mais livros, podia ter escrito canções e gravá-las num gravador de quatro pistas para mais tarde ouvi-las e rir-me delas, podia ter estudado alemão e francês, podia ter aprendido os nomes das flores, podia até ter sido atropelado por um cão. Em vez de ter gasto o meu tempo nisto, eu podia ter ocupado o meu tempo naquilo. Diz-me a experiência – 34 anos de vida hão-de servir para alguma coisa – que nada do que acabei de dizer faz sentido, pela simples razão de que viver não tem sentido, muito menos afirmá-lo como se isso fizesse algum sentido. Não acredito no destino, mas não duvido da sorte. Antes de ter um weblog enviava todos os dias um poema aos meus contactos. Fazia-o por e-mail. Transcrevia o poema verso a verso e depois partilhava-o. Se bem sei, a minha mulher guardou-os todos. Tenho um sótão apinhado de livros, CDs, filmes. Olho-os e interrogo-me: para quê tudo isto? Só encontro uma resposta, a mais simples e, talvez por isso mesmo, a mais certa: pelo gozo, pelo prazer, porque me sabe bem. Assim como me tem sabido bem ler os outros, sabe-me bem partilhar esse prazer. Assim como me tem sabido bem tomar contacto com isto e com aquilo, sabe-me bem oferecer aos outros esse contacto. Talvez procure sentir-me menos só num mundo que é o meu e que me calhou, não por destino, mas por sorte. Foi com esse espírito que escrevi o primeiro post, foi com esse espírito que comecei a publicar o primeiro blog, foi sempre com esse espírito e guiado pelas atitudes e pelos valores que estão na base desse espírito que resolvi ocupar grande parte do meu tempo partilhando. Por que me vou? Porque enjoei, porque já não tenho paciência, porque sim, porque estou cansado, porque tenho mais que fazer, porque me doem as costas, porque está um belo dia lá fora. Jamais esperei dos outros retribuição que não fosse a de aceitarem esse gesto de partilha tal como ele sempre foi. E foi bom saber que desse lado houve sempre quem o aceitasse, foi bom ter conhecido pessoas, foi bom ter lido pessoas, foi bom ter feito amigos, porque os fiz, foi bom, em suma, merdalhar-me convosco. A Maria João, por exemplo, chegou por causa do Dreyer. Se bem sei, foi o Alexandre Nave quem lhe falou do Universos Desfeitos (a casa onde nos encontrámos pela primeira vez). E como por milagre, isto é, como por palavra, a empatia aconteceu na partilha de um espaço comum. Gostei sempre muito de a ter aqui ao lado, ainda mais quando nos chateámos por causa de umas coisas que eu escrevi e envolviam um grande amigo seu. Acho que esse episódio serviu para que ela e eu percebêssemos que nenhuma cumplicidade se sedimenta sem desassombro, honestidade, frontalidade. Estas qualidades não são fáceis de suportar num mundo em grande parte construído nos bastidores. Acontece que nos bastidores eu sempre disse sim ou não com a mesma clareza com que o disse em palco. E isso custou-me… algumas chatices. No fim, tudo se torna lindo e maravilhoso. Até as coisas mais escabrosas, tipo Lázaros de pacotilha, tramas bovinas, acusações infundadas. As polémicas? São o que há de melhor, consoante sirvam para exercitarmos a retórica e alongarmos o raciocínio lógico. Tudo isto fez deste blog um local de passagem. Tenho consciência disso, assim como tenho consciência do reconhecimento sincero que me foi chegando pelos mais diversos quadrantes. Sem querer discriminar, não posso deixar de agradecer muito particularmente a todos os que me ofereceram mais um pouco de si próprios enviando-me trabalhos diversos, livros, revistas, CDs, etc.: Alexandre Bonafim, Amadeu Baptista, Ana Salomé, André Sebastião, António Luís Catarino, A. Pedro Ribeiro, Artur Aleixo, Changuito, Constança Lucas, Diogo Vaz Pinto, Eduardo Pitta, Fernando Esteves Pinto, Filipe Guerra, Graça Pires, Hugo Milhanas Machado, Inês Lourenço, João Urbano, Jorge Fallorca, Jorge Garcia Pereira, Jorge Reis-Sá, José do Carmo Francisco, José Miguel Silva, Lais Chaffe, Luís Ene, Luís Filipe Cristóvão, Luís Pedroso, Luís Serguilha, m. parissy, Miguel-Manso, Nicolau Saião, Nuno Costa Santos, Nuno Dempster, Olímpio Ferreira, Paulo da Costa Domingos, Paulo Kellerman, Paulo Moreiras, Paulo Serra, Pedro Afonso, Pedro Sena-Lino, Ricardo António Alves, Rodrigo Miragaia, Rubens da Cunha, Rui Almeida, Rui Manuel Amaral, Rute Mota, Sara Rocio, Silva Carvalho, Sílvia Chueire, Torquato da Luz, Victor Oliveira Mateus, Vítor Nogueira, Vítor Pinto Basto, Vítor Vicente, (peço desculpa se me esqueci de alguém). Agradeço também a todos os que me escreveram ao longo destes anos, muitas vezes pedindo esclarecimentos, fazendo sugestões ou simplesmente felicitando-me pela labuta aqui levada a cabo. Essa labuta não pode obnubilar (que rica palavra!) os colaboradores mais directos, Maria João e Rui Costa, assim como todos os outros devidamente referenciados na coluna do lado. Um abraço especial também para o Álvaro, que um dia me bateu à porta desafiando-me para um livro sem me conhecer de lado algum, e para o Vítor, por ter publicado uma série de posts do Insónia e ir publicar os poemas que o Jorge Aguiar Oliveira aqui foi divulgando em primeira mão. A terminar, duas notas: 1) após a leitura de dois e-mails, resolvi repensar a intenção de apagar os blogs (já comecei a apagar alguns posts da minha autoria e conto apagar mais, o resto manter-se-á tal como veio ao mundo); 2) saúde,




DIA 78

Era para ser só no próximo dia 23 de Julho, quando comemorasse seis anos de blogaria. Mas hoje é o dia 78 do ano de 2009, e é dia do pai. Logo, é um belo dia. Está sol e já não faz tanto vento como ontem. Pelo menos é o que me parece. Este é o meu penúltimo post no Insónia. O último será de agradecimento, talvez ainda hoje, não sei. Os colaboradores e os ex-colaboradores foram avisados há dias da minha decisão. Algumas pessoas amigas também. Como houve quem quisesse guardar para memória futura fogachos do que por aqui se foi passando, resolvi perpetuar a agonia até ao próximo dia 23 de Julho. O tal dia. A verdade é que não consigo. Fico-me por aqui. Os colaboradores, se assim o entenderem, poderão postar o que quiserem. Seja como for, no próximo dia 23 de Julho apagarei tudo. Para já, apago-me a mim próprio. Saúde,

18.3.09

Fragmento #75 – A cidade dos anjos


Voei para Berlim na semana passada e acho que ainda não aterrei aqui no chão; há muito que desejava as asas desta cidade, talvez desde que vi o filme de Wenders e o destino já me tinha pregado partidas engraçadas em relação a ela. Antes de partir, a amiga que tem sido até agora o pretexto para voar para as terras germânicas avisou-me que Berlim é a cidade dos anjos e que no seu enorme espaço encontramos as mesmas pessoas em sítios totalmente diferentes. Desta vez não foi possível encontrarmo-nos na Alemanha e viajei com o meu amigo, contei-lhe esta história antes de aterrarmos por lá e ele não se esqueceu. Assim que iniciámos os nossos passeios nas ruas de Berlim, ele chamou-me a atenção para os transeuntes que reencontrávamos nos locais mais inesperados; alertou-me, por exemplo, que um grupo no metro, sentado ao pé de nós era o mesmo que estava no aeroporto, quando fomos fumar um cigarro lá fora. Eu não me lembrava deles, nem os reconheci. Antes de entrarmos na Filarmónica, para um concerto memorável, chamou-me a atenção para uma personagem que já tinha visto num outro ponto da cidade, afirmando que se tratava de um anjo. Fiquei um bocado triste, senti que não tinha capacidades para reconhecer anjos, sendo assim despassarada, nem os vejo. Mas nessa noite, após o concerto, fui eu que reparei numa situação insólita: no metro, estávamos os dois de pé, junto à porta no interior de uma carruagem com bancos laterais e vi dois homens sentados frente-a-frente abraçados, impedindo a passagem pelo corredor; algo os unia de tal forma que permaneceram assim sem dar pela paragem da máquina na estação. Os outros passageiros não olhavam para o que se estava a passar, mas eu não conseguia parar de olhar e fiquei de tal modo perturbada, que não tirei a máquina da mala para fazer uma fotografia, apesar de desejar. Quando saímos, o meu amigo chamou-me tonta por não ter coragem de fotografar algo tão belo, achou que eles não se iriam importar, poderia oferecer-lhes depois a fotografia; continuei a espreitar pela janela da carruagem aquele abraço intenso que não se desfazia e disse-lhe que sentia aquele instante como símbolo da reunificação, da queda do muro de Berlim, como uma ressurreição. No dia seguinte, encontrei pela primeira vez um anjo, estava sozinha e ele acenou-me no interior do Museu Judaico dizendo: Don’t you remember? Era um homem que de manhã me tinha ajudado no metro, quando estava a tentar tirar um bilhete na máquina; reparei nele a falar em alemão com outra pessoa na máquina ao lado, porque se virou para mim e explicou-me em inglês que tínhamos de comprar o bilhete num quiosque, as máquinas estavam avariadas. Segui-o e já no quiosque perguntou-me qual era a minha nacionalidade, quando disse portuguesa sorriu com ar simpático, mas não lhe dei conversa. À tarde, no museu, se não acenasse, não o via de certeza e só o reconheci quando falou. Fiquei então com a impressão de que só dou por anjos se falarem comigo, porque tenho sempre a cabeça no ar. A propósito de cabeça no ar, fotografei vários anjos com o céu de Berlim.

Maria João

DIA 77

Tagged e hi5, uma praga que me invade diariamente a conta de e-mail. Passo os olhos pelos perfis, interrogo-me sobre o porquê dos convites e entrego-me à estupefacção. Sigo para o blog, percorro os followers e ainda mais estupefacto fico. De onde vêm, quem são, ao que vêm, será que existem mesmo? Será que eu existo? Chapam-me com os Pop Dell'Arte no Big Show Sic. Isto não se faz a um homem sensível. A vida não faz sentido. Um mero desabafo. Os desabafos suspendem-nos do mundo. Na verdade, neste momento, só tenho olhos para as alças que permitem mostrar as tatuagens e denotam alguma preocupação com o bronzeado. A Primavera está a chegar. As alças são belas, tão belas como os decotes, e estão bem penteadas, até as rastas se apresentam meticulosamente penteadas, com óculos de sol de hastes bem largas, não vão as lentes cair pelo rosto abaixo revelando um olhar amargo, ávido e triste. Eu amo a Primavera. As alergias são mero disfarce.

17.3.09

A LEI DA METAMORFOSE

E este é o maior elogio que se pode fazer a uma obra: nunca mais o burro foi o mesmo depois de Platero y yo ter sido lido; nunca mais as baratas foram as mesmas depois de Adília as ter metido em verso; nunca mais a mosca foi a mesma depois de O’Neill; nunca mais os porcos depois de Animal Farm; nunca mais o lobo foi o mesmo depois de, ainda em criança, me ter sido contada a história de Pedro e o Lobo; nunca mais o peixinho vermelho foi vermelho depois de Herberto; nunca mais a baleia depois de Herman Melville; nunca mais tanta bicharada foi olhada do mesmo modo depois de Esopo e de Ovídio e de La Fontaine e de Ambrose Bierce; nunca mais o rinoceronte após Ionesco ou as vespas após Aristófanes ou as moscas após Sartre; nunca mais senti os pássaros da mesma maneira depois de ter visto o filme de Hitchcock ou o tubarão depois de Spielberg; nunca mais os cisnes depois do lago; o rato depois de Mickey; nunca mais tanta coisa foi a mesma depois da lei da metamorfose. Mas do que eu gosto mesmo, mesmo, mesmo é do crepúsculo, de figuras como o Minotauro, o vampiro, o lobisomem ou dessa magnífica figura que é o centauro. E é o canto das sereias aquele que mais me atrai neste mundo.

DIA 76

Adormeci a ver um programa chamado Prós & Contras. A última imagem de que me lembro é a de um homem chamado Mira Amaral a babar-se. Acordei a pensar que morrer não há-de ser muito mau se o pó for de qualidade.

16.3.09

CORRENTES PUXAM CORRENTES

A Sofia Loureiro dos Santos deixou-se levar pela corrente e eu mergulho que nem doido na correnteza. A ideia é retirar “das pilhas periclitantes que se derramam atrás das portas, encostadas às paredes, aquelas pequenas gotas de alma que ficam connosco, mesmo quando nos esquecemos delas”. Ofereço:

VITA BREVIS

A vida é breve mas que a faz mais breve
não é morrer-se nem morrer quem foi
connosco nela espaço forma e tempo.
Que mais que a morte a humanidade encurta
e torna mais estreita a nossa vida.
Só brevemente e por um breve instante
seu corpo nos concede. E brevemente
é que pensar deseja que existimos.
Antes de mortos, antes de sozinhos
e apenas visitados de memórias,
já todos somos um jornal antigo
deitado fora sem sequer ser lido,
ou somos uma imagem desenhada
na borda do passeio em que se exibem
pisando-a com os pés que desenham
seus mesmos rostos que outros pés já pisam.
A vida é breve, breve, mas mais breve
quanto a quer breve a estupidez humana
fiel ao tempo ainda em que de espaço
o tempo se fazia e o pouco espaço
na terra imensa a todos não chegava.


5/1/1971

Jorge de Sena, in Poesia-III, Edições 70, pp. 139-140, Agosto de 1989. [Vão 20 anos sobre esta edição. Nas livrarias, raramente avisto os versos do Mestre. Raramente é nunca desde as Dedicácias para cá.]

APRENDER A CONTAR #76

O meu nome atravessou sete gerações de homens com o mesmo nome. Cada um desses homens pôs o nome do pai ao primeiro filho. Porém, as mães tratavam os filhos pelos seus diminutivos, para que não houvesse confusões quando fosse preciso chamar pais e filhos, que trabalhavam lado a lado, nos campos, com trigo pela cintura.
Os filhos, contudo, acabaram por acreditar que os seus verdadeiros nomes eram os diminutivos que ouviam atravessando os campos e respondiam a esses diminutivos, construindo ideias sobre si mesmos baseadas neles. Não faziam a mínima ideia de que o seu nome verdadeiro e legal estava adormecido, à sua espera, num qualquer papel, em Chicago, que seria esse nome que teriam de acrescentar a «Mr.» e que seria com esse nome que, um dia, haveriam de morrer.

2/1/80
Holllestead Vallcy, Ca.

Sam Shepard (1943), in Crónicas Americanas, trad. José Vieira de Lima, Difel, p. 60, 1982.

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DIA 75

Estranho sonho: uma loura de lábios rubros levava ao rubro um palhaço triste confeccionando-lhe um felattio (o corrector do Word propõe Felício, Flávio, falácia, falécio, felicito, filhito). Subitamente a mastodôntica do palhaço descolou-se do baixo dentre e colou-se à boca da loura, a qual, sufocando, apenas conseguia proferir sons imperceptíveis (há um termo técnico que agora me escapa) do género: uhh, nhum, uão, nhen, nhem, umm, huomm… Afinal a coisa era de borracha. Debaixo escondia-se minúsculo membro, o que explicava a tristeza do palhaço. Em redor do número, a canalha, com sorrisos de orelha a orelha, rostos muito pálidos, cabelo eximiamente penteado, aplaudia os grunhidos (continua a escapar-me o termo técnico) da loura.

15.3.09

Labirinto #37


Peter Eisenman, Memorial aos Judeus Mortos da Europa, Berlim

Maria João

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APRENDER A CONTAR #75

A HORA DECISIVA

Não havia saída para o tédio e as escaramuças continuavam na cidade, dia e noite. A conquista da tranquilidade só era possível através da cobardia: fugir, fechar os olhos, não se preocupar senão com as insignificâncias da vida mais quotidiana. Os donos do poder, fantoches de palha a rebentar de vaidade, esmeravam-se em praticar a solenidade ridícula. Cada dia que passava tornava mais manifesta a ruidosa e mal dissimulada corrupção em que viviam. Como se isto não bastasse, as mulheres amadas ausentavam-se, deixavam de escrever e de telefonar, não se sabia onde procurá-las. Perdido de si mesmo na selva das ruas ou no isolamento do quarto, o herói da novela sentia o chão fugir-lhe debaixo dos pés. Apetecia-lhe desaparecer, ir viver em silêncio, próximo da verdade, até chegar a hora decisiva e definitiva da morte. Continuavam a chamar pelo seu espírito desolado as imponentes cadeias de montanhas do Norte. Na sua solidão, pensava, poderia conhecer enfim a mais pura essência do ser, esse enigma que perseguimos com ardor. Ou seria apenas uma última ilusão?
Ia deitar-se, noite adiantada, esperando que o dia seguinte tornaria menos odiosos os ingratos, os caluniadores, os ambiciosos sem escrúpulos e todos os mentirosos e oportunistas. Adormecia com esforço. Enquanto dormia ausentava-se do palco da vida e no sonho visitavam-no às vezes as imagens inocentes da felicidade infantil.

João Camilo (1943), in O Som Atinge o Cimo das Montanhas, OVNI, p. 39, Outubro de 2006.

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DIA 74

Sei de tipos muito castos, julgam que as mulheres que têm em casa não merecem na cama o mesmo tratamento das putas. Um deles disse-me uma vez que ia às putas porque jamais conseguiria fazer com a mulher o que uma puta lhe faria. A puta presta um serviço, esperemos que a mulher não. Eu disse ao tipo que paixões demasiadamente refreadas provocam estados mentais delirantes e perturbados. Nele, isso tornava-se explícito naquele comportamento gralhado. Ele ficou muito ofendido e hoje, sempre que passa por mim, assobia para o lado. Piu, piu, piu, piu.

14.3.09

DIA 73

Acordamos mortos num dia caloroso de quentinho e pensamos: é um alívio. Mais sério que isto, ser simplesmente o riso da poeira a assentar enquanto algures um homem de pescoço apertado pelo nó da gravata agradece a si próprio a existência que não está nas suas mãos. Reagir ao empolamento e à importanticidade sumamente ridícula, dizia O’Neill. Não serei eu a fazer-lhe a barba.

APRENDER A CONTAR #74

APARA-LÁBIOS

Ela marca-o a baton carregado. Ele diz "limpa-me a Marilyn", deixa cair o cigarro para o canto da boca. Ela diz "não olhes para mim com essa carinha de Jimmy". Então ele dobra o músculo pelo vinco da tatuagem e ela escolhe na máquina dos discos um Elvis dos antigos, pensa para dentro "quanto mais difícil, mais romântico". Ele monta com um ar viril na Harley e acelera parado, ela julga que ele vai fazer algum disparate por causa dela e deixa cair uma alça da blusa. Olham fatais um para o outro e no compasso de espera um repórter aparece: "o que é que vocês pensam do amor?". Ele olha para o repórter com um ar ameaçador e diz "não chateies, estamos a amar, não vês?, não temos tempo de falar sobre isso, e se não sabes o que isso é, ama, ama para aí". Ela, para não lhe ficar atrás — excepto na Harley — põe um ar altivo, fixa-o fulminante e diz "Baby, leva-me à Foz". Ele diz "sobe", arrancam os dois, o repórter esfrega as mãos de contente, contribuiu para um Love, Love Me Do, regista no gravador portátil uma frase: "A vossa mala diplomática é o tesão fechado na braguilha". E depois vai ter com a namorada: "Honey, hoje fiz uma bela acção e desisti da reportagem que queria fazer".

Joaquim Castro Caldas (1956-2008), in Convém Avisar os Ingleses, Quasi Edições, p. 81, Março 2002.

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13.3.09

DIA 72

Prenderam dois cachorros a um colchão velho e pegaram-lhes fogo. Sentaram-se no passeio a observar impassivelmente o espectáculo. Nem o desesperado ganido dos bichos, nem o cheiro da carne em chamas – de resto, tão semelhante ao cheiro de borracha queimada que nem dá para notar a diferença – os demoveu. Eram apenas pequenos inquisidores com os olhos postos na vingança de um… lastimável abandono.

12.3.09

PÁGINA 161

Acontece, caríssima Sofia, também por primorosa desarrumação, que à medida do braço estendido eu tenho vários livros. Raramente esses livros atingem as 161 páginas. É o caso, pelo que se constata estar cara a poesia. Nem mesmo A Loucura de Deus, de Peter Sloterdijk, ou o Elogio da Intolerância, de Slavoj Zizek, se dignam ir além das 139 e 148 páginas respectivamente. Estão os dois a olhar para mim aqui do lado direito, por cima da Félix Culpa de Clara Pracana, este sim, com mais de 300 páginas, e o Sud-Express... Se começo a falar do que espera nunca mais me calo, pelo que o melhor é ir adiantando que nada disto ainda foi lido. Meto as unhas, então, ao Adeus à Razão, de Paul Feyerabend, neste momento servindo de base a Os Nomes, de Gastão Cruz, e às maravilhosas 535 máximas, de Eastwood da Silva. O resultado é esquisito, mas cá vai. A quinta frase da página 161 de Adeus à Razão é um parêntesis:

(Mais tarde, Aristóteles restituiu características importantes do pensamento antigo e conseguiu, assim, uma síntese admirável do senso comum e da filosofia abstracta.)

Paul Feyerabend, in Adeus à Razão, trad. Maria Georgina Segurado, Edições 70, Janeiro de 1991, p. 161.

Passo a bola à Ana Salomé, ao Rui Almeida, ao manuel a. domingos, ao Lourenço Bray e à Rute Mota.

DIA 71

Bartleby gostava de atrair as atenções. Por isso preferiria de não. Herberto não gostava de atrair atenções. Por isso atraía. À atenção dos desatentos, Belo lembrava: «se toda a gente nos lesse, seriam nove milhões. Ora treze milhões nasciam há uns tempos por ano na China. Qualquer dia serão 1500 milhões». E ainda ontem o novo livro da Stephenie Meyer remeteu para o backoffice dezenas de livros com pouco mais do que uma semana de vida. Portanto: «Trahit sua quemque voluptas. A cada um a sua propensão: a cada um também o seu objectivo, a sua ambição, se quiserem, o seu gosto mais secreto e o seu mais claro ideal». Tal como diria Adriano pela boca da rainha Yourcenar.

11.3.09

ESQUECIMENTO

Esse de quem eu era e que era meu,
Que foi um sonho e foi realidade,
Que me vestiu a alma de saudade,
Para sempre de mim desapareceu.

Tudo em redor então escureceu,
E foi longínqua toda a claridade!
Ceguei... tacteio sombras... que ansiedade!
Apalpo cinzas porque tudo ardeu!

Descem em mim poentes de Novembro...
A sombra dos meus olhos, a escurecer...
Veste de roxo e negro os crisântemos...

E desse que era meu já me não lembro...
Ah! a doce agonia de esquecer
A lembrar doidamente o que esquecemos!...



Florbela Espanca nasceu em Vila Viçosa a 8 de Dezembro de 1894. Concluído um curso de Letras em 1917, inscreveu-se no curso de Direito. Em 1919 publica Livro de Mágoas. O Livro de Soror Saudade é publicado em 1923, depois de um segundo casamento. Sofre o segundo aborto involuntário, divorcia-se, casa-se pela terceira vez. A morte do irmão Apeles agrava-lhe os sintomas anteriormente diagnosticados de desequilíbrio mental. Escreve As Máscaras do Destino. Suicida-se a 8 de Dezembro de 1930, praticamente desconhecida do grande público.

DIA 70

Há os que partem a pedra, os que limpam o pó e os que assinam a obra. Ou, como diria Eastwood da Silva:

«Nas fábricas, nos campos, nos escritórios, nos barcos, nas escolas, nas pequenas oficinas, nos hospitais, nos quartéis, nas prisões, nos postos de venda, nas obras, nos armazéns, é justamente considerado como um grande porco aquele que passa a vida a pregar umas coisas e depois faz outras». (&etc., Outubro de 1999)

10.3.09

ESTRANHA CRIATURA

Para o Diogo Vaz Pinto,
atacado pelo desencanto,
no desespero e na frustração.


O teu comentário fez-me pensar em imensas coisas, mas a primeira que me veio à memória foi mesmo a figura obscura do padre Jean Meslier (1664 – 1729). Se não conheces a história, eu tentarei contá-la sem o estro que ela merece mas com honesta humildade. Este solitário enteado de Deus nasceu numa aldeia das Ardenas. Filho de um comerciante, acabou ordenado padre de Étrépigny. Ninguém poderia prever o que a morte revelou: um ódio impróprio de um servo, um servo sem Senhor que levou toda uma vida na mais inimaginável hipocrisia. Ao mesmo tempo que ouvia confissões, enquanto rezava missas e administrava sacramentos, este “padre sem Deus” depositava na folha a sua mais autêntica virulência, as memórias que um dia viriam a escandalizar o mundo dos comedidos tementes a Deus. Naquele tempo não havia Internet onde pudesse um homem vomitar suas memórias. Também ainda não tinham inventado os recuperadores de calor. O que havia era uma implacável fogueira ávida de ímpios, ou seja, de homens que pensassem pela sua própria cabeça, sem medo, desprendidamente, sem concessões; havia, simplifiquemos, uma maior facilidade em fazer calar as vozes incomodativas, desenfreadas, demoníacas, num certo sentido baudelairiano do demo, as vozes desprevenidas; havia uma relação metafísica entre as causas e os efeitos, o que impelia os incautos a várias cautelas e continha os arrebatamentos das mentes impuras (impuro não era apenas o que não fosse branco, eram todos os que questionassem o branco mesmo que o branco fosse evidentemente negro). Estou certo de que saberás como eram esses tempos. Avancemos. Durante quarenta anos, pela calada, este homem foi redigindo a sua Memória. Voltaire expurgou-o, muitas falsificações foram surgindo, Diderot terá bebido daquele sangue (não sei, Armand Farrachi diz que sim e eu não questiono a sabedoria de Armand Farrachi), gente diversa começa a citá-lo, para na segunda metade do séc. XIX Rudolf Charles finalmente publicar uma versão verdadeira do vómito que foi a Memória deste padre Jean Meslier. Tornado subitamente precursor disto e daquilo, a verdade é que de Meslier podemos afirmar apenas a revolta subterrânea de um homem SÓ (vai em maiúsculas para se perceber a dimensão de uma palavra tão estupidamente vulgarizada nos dias que correm em poemas de cacaracá), a mesma revolta subterrânea que muito mais tarde emergiu no génio de homens como Sade, Artaud (o mestre do teatro da crueldade), ou mesmo no romantismo de um Byron, de um Percy Bysshe Shelley, entre tantos outros (felizmente para quem os leia). Olha bem para a cor daquele ódio: «desejaria ter o braço, a força, a coragem e a massa de um Hércules para expurgar o mundo de todos os vícios e de todas as iniquidades, e para ter o prazer de abater todos estes monstros de tiranos de cabeça coroada, e todos os outros monstros, ministros de erros e de iniquidades, que fazem sofrer tão impiedosamente todos os povos da Terra. (…) Nunca são demasiados o ódio e a aversão por pessoas que causam sempre tão detestáveis males e que enganam tão universalmente os homens». E aponta a solução: «todos os grandes da Terra e todos os nobres enforcados e estrangulados com as tripas dos padres». Não aprecias a cor deste vómito? Não lhe sentes a beleza da autenticidade? Não te chega ao nariz a fragrância deste amor? Eu penso no padre Jean Meslier sem pretender lições, conclusões, penso simplesmente como quem se limita a senti-lo e dá-me um gozo tremendo, eleva-me o caralho às nuvens saber que, mesmo apodrecendo nas catacumbas, este homem soube sobreviver à fogueira dos seus alvos guardando em mão fechada o eco do seu ódio. Agora por aí anda esse eco, voando nas páginas dos livros e pairando sobre a terra como uma espécie de filtro que nos protege dos caprichos divinos. É assim a vida. Nada sublime, portanto. Daqui a pouco estaremos todos mortos e ninguém deu por nada. Na verdade, já estamos todos mortos. Talvez tu ainda não tenhas dado por isso. Talvez a isso se deva o levares-te tão a sério. Desimportantiza, homem. Mas não sejas injusto. Há uma coisa no teu comentário que me entristece. Acusas: «Vários são os posts onde se levantam insinuações e suspeições podres, ridículas muitas vezes». Diz-me um e eu prometo que me calarei para toda a eternidade. Um só. Um. É que eu sempre te tratei por tu, ao contrário de ti que começaste por me tratar por você. Lembras-te? E diz-me: pensarias o mesmo de mim se eu tivesse gostado da tua revista tanto quanto o intocável Júdice disse que gostou? Eu até pensava que já não visitavas o Insónia, depois de teres deixado de o linkar lá no teu melhor amigo aquando do debate sobre a putativa novíssima geração de poetas que foi sugerida no Ípsilon. E, já agora, por que é que me quiseste oferecer o primeiro número da Criatura? Diz-me se na tua opinião já nessa altura este espaço era um antro de mexericos, uma destilação de fel e de veneno. Não me digas que também te arrependeste. Constato que não me mandaste o segundo número. Ai como te odeio por isso! Fazeres-me gastar dinheiro desta maneira. Não te refreies, Diogo. Afinal, por que andas para aqui a patinar nas caixas de comentários de uma pocilga? Vomita que faz bem. Quando estamos ébrios, o melhor é mesmo despejar tudo cá para fora. Aprende alguma coisa com o teu amado Baudelaire. Vomita, vomita. Não te contenhas, vomita. Fazes muito bem em despejar sobre mim o teu vómito enquanto me acusas de despejar o meu. Olha, eu apaixonei-me pela minha mulher, já lá vão 17 anos, depois de ela vomitar para cima dos meus pés. Não queiras tu que acabe a apaixonar-me por ti.


P.S.: Resta dizer que não me arrependo de uma letra do que escrevi aqui. Voltaria a escrever exactamente o que escrevi, tendo em conta as circunstâncias que motivaram o post. Aliás, estou longe de ter sido o único a dizer o mesmo. Por que será que o Diogo só me censura a mim?

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ONDAS

Não é preciso ler Lipovestsky para perceber que os movimentos de opinião vogam na crista das ondas que vão sendo geradas consoante as marés. Falar neste momento sobre Casanova garante um auditório imediato e momentâneo, o mesmo se aplicando a outros nomes que, sem culpa alguma no cartório, atraem as atenções como a praia atrai turistas. Herberto é sempre motivo de muita conversa e controvérsia, mais ainda se alguém se atrever a pôr em causa o seu estatuto faraónico (experimentem falar de Maria Gabriela Llansol e ninguém vos liga). Em tempos, acontecia o mesmo no mundo do humor português com Herman. Hoje, Ricardo Araújo Pereira centra as atenções. Ao falarmos dele, toda a gente tem uma opinião na ponta da língua, um insulto, se caso disso, uma acusação, se for preciso defender o bravo humorista de críticas menos abonatórias. Sempre garantiram audiência indivíduos como Pedro Mexia e Manuel de Freitas (inspiram opiniões controversas e atiçam os ódios mesquinhos no mundo dos neófitos literatos), José Luís Peixoto e Gonçalo M. Tavares, Miguel Esteves Cardoso, João Pereira Coutinho, etc. E houve a época, ainda antes dos blogs, em que Pedro Paixão andava nas bocas do mundo por tudo e mais alguma coisa. Cronistas, humoristas, escritores, políticos mediáticos, figuras públicas, vivem um constante Big Brother que os transforma em assunto por dá cá aquela palha. Cada qual tem o seu tempo. Depois, a coisa perde interesse. Se eu escrever um texto, um excelente texto, um óptimo texto, um texto perfeito, sobre a Metafísica de Aristóteles, poucos o comentarão. É verdade que é impossível eu escrever um texto perfeito sobre o que quer que seja. Falo em abstracto. Mas se eu escrever duas linhas sobre a onda do momento, é sucesso garantido nas furnas comentaristas. A vida é assim. No tempo de Pessoa não havia nada disto que há agora. Ainda bem. Caso contrário, imaginem só o que teríamos perdido.

DIA 69 (o dia do hipérbato)

Os outros são sempre o inferno. Nós somos sempre os outros dos outros. Isto é, os outros são todos os demais além de mim entre os quais também eu me incluo. Nós somos o inferno. Eu sou o inferno. E só sei que nada sei. Se nada sei nem sei que sei que nada sei. Logo, eu nem sei que nada sei. Não sabendo nada, como posso ser acusado de alguma coisa? Não posso ser acusado de nada porque ajo sempre segundo uma máxima que posso ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal. Sendo tão sadomasoquista quão hedonista, ajo sempre tendo em vista os prazeres do corpo, os quais são impensáveis, do meu ponto de vista, sem a dor que me causam. O meu ponto de vista guia-me as acções não por ser o meu ponto de vista mas por ser aquele ponto de vista cuja universalidade mais me convinha. Em suma: nunca aceito como verdadeira alguma coisa sem a conhecer evidentemente como tal. O inferno apresenta-se-me tão clara e tão distintamente que não posso senão conhecê-lo evidentemente como verdadeiro. O inferno quer dizer os outros. Os outros sou eu. Pum.

9.3.09

O HOMEM DO DIA


Medina Carreira: Quantas pessoas é que nos estão a ouvir? 50 mil?
Mário Crespo: Espero que mais.
Medina Carreira: 70 mil?
Mário Crespo: Hmmmm…
Medina Carreira: Pronto, 100 mil. Sobram 9 milhões e 900 mil que não ouvem nada.


Nota: apesar da televisão ter estado ligada na SIC, a generalidade da entrevista passou-me ao lado. O barulho que as miúdas faziam e a conversa com os sogros, regada por um belo tinto a acompanhar bifes tenrinhos com arroz de ervilhas, não permitiu a atenção que os intervenientes mereciam. Faço-me incluir, pelas razões expostas, nos 9 milhões e 900 mil surdos que à hora da entrevista tiveram mais que fazer do que escutar atentamente o homem do dia. Sobraram fogachos, o que já não é mau.

ANIMAIS

Depois de reler pela enésima vez O Carnaval dos Animais (Rui Caeiro, Letra Livre), regressei a um breve conjunto de epigramas com que resolvi abrir a antologia do esquecimento. Ainda ontem dizia a uma colega que a nossa condição humana é a mais animal e brutal de todas as condições. Só isso explica que prevaleçamos sobre as outras espécies. Trazemos a selva no sangue, mais ou menos oprimida, mas facilmente transpomos as fronteiras da reserva natural que nos confisca os ímpetos instintivos (sejam eles dóceis ou violentos). No fundo, apenas aprendemos a protegermo-nos de nós próprios. Um bocadinho. No primeiro dos dez epigramas tenho um cão, símbolo de uma fidelidade (a canina) só metaforicamente provável. Todo o cão trai o seu dono se aliciado por um suculento naco de carne. Assim os homens, mais que os cães. A diferença é que os homens são donos de si próprios, mesmo quando, subservientes, oferecem a consciência às ordens dos mestres. Por isso, ao contrário do cão que trai o dono, o homem trai-se sempre a si próprio. Segue-se o gato, evocado na figura fleumática da mais invejável das personagens: Garfield. Julgo que todo o felino se faz notar pela forma como marca o território e por uma admirável libertinagem. A ciência do gato é o sonho, daí a sua inegável tendência surrealista. É um animal paradoxal, pois a sua liberdade colide com a necessidade de marcar territórios. Tal como muitos homens, cuja liberdade não se afirma senão confortavelmente acalentada pelos territórios que vão reivindicando à sua volta. Veja-se Breton, o rei dos gatos. Seguem-se sanguessugas, cavalos, pulgas, sereias, lamas, koalas, lobos e, finalmente, o leão. Não gosto de aves, tenho pavor a penas. O meu leão é nietzscheniano. Sigo os ensinamentos de Zaratustra e tento mergulhar as mãos na juba do leão, procuro ultrapassa-me e não espero do leão senão que se mostre enquanto a criança que nunca deixou de ser. Reconheço estar muito longe de conseguir alguma coisa neste meu reino animal. Sempre que mergulho as mãos em alguma coisa as pulgas encontram-me, mordem-me, fico contaminado de alergias, sou bebido até à medula por sôfregas sanguessugas, deixo-me atrair pelo canto das sereias para acabar coiceado por cavalos com orelhas de burro. Não uivo como os lobos, embora cá dentro muitas vezes se faça ouvir esse idioma intraduzível, uma espécie de lamento índio. Entre os ensinamentos de Zaratustra e a realidade, julgo que estou bem para koala: lento e pouco sério / postiço de vitupério / o koala come folhas // segue-lhe o padrão / em ar de meditação / o poeta saca-rolhas. Enfim:

ANIMAIS

Infindável cortejo: formigas, elefantes, homens, chacais
catatuas, salmonetes… todos filhos de Deus, concebidos
à imagem e semelhança do seu inquietante rosto proteico


Rui Caeiro, in O Carnaval dos Animais, Letra Livre, p. 109.

APRENDER A CONTAR #73

PEDRADA

Era uma vez um menino que gostava de atirar pedras à lua.
Quando chegava a noite, refugiava-se nas traseiras do quintal, acariciava as pedras que recolhera durante o dia (para dar sorte) e atirava-as, uma a uma, olhos fixos na lua. Quando sentia o braço cansado, ia para a cama e, exausto, adormecia de imediato.
Mas, um dia, o menino foi viver para a cidade, onde já não podia atirar pedras, pois feriria pessoas, partiria vidros, provocaria estragos (disse a mãe). A partir desse dia, nunca mais o menino conseguiu adormecer com facilidade, como antes. E nunca ninguém descobriu porquê.

Paulo Kellerman (1974), in Miniaturas,
Edições Colibri, p. 36, 2001.

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