31.10.05

Papá, eles não tinham abandonado a política?

Tinham, mas a política não os abandonou a eles.

"INDISCIPLINA" (Cesare Pavese)

"O bêbado deixa para trás as casas estupefactas". Começo algo súbito, o bêbado tem um passado mas é o presente que vamos seguir. Como julgamos saber, não há "casas estupefactas" e isto é uma figura de estilo. Mas realmente: as casas antropomorfizadas não estão habituadas a ver pessoas a andar na rua de tal maneira. O adjectivo "estupefactas" é forte numa frase curta e directa de início de poema e Pavese quer explicar melhor: "Nem todos se aventuram a passear bêbados à luz do sol". O bêbado é distinguido, neste segundo verso, do resto do mundo: é dele que trata o poema, já o adivinhamos. "Atravessa tranquilo a rua", diz Pavese. A ligação do adjectivo ao verbo é mais forte do que seria se a frase fosse "atravessa a rua tranquilo", caso em que o adjectivo seria directamente mais íntimo do sujeito; a vontade de tom coloquial também importará. Ou seja, não somos obrigados a aceitar que o bêbado é tranquilo. Como se verá no decurso do poema, o que mais interessa é a caracterização do movimento do bêbado. Pavese imagina os limites desta forma de abandono e conclui: "poderia entrar pelas paredes dentro". O bêbado, caso entrasse mesmo na parede, fá-lo-ia porque "as paredes estão ali". Não há (não haveria) significado ou objectivo naquela acção: as paredes são, no poema, as fronteiras de inércia de um corpo despreocupado com a parede que o nega. Num mundo feito de álcool as paredes são líquidas e penetráveis, porque em nada há essência (está-se a ser, não se é; com álcool ou sem álcool seria assim, mas variando os filtros das "doors of perception" de huxley).

Mas isto são os quatro primeiros versos do poema. Sem vos maçar mais, passo a transcrever na íntegra o poema:


INDISCIPLINA

O bêbado deixa para trás as casas estupefactas.
Nem todos se aventuram a passear bêbados
à luz do sol. Atravessa tranquilo a rua,
e poderia entrar pelas paredes dentro, pois as paredes estão ali.
Só os cães deambulam assim, mas um cão pára
sempre que sente uma cadela e cheira-a cuidadosamente.
O bêbado não vê ninguém, nem mesmo as mulheres.

Na rua, as pessoas que se perturbam ao vê-lo, não se riem
e gostariam que não estivesse ali o bêbado, mas os muitos que tropeçam
ao segui-lo com os olhos voltam a olhar em frente
com uma praga. Passado que foi o bêbado,
toda a rua se move mais lentamente
à luz do sol. E se uma pessoa começa
a correr, é alguém que não o bêbado.
Os outros olham, sem distinguir, o céu e as casas
que nunca deixaram de estar ali, ainda que ninguém as veja.

O bêbado não vê as casas nem o céu,
mas sabe que estão ali, pois num passo pouco firme percorre um espaço
tão claro como as franjas do céu. As pessoas, embaraçadas,
deixam de compreender o que fazem ali as casas,
e as mulheres já não olham para os homens. Têm
todos, dir-se-ia, medo de que de repente a voz
rouca se ponha a cantar e os persiga pelo ar.
Cada casa tem uma porta, mas não vale a pena entrar.
O bêbado não canta, mas mete por uma rua
onde o único obstáculo é o ar. Felizmente
não vai dar ao mar, pois o bêbado,
caminhando tranquilo, entraria também no mar
e, deixando de se ver, prosseguiria no fundo o mesmo caminho.
Cá fora, a luz seria sempre a mesma.
Rui Costa

Abro a minha boca * e o mar se regozija
E leva as minhas palavras * a suas escuras grutas
E às suas focas pequenas * as murmura
Nas noites em que choram * os tormentos do homem.

Abro as minhas veias * e enrubram-se os meus sonhos
Transformam-se em arcos * para os bairros dos meninos
E em lençóis para as rapari * gas que velam
Para ouvir às ocultas * os prodígios do amor.

Aturde-me a madressilva * e desço ao meu jardim
E enterro os cadáveres * dos meus mortos secretos
E às estrelas traídas * que eram suas
Corto o cordão dourado * pra caírem no abismo

O ferro enferruja * e eu castigo o seu século
Eu que já experimentei * a dor de mil pontas
Com violetas e narci * sos a nova
Faca vou preparar * que convém aos Heróis.

Desnudo o meu peito * e os ventos se desatam
E vão varrer as ruínas * e as almas destruídas
Das espessas nuvens lim * pam a terra
Pra que surjam à luz * os Prados encantados.


Tradução de Manuel Resende.

Elytis

Odysséas Elytis (pseudónimo de Odysseas Alepoudelis) nasceu na ilha de Creta no dia 2 de Novembro de 1911. Pouco tempo após o seu nascimento, a sua família mudou-se para Atenas onde o poeta fez os estudos secundários. A sua primeira aparição poética foi na revista Nova Cultura, em 1935, introduzindo aí um novo estilo que contribuiu para a reforma da poesia grega. A sua primeira obra, Orientações, foi publicada em 1940. A experiência da II Grande Guerra foi especialmente marcante, verificando-se sobretudo em Áxion Estí (Louvada Seja). Elytis publicou várias colecções de poemas e escreveu diversos ensaios sobre os problemas concernentes à poesia contemporânea. Viveu algumas temporadas em Paris (1948-1952 e 1969-1972), frequentando as lições de filologia e literatura na Sorbonne e tomando contacto com os pioneiros da cultura vanguardista (Tzara, Breton, Ungaretti, Picasso, Giacometti, etc). Em 1960 recebeu o seu primeiro prémio de poesia, ao qual se seguiram outros e o Prémio Nobel da Literatura em 1979. Faleceu no dia 18 de Março de 1996.

29.10.05

A RAINHA

Desde a praia do meu sexo
eu te saúde, rainha
da noite e do dia.

Sem ti os meus fogos nada queimam
Sem ti os meus signos nada indicam
Sem ti as minhas edificações me asfixiariam.

Saúdo-te, rainha
do absurdo. E digo-te
e amo-te e assassino-te.

Versão possível de HMBF.

Raúl Gustavo Aguirre
Raúl Gustavo Aguirre nasceu em Buenos Aires em 1927. Ligado ao “invencionismo”, fundador e director da revista Poesia Buenos Aires (1950-1960), desenvolveu aí uma intensa actividade no esclarecimento das vanguardas como teorizador e sistematizador das suas expressões mais importantes. A sua obra, caracterizada por uma grande riqueza de recursos estilísticos e por uma linguagem depurada, iniciou-se em 1945 com El tiempo de la rosa. Do seu legado poético, há ainda que registar Cuaderno de notas (1957), Señales de vida (1962), entre outras. Em 1952 publicou a Antologia de una poesía nueva, onde divulgou alguns poetas novos argentinos. Foi também tradutor de numerosos poetas franceses. Faleceu em 1983.

Os maiores amigos de Bush:

«Não fizemos uma revolução para termos uma democracia.»

«A onda da revolução islâmica irá, em breve, atingir todo o mundo.»

«Israel deve ser apagado do mapa.»

28.10.05

O POST MAIS CHATO DO UNIVERSO

Tenho uma preocupação e percebo que a única maneira de pôr fim a esta preocupação é arranjar outra preocupação maior que me distraia desta, que passará então a ser verdadeiramente uma preocupação menor face à outra que a suplanta. Começado o post desta forma, passo, por enredo lógico, a ter uma preocupação nova: a preocupação de arranjar uma preocupação maior que a do início deste post. Também poderia, penso, preocupar-me com arranjar uma preocupação menor que a presente. No entanto, penso ainda, encontrar preocupações menores parece ser uma impossibilidade estrutural do pensamento, uma vez que a procura de preocupações menores nunca leva a nada menor que a própria preocupação de procurar.

O facto de já quase não me lembrar da preocupação que tenho (que tinha) parece querer dizer que encontrei, finalmente, uma preocupação maior, e, com isto, dou por mim a procurar reveladores sinais de contentamento ou de enfado. Isto preocupa-me, já que a constante procura de preocupações maiores deveria ser uma preocupação menor, considerando que, claramente, ninguém quer passar a vida a saltar de preocupação em preocupação, sempre a subir. Lembro-me, porém, que se esta fosse uma preocupação menor estaria antes de outra- outra preocupação maior- como, por exemplo, acabar este post, sendo esta, nos últimos cinco minutos, a verdadeira e disfarçadamente única
preocupação.
Rui Costa

ADOLPH EICHMANN

OLHOS ………………….........……...…. Normais
CABELO…………….............................. Normal
PESO………………………….............….…. Médio
ESTATURA……………….......……….. Mediana
SINAIS IDENTIFICADORES……. Nenhum
NÚMERO DE DEDOS DAS MÃOS…..... Dez
NÚMERO DE DEDOS DOS PÉS……...... Dez
INTELIGÊNCIA…………………........…. Média

Que esperavam?

Garras?

Incisivos desenvolvidos?

Saliva verde?

Loucura?

Leonard Cohen
Leonard Cohen nasceu no dia 21 de Setembro de 1934 em Montreal, Quebec, Canadá. Poeta, novelista e escritor de canções, é mais conhecido pela sua carreira musical. De ascendência judaica, Cohen encetou o seu percurso poético na McGill University quando, em 1956, publicou Let Us Compare Mythologies ao qual se seguiu The Spice-Box of Earth (1961). Durante a década de 1960 escreveu sobretudo poesia e narrativa, iniciando uma carreira como singer-songwriter já no final dessa década depois de se ter mudado para os Estados Unidos da América. Antes, porém, viveu algum tempo numa ilha grega, onde foi escrevendo algumas das suas obras mais consagradas: Flowers for Hitler (1964) e o romance Beautiful Losers (1966). É hoje considerado um dos mais importantes escritores de canções de todos os tempos. Alguns dos seus poemas podem ser encontrados em português na antologia Filhos da Neve, publicada pela Assírio & Alvim na colecção Rei Lagarto.

Fragmento # 19 – Da música

“Onde encontrarmos algo que se pareça com a música devemos deter-nos; na vida não existe nada que valha mais a pena alcançar do que o sentimento da música, o sentimento de ressonância e de uma vida com ritmo, da justificação harmónica da existência. Onde houver tudo isto, poderá haver ainda coisas por explicar; a verdade é que ainda há muito por explicar em todos nós.”
Hermann Hesse in carta a Ludwig Renner, (publicada em Música, p-169, ed. Difel, Lisboa 2003).

O sentimento de ressonância, de uma vida com ritmo, tem origem intra-uterina, num ambiente aquático que envolve e protege o embrião do ruidoso mundo exterior. Pascal Quinard em La haine de la musique (p-120, Édition Calmann-Lévy, Paris 1996) descreveu o ambiente sonoro do embrião como um “ronronar surdo, doce e grave”. No espaço interior do útero, o coração do feto, sincronizado com a mãe, consente e suporta os pulsares vitais de ambos. A existência intra-uterina tem um constante e grave pano de fundo, comparável a um “sopro surdo”(ibidem) onde existe uma audição longínqua do ruído do mundo exterior, que a placenta absorve e abafa, e sobre o qual apenas se eleva a voz da mãe. A música tem um carácter oceânico, que remete para a existência intra-uterina, para o ritmo interior da intimidade, para a sincronização das pulsões vitais, para um ambiente sonoro e longínquo que harmoniza a existência. A audição intra-uterina é mediada por uma envolvência aquática, que silencia os excessos exteriores, permitindo um sentimento de ressonância, um bem-estar flutuante, um interior propício ao desenvolvimento da vida, ao crescimento e fortalecimento do feto, preparando-o para a turbulência sonora do mundo. Deste modo, é uma iniciação silenciosa, envolvendo a fragilidade da origem, silêncio que também contém ruído no som reconfortante que impõe silêncio em todos os outros ruídos, que impõe silêncio à algazarra informe do mundo. A música que faz tanto ruído também é uma espécie de silêncio - “faz-se silêncio para escutar a música; faz-se silêncio para escutar a melodia do silêncio” (Vladimir Jankélévitch, La musique et l´ineffable, p-172, Édition du Seuil, Paris 1983). A música eleva a sua voz no ruído do mundo, ocupando o espaço vibrante como a voz da mãe se eleva sobre o fundo ritmado e grave no interior do útero. A escuta desta voz familiar e distante impõe silêncio nos barulhos em seu redor porque é um ruído diferente, compassado e melodioso. A música é som ordenado e melodioso, que nasce do silêncio, que vive rodeada dele, transporta silêncio no seu interior, na media em que é alternância organizada de som e silêncio e por fim, retorna ao silêncio. A música requer assim uma forma de escutar e entender privilegiada.

Maria João

Ut pictura poesis # 44 – Anamorfose

HH
Imagem respigada aqui:

Hans Holbein (o novo), Os embaixadores, 1533
Óleo s/madeira, 207x209cm
Nacional Gallery, Londres, EUA


Sobre o pintor:
Maria João

27.10.05

os
psicólogos
queixam-se dos
pais que se queixam
dos filhos que se queixam
dos pais que se queixam
dos psicólogos
dos filhos
!

PEÇA LIGEIRA

Uma estação sem ninguém nas plataformas,
Um banco na avenida e ninguém perto,
Um armazém abandonado,
O fim de uma via de manobras,
Um autocarro vazio,
Um jardim solitário,
Um comboio sem luzes,
A madrugada,
Um oco.
Eu.


Tradução de Joaquim Manuel Magalhães.

José Ángel Cilleruelo
José Ángel Cilleruelo nasceu em Barcelona em 1960. Poeta, narrador e crítico literário, recebeu vários prémios literários. Destaca-se, neste âmbito, o VI Premio Ciudad de Córdoba-Ricardo Molina, atribuído em 1999. Estreado em 1989 com El dom impuro, veio a publicar o segundo livro de poemas apenas seis anos depois: Maleza, Signos, Madrid, 1995. O seu livro mais recente é Formas débiles, de 2004. Como narrador, publicou a novela El visir de Abisinia (2001) e alguns volumes de relatos: Ciudades y mentiras (1998), Cielo y sombras (2001), De los tranvías (2001). Parte substancial da sua obra poética está traduzida para português, pela pena de Joaquim Manuel Magalhães, em Trípticos Espanhóis – 2.º (Relógio D’Água, 2000) e Antologia (Averno, 2005).

Fragmento # 18 – Brinde

Os outros olham-me como alguém sequioso que nunca está satisfeito, mas isso é um ponto de vista romântico. Talvez seja verdade, porque a sede é o desaparecimento do outro e eu não posso conhecer o desaparecimento de mim. Sartre considerava que o inferno são os outros. Nem tanto ao mar nem tanto na terra. Com o lema socrático do auto-conhecimento também se passa o mesmo. Kierkegaard ensinou-me que os outros é uma multidão igual a ninguém, que foi a multidão quem matou Cristo e condenou Sócrates à morte. O outro talvez seja outra questão. E que tal aceita-te a ti próprio? Uma cerveja no inferno. E se for uma para mim outra para o outro? Duas cervejas no inferno formando uma bela dialéctica. E se vier mais uma remetendo para o transcendente?
Parabéns Rimbaud, hoje é o teu aniversário. Obrigado, foste tu que me mostraste que a beleza é amarga. Um dia, Rimbaud, havemos de nos encontrar e beber uma cerveja. O outro disse-me que lhe sussurraste ao ouvido que não perdemos pela demora e a primeira rodada quem paga és tu. Nós brindamos à tua poesia, por isso ainda nos vamos demorar por aqui.

20/10/2004

Maria João

FUTURO

- Conheces bem a obra do Gonçalo M. Tavares?
- Eh pá, não. Ainda só li 524 livros dele.


Rui Costa

Ut pictura poesis # 44– Retrato verde ácido

Bronzino
Imagem respigada aqui:

Agnolo Bronzino, Retrato de Ludovico Capponi, 1551
Óleo s/tela, 117x86cm
The Frick Collection, Nova York, EUA
Maria João

26.10.05

Papá, o que é isto?




- Ele... não sei, mas ela é claramente a Bárbara Guimarães!

Imagens: Expresso, Revista, n.º 1261, Sábado, 28 de Dezembro de 1996.

Rosa Parks (1913-2005)

O HERBERTO HELDER TAMBÉM É PRESIDENTE DA REPÚBLICA

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Alguém ainda julga que o presidente da república é a figura máxima do Estado? A figura máxima do Estado é aquele que consegue alguma espécie de concordância entre a forma como vive e a forma como desejaria que outro qualquer fizesse o mundo se não soubesse a parte dele que lhe iria calhar. A figura máxima do Estado é sempre uma figura mínima, porque é no micro-rigor que as coisas se decidem. Quando alguém diz: "quero estar ao pé de ti como um copo de água" (frase de Joaquim Rocha, retirada do contexto), isto é o mínimo absoluto, estão a ver, e é no limite que as coisas se compreendem. Este texto é um political statement ainda que só uma pessoa lhe dê ouvidos: "não podendo falar para toda a terra, direi um segredo a um só ouvido" (Luiza Neto Jorge).

O poder está em todo o lado (Foucault). A vantagem disto é que a resistência também pode estar. Não é preciso estar "dentro do sistema", como alguns dizem, para o mudar. Ou melhor, dentro estamos sempre: dentro do discurso em que formamos a nossa capacidade de pensar (se até a esta devemos opor resistência(s)). Imaginem o que aconteceria se numa cidade do país, uma só, toda a gente amanhã fosse levar os seus aparelhos de televisão à rua e aí os deixasse, caladinhos, à espera do tractor que os viesse engolir. E que, na semana seguinte, noutra cidade do país, outros fariam o mesmo. Imaginem o que seria amanhã irmos todos ao banco e levantarmos o nosso dinheiro. O que seria se numa cidade ou em mais cidades do país, ou em todas as cidades e vilas do país, isto acontecesse.

Todos os animais são políticos. O poeta é um animal. O leitor também. Mesmo o poeta que lambe as botas do leitor ou o leitor melancólico, enfadado, que espera para ver. Ou o poeta que diz que não está para ninguém e pensa na mãe, como o leitor ou o poeta.

Se calhar só não me matas por ser muito mais forte: sou poeta.

Porque o presidente da república, apesar de não ter muito medo de mim, também.
Rui Costa

LÁGRIMAS

As cristalinas lágrimas vertidas
Pela noite nas águas tenebrosas,
São no abismo profundo convertidas
Em pérolas radiosas…
Mas as pérfidas lágrimas caídas
Desses teus olhos lânguidos e ardentes,
No meu peito amoroso recolhidas,
Só geraram serpentes…

António Feijó
António Feijó nasceu em Ponte de Lima em 1859. Formado em Direito pela Universidade de Coimbra, ingressou na carreira diplomática. Viria a falecer em Estocolmo no ano de 1917. Dez anos depois o governo sueco enviou para Portugal os seus restos mortais. Fundou em 1880 na cidade de Coimbra, com Luís de Magalhães, a Revista Científica e Literária. Colaborou nas revistas Arte, A Ilustração Portuguesa, O Instituto, Novidades, Museu Ilustrado, etc. Poeta parnasiano, afasta-se desta Escola para criar um estilo pessoal, saudosista e não de todo afastado dos símbolos românticos e de um simbolismo que anuncia por vezes o modernismo na poesia portuguesa. Em 1881 publicou Sacerdos Magnus, seguindo-se-lhe Transfigurações (1882) e Líricas e Bucólicas (1884), entre outros. O seu último livro publicado em vida foi Bailatas (1907, sob o pseudónimo de Inácio de Abreu e Lima). ***

Ut pictura poesis # 43– Expressionismo no séc. XVII

Imagem respigada aqui:

El Greco, Lacoonte, 1610
Óleo s/tela, 137.5x172.5 cm
National Gallery of Art, Washington, EUA
Maria João

25.10.05

Fragmento # 17 – Lugar espaço-tempo

Um lugar espaço-tempo é um espaço ocupado por um corpo que é tempo. Mas o tempo é um corpo sem contornos, invisível, que não se define como objecto, não se deixa agarrar, porque é instante contínuo em movimento. O tempo é suspenso no espaço da memória em superfícies translúcidas, assim nos apercebemos, primeiramente, da presença do tempo na nossa existência. Um lugar espaço-tempo só pode ser uma suspensão do tempo num determinado espaço, que poderá ser a memória; porque somos memória contínua, assim conhecemos o mundo e nos relacionamos com ele. Mas o tempo corre, como a água corre na água que corre...
O tempo que decorre ou tempo real é sequencial, instante na memória, ela própria uma libertação do tempo passado. Cronos devora os seus próprios filhos, assim como o tempo nos devora, actuando nos corpos, dando-lhes uma patine muito específica: a patine do tempo. O movimento do tempo deixa rastros, porque os corpos se movimentam no espaço. As acções decorrem no tempo e, deste modo, elas estão relacionadas com o ruído no mundo, com o movimento dos corpos, com o barulho da presença humana na terra. Porque o espaço em si mesmo é silencioso, assim como o tempo é invisível.
Só conhecemos um lugar espaço-tempo quando o espaço suspende o tempo que corre, tocando um outro tempo. É uma pausa, é claro, no ruído do tempo. Noutras palavras, a suspensão do tempo num determinado espaço é uma imagem. Porque conhecemos por imagens, pensamos por imagens, representamos imagens em instantes corporalizados e suspensos num espaço. Por exemplo, estou aqui e agora a tentar descrever um lugar espaço-tempo através das palavras, que são representações, são imagens que podemos ler. As palavras são um corpo que se movimenta num determinado espaço, neste caso, a página de papel. As palavras são acções no tempo e a escrita suspende as acções ao representá-las na página de papel em imagens. As imagens comportam sempre um determinado silêncio, que é anima. A escrita é uma sucessão de som e silêncio materializado em imagens, um fluxo ritmado que se assemelha à vida. A vida é o mistério do tempo, por isso um lugar espaço-tempo é um espaço ocupado com algo que se assemelha à vida, contendo passagens de vidas em rastros, presenças ou ausências.
Como se descreve um lugar espaço-tempo? Através da representação de imagens. As imagens são corpos em movimento, assim as representamos através da escrita, ou através do cinema. São presenças possíveis, no entanto, apenas devido à ausência do mundo, reflectem o silêncio do mundo, da realidade onde o tempo está a decorrer. A imagem é uma ausência do mundo, porque toca o outro tempo, por isso contem uma verdade primeira, que é o facto de ser. Ela é antes de tudo, a imagem.

Maria João

Ut pictura poesis # 42– Intimidade

Imagem respigada aqui:

Joan Semmel, Tocar, 1977
óleo s/tela Galeria Matthew Marks gallery, Nova York, EUA

Sobre a pintora:
Maria João

24.10.05

Qual deles será o Diniz Maria?

Cavaco & os Netos

POEMA A TODOS OS SERES QUE USAM NICKS E ABREVIAGENS E SÃO ANÓNIMOS

Vão prá
p. q. v. p.
diriam
vocês,
aliás,
vocês não
dizem
nada
porque
não existem
são sombras
acabrunhadas
de flores
de papel
tristes
de embrulhar
medo
merda
por isso
vos digo
à minha maneira
encolham-se
ainda
um pouco mais
e voltem
ao sítio de onde
não deviam ter
saído
assim: a
puta
que vos
pariu

Rui Costa

EXORCISMO

o sangue o suor
a água lustral
o leite do sol
retido na mama
o sangue sangrando
com o vinho
o pranto o rito
líquido o vinho
tinto no mijo
de deus no sangue
descendo na urina
subindo água
benta no sangue
o filtro do amor
filtrando o suor
um licor dividindo
o choro do pus

Luiza Neto Jorge

Luiza Neto Jorge nasceu em 1939 em Lisboa. Poeta e tradutora, frequentou a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, mas desistiu do curso e foi viver para Paris, onde permaneceu durante oito anos (1962-70). Ainda hoje é considerada a personalidade de maior destaque do grupo de poetas que se reuniu em torno de Poesia 61, no âmbito do qual publicou Quarta Dimensão. Não foi essa, todavia, a sua estreia literária. O primeiro livro foi Noite Vertebrada (1960), a que iria seguir-se uma obra escassa mas de obrigatória referência. Como tradutora deixou uma obra inigualável, nos domínios da poesia, da ficção e do teatro, abrangendo autores como Céline - Morte a Crédito valeu-lhe o prémio de tradução do PEN Clube -, Sade, Goethe (o Fausto), Verlaine, Marguerite Yourcenar, Éluard, Max Jacob, Genet, Apollinaire, Queneau, Bataille, Nerval, Anaïs Nin, Artaud, Breton, Michaux, Boris Vian, Jarry, Ionesco, Stendhal, Lorca e muitos outros cujo inventário seria redundante. Colaborou com alguns cineastas, tendo escrito diálogos para filmes de Paulo Rocha e o argumento de Os Brandos Costumes, de Alberto Seixas Santos. Salvo poemas avulsos em algumas publicações, como é o caso da revista Colóquio-Letras, não publicou nenhum livro nos últimos dezasseis anos de vida. Morreu em Lisboa, em 1989, pouco antes de completar 50 anos.*

A rosa

Estava um tempo ameno, no dia que aquela rosa morreu.
Ninguém a cortou
Nenhum especialista em botânica lhe diagnosticou qualquer doença.
Não enfeitou jarra alguma.
Nasceu um dia timidamente numa roseira carregada de espinhos.
Esperou uma generosa gota de orvalho para desabrochar
Abriu as suas pétalas ao mundo
Teve os seus botões
Ninguém chorou por ela
Não houveram elogios fúnebres
Largou as suas pétalas uma a uma
com a mesma leveza, com que viveu.

adeus, minha querida

31/01/05
Aurora Silva


(recebido no e-mail)

23.10.05

Ut pictura poesis # 41 – retrato em pano-cru

Imagem respigada aqui:

Alice Neel, Retrato de Andy Warhol, 1970
óleo s/tela, 60 x 40 cm
EUA


Sobre a pintora:
Maria João

22.10.05

Tsunami levou 226 mil vidas.
“Katrina” provocou milhares de mortos e o desalojamento de 200 mil pessoas.

Na sequência do violento terramoto do dia 8 de Outubro, só no Paquistão terão morrido entre 30.000 a 40.000 pessoas e o número de feridos deverá rondar os 60.000.

ESTÉTICA

(Realidade, incerta realidade ou sonho.
Mulher sempre adormecida no poema.
Gazela desperta em suave paisagem nublada.
ausente de céspede e horizonte
POESIA É A CONDIÇÃO DO OLVIDO).


Versão possível de HMBF.

xavier abril
Xavier Abril nasceu em Lima, no Peru, no dia 4 de Novembro de 1905 e morreu em Montevideu, Uruguai, a 1 de Janeiro de 1990. Em Espanha, entre 1926 e 1927, estudou na Escola de Belas Artes de São Fernando. Residiu também algum tempo em França até estabelecer-se definitivamente em Montevideu. Foi um dos representantes mais destacados da poesia surrealista peruana. Apesar do seu espírito claramente vanguardista, Abril foi um conhecedor profundo dos clássicos. Daí que na sua poesia convivam a tradição e a modernidade. O seu primeiro livro apareceu em 1931 com o título Hollywood. Seguiram-se Difícil trabajo (1935), Descubrimiento del alba (1937) e La rosa escrita (1987). Ensaísta literário, é também o autor de uma novela intitulada El autómata, dada a conhecer em 1990 – ano da sua morte.

Ut pictura poesis # 40 – Cu não se escreve com ú

Ida Applebroog
Imagem respigada aqui:

Ida Applebroog, Thank You Very Much, 1982
acrilico e rhoplex s/ telaacrylic and rhoplex on canvas, 83 x 89 cm
Colecção Addison Gallery of AmericanArt, Phillips Academy, Andover, EUA

Sobre a pintora:
Maria João

21.10.05

EDUCAÇÃO CÍVICA

Faz-se de tudo
o abano da anca
o olho sorridente
o rebolado
perante o presidente
da república
faz-se o bailado
e a pirueta
para agradar
e arejar o presidente
do conselho
lubricamente
mostra-se o joelho
aos ministros todos
lança-se
simpatia a rodos
aos generais
e aos marechais
também aos furriéis
se for preciso
afinal
o que é preciso
é ter juízo

faz-se de tudo
sempre a abanar
a anca

MHL

Mário-Henrique Leiria nasceu em Lisboa em 1923. Frequentou a Escola de Belas Artes, donde saiu apressadamente. Entre 1949 e 1951 participou nas actividades da movimentação surrealista em Portugal. Depois começou a andar de um lado para o outro. Teve vários empregos, marinha mercante, caixeiro de praça, operário metalúrgico, construção civil (não, não era arquitecto, carregava tijolo), etc. pelas terras onde andou: a Europa cristã e ocidental, o Mediterrâneo norte-africano, o Oriente Médio e até, dizem, os países socialistas. Não ia aos Balkans porque tinha medo, todos lhe diziam que lá os bigodes eram enormes e as bombas estoiravam até no bolso. Um dia teve que passar por lá. Os bigodes eram realmente grandes, mas toda a gente sabia rir. Tirou o casaco e bebeu que se fartou. Em 1958 meteram-se-lhe ideias na cabeça e foi até Inglaterra, para aprender coisas. Não aprendeu e voltou. Entre 1959 e 1961 foi casado e não fez mais nada. Em 1961 foi para a América Latina donde voltou nove anos depois. Por lá, conseguiu ser, entre outras actividades menos respeitáveis, planejador de stands para exposições, encenador de teatro e até director literário de uma editora. Fizera progressos. Agora está chateado, vive em Carcavelos e custa-lhe muito a andar. Temo colaborado em várias revistas e jornais nacionais e não só. Está publicado em algumas antologias, tanto aqui como no estrangeiro. Este é o primeiro livro que tenta publicar em Portugal. Realmente, está muito chateado. (in Contos do Gin-Tonic, 2.ª edição, Editorial Estampa, 1973) Morreu em Cascais, de degenerescência óssea, no dia 9 de Janeiro de 1980.

Ut pictura poesis # 39 – duplo nu masculino

Imagem respigada aqui:

Sylvia Sleigh, Dupla imagem de Paul Rosano, 1974
Óleo s/tela

Sobre a pintora:
Maria João

20.10.05

O Estatuto dos Docentes

Uma rápida passagem pelo sítio da FENPROF deixa claro que os sindicatos dos professores estão mais contra o Governo do que a favor do ensino. E estão contra o Governo de uma forma absolutamente obtusa. Note-se: «O país somos todos nós, incluindo os trabalhadores do sector público e privado sobre os quais caem as mais iníquas, ilegítimas e brutais medidas do Governo, castradoras de direitos arduamente por si conquistados.» Era então bom que dissessem quais são as «medidas sérias de promoção do sucesso educativo para todos» que o governo deveria tomar. Enquanto professor, há muito que espero por essas medidas. Mas não as tenho escutado aos sindicatos... Os sindicatos dos professores estão contra as «medidas estritamente economicistas do Governo», embora não sejam objectivos na denúncia das mesmas e, sobretudo, na explicação da sua indignação. Afinal, que medidas são assim tão «iníquas, ilegítimas e brutais»? Também não consigo perceber quais são as medidas tomadas na área da educação que vão «contra a dignidade profissional dos professores, a qualidade do ensino e o sucesso educativo dos alunos». Se os professores estão de facto interessados numa escola de qualidade, devem passar mais tempo nas escolas. Ponto final. Devem procurar, em grupo, dinamizar as suas escolas. Não me venham com a conversa da falta de espaço. Há sempre espaços mortos numa escola que podem ser dinamizados de várias maneiras. Como professor do Ensino Secundário, devo esclarecer que o descontentamento da classe docente não me toca. Há 5 anos fiz uma opção: abandonar o ensino público, dedicar-me ao ensino privado. Tenho horários de trabalho alterados todas as semanas, não recebo subsídio de nada, não tenho ADSE, népia… Quando fui professor em escolas públicas reparei naquilo que ainda hoje reparo: uma quantidade vergonhosa de professores que acumulavam cargos nas escolas onde estão colocados ou efectivos, com explicações em centros de explicações, formação profissional em centros de formação profissional, horas para compor a semana em colégios privados. Isto é inadmissível. Um horário de trabalho de 24 horas semanais não existe para que os professores ocupem o resto da semana dando aulas noutros locais que não aqueles onde estão colocados. Isso só leva a uma situação: não se preparam aulas, não se investe na formação pessoal, não se manda trabalhos de casa aos alunos porque depois não há tempo para os corrigir, corrigem-se testes de forma displicente, diminui-se, inevitavelmente, os graus de exigência dentro da sala de aula. Mais: professores incompetentes, afectados pela efectivite, a ocuparem o lugar em espaços de leccionação alternativos que poderiam ficar à mercê dos milhares de professores desempregados que se vão desenrascando como caixas de hipermercado. Ora tudo isto tem de mudar. Os professores ganham mal? Ganham sim senhor (nunca ganharam bem). Mas se não trabalham bem, também não merecem ganhar bem. Os resultados estão à vista: somos dos países na Europa que mais investe na educação, mas temos os piores resultados. Há professores muito bons. Há muitos, demasiados, professores muito maus. Digo-o com mágoa e escrevo-o à pressa para não me arrepender de o ter escrito.

GILLIAN CARNEGIE (candidata ao Turner Prize 2005)

Gillian Carnegie, Red, 2004, Oil on board

Mais aqui: http://www.tate.org.uk/britain/turnerprize/2005/ .

Rui Costa

Aos que nasceram hoje de manhã
mais de cansaço caem levantando
as horas miriápodes do sarro,
aos que perfazem anjos pela carne,
aos que agradecem chuva e amamentam
os filhos do mau tempo,
aos outros sós que vergam,
aos que deram a pele,
aos negros,
aos leprosos,
aos longe do açúcar,
aos doidos,
aos últimos,
aos meninos de choro,
aos pulhas,
aos presos,
aos palhaços,
aos limpa-chaminés de onde não as há,
aos amantes em causa,
aos que lambem o peso,
à menina Zulmira,

aos que têm anémonas nos olhos
a voz abrindo atalhos alarga na clareira
a mesa do banquete.

Pedro Tamen
Pedro Tamen nasceu em Lisboa a 1 de Dezembro de 1934. Licenciado em Direito, publicou os seus primeiros poemas nos «cadernos de cultura» Anteu, de que foi co-orientador e de que saíram apenas dois números, ambos editados em 1954. Dirigiu o jornal Encontro, órgão da Juventude Universitária Católica, sendo seu chefe de Redacção até 1957. Foi dirigente cineclubista (Centro Cultural de Cinema) e publicou o seu primeiro livro Poema para Todos os Dias em 1957, em edição de autor. Foi director-adjunto da revista Flama e dirigiu a editora Moraes entre 1958 e 1975. Fez, durante algum tempo, crítica literária no semanário Expresso, e pertenceu à direcção da Associação Portuguesa de Escritores entre 1973 e 1975. Foi presidente do PEN Clube Português entre 1987 e 1990 e administrador da Fundação Calouste Gulbenkian. É autor de inúmeras traduções para português de autores consagrados (Lautréamont, Proust, Breton, Foucault, Flaubert, etc…) Tem a sua poesia reunida em Tábua das Matérias. (in Tábua das Matérias, Círculo de Leitores, Fevereiro de 1995)

Ut pictura poesis # 38 – O eterno retorno

Imagem respigada aqui:

Jasper Johns, As quatro estações: Primavera, Verão, Outono, Inverno, 1986
Encaustica sobre quatro telas de 190.5x127cm
Colecção privada, Nova York, EUA


sobre o pintor:

Maria João

Para o Rui Costa, em resposta a:

“Etanol e Aurora: eu falei em voto em branco como falei em revolução. O que interessa é fazer e mudar.Mas lembrem-se que o significado das coisas não é uma estátua. Votar teve um significado que entretanto se perdeu, em certo sentido - porque o mundo mudou, a luta pelo direito ao voto cumpriu e ainda cumpre o seu objectivo. Mas não é por se ter o direito de mostrar as mamas que vocês andam sempre desnudas en la calle (eu não me importava nada, mas percebem)” (in ELEITORES ELEITOS)

guerrilla girls

Maria João

19.10.05

POÉTICA

De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.

A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O oeste é meu norte.

Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem

Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
- Meu tempo é quando.
Vinícius

Vinícius de Moraes nasceu no dia 19 de Outubro de 1913 no Rio de Janeiro, Brasil. Após a conclusão do curso de Direito, estreou-se com o livro O Caminho para a Distância em 1933. Com Forma e Exegese, dois anos depois do primeiro livro, conquistou o Prémio Felipe de Oliveira. Em 1936 foi nomeado representante do MEC na Censura Cinematográfica, dormindo nas sessões e não censurando nada. Amigo de Manuel Bandeira e Drummond de Andrade, iniciou actividade de jornalista em 1941 no A Manhã e no Suplemnto Literário. Em 1943 ingressou na carreira diplomática, vindo a servir nos EUA, na França e no Uruguai. Já na segunda metade da década de 1950, conheceu Antônio Carlos Jobim e João Gilberto, com os quais renovou a música popular brasileira através da Bossa-Nova. Em 1959 ganhou o Prémio Palme d’Or do Festival de Cannes e o Óscar de Hollywood com o filme Orfeu Negro, baseado na sua peça Orfeu da Conceição, como o melhor filme estrangeiro do ano. Passou a maior parte da sua vida participando artisticamente em shows, cinema, teatro, afirmando-se como o centro boémio de uma atitude de liberalização dos costumes. Morreu em 1980, na sua cidade natal, aos 67 anos. (in Vinícius de Moraes, Poesia, Agir, 1983)

Ut pictura poesis # 37- A mulher dos sete instrumentos


Hildegard von Bingen (1098-1179), Scivias f., Ir, 1142-1152
Maria João

18.10.05

MOTORHEAD

motorhead
Lounge, ah! Conheço pessoas
que estão sempre cansadas.
Descansam e ficam cansadas.
Trocam as pernas no sofá e cansam-se.
Ibiza relax? Overdose de ceroulas.
Chill out Café? "Por favor,"- diz o Chagas-
"que haja leite fresco no estabelecimento!"
Não há pachorra. As pessoas cansadas
cansam-me. Toquem-se, aboca-
nhem-se no estabelecimento!
Percam-se, desgracem-se, comam
iogurtes.
Casem-se, dêem ao vosso filho o
melhor curriculum do século XXI.
Digam-lhe, antes que ele abra a boca
para cantar, que esteja cansado.
Digam-lhe, se ele ainda não estiver
completamente convencido, que é um
novo conceito, uma forma de
estar na vida.
Eu, ouviram bem, não me canso.
Nem tu, Lemmy!
Um dia hei-de oferecer-te uma rosa.
Sairemos para a rua,
quando todos estiverem cansados,
e havemos de ver deus e deus vai querer
juntar-se a nós.
Então
vamos começar a cantar até
a rosa arrastar tudo para dentro do som
e havemos de
enlouquecer deus
nessa esquina.

Rui Costa

POST-CARD

(os velhos, os pombos, os gatos)

Alguns habitantes queixam-se dos pombos. Do mal
que fazem às fachadas, às estátuas, à pintura
dos automóveis. Os pombos não voam a gasolina
e têm humaníssimos hábitos como a gula, as
rivalidades do cio, a sede e a urgência
de defecar. Detestam coleiras, gaiolas, amparos
de casota, ausência de jardins
e adornos de penas alheias. E por este divino
despojamento recebem, à vezes,
algum milho displicente dádiva
de crianças para a fotografia, ou de benignos
velhos reformados. Algumas mulheres continuam
a socorrer os antiquíssimos (e terrestres) gatos
vadios. Gatos da minha infância. Dos muros,
das traseiras, dos quintais – o Simbad, a Pardoca – com
restos de arroz em papéis engordurados. Carinhosas
velhas, atentas à famélica e materna condição
das ninhadas, enquanto os pombos e os velhos
debicam espaços de pedra onde levavam asas
e entre todos assoma, por instantes,
a decaída aliança entre o Céu e a Terra.

Porto, 1998

Inês Lourenço

Inês Lourenço nasceu no Porto em 1942. É licenciada em Línguas e Literaturas Modernas (Estudos Portugueses) pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Trabalhou nos CTT e no Ensino Secundário. Publicou os seguintes livros de poesia: Cicatriz 100%, Editora das Mulheres, Lisboa, 1980 (prefácio de Maria Isabel Barreno); Retinografias, idem, Lisboa, 1986; Os Solistas, Limiar, Porto, 1994; Teoria da Imunidade, Felício & Cabral, Porto, 1996, Um Quarto com Cidades ao Fundo – poesia reunida – (1980-2000) incluindo inéditos, Quasi Edições, V. N. Famalicão, 2000; A Enganosa Respiração da Manhã, Edições ASA, Porto, 2002; Logros Consentidos, & etc, Lisboa, Março de 2005. Está incluída na Antologia de Poesia Contemporânea O Poeta e a Cidade, organizada por Eugénio de Andrade (1996). Colaborou com poesia em diversas colectâneas e em algumas publicações portuguesas, como: JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias, Cadernos de Serrúbia, Colóquio Letras, etc. e também em revistas de poesia de Espanha, Itália e França, com poemas traduzidos nas respectivas línguas. Coordena e edita desde 1987, os Cadernos de Poesia – Hífen, com 13 números editados, na sua maioria, temáticos, publicação de carácter inter-geracional, em que têm participado, com colaborações inéditas, grande parte dos poetas portugueses actuais, bem como poetas de outras línguas. (in Um Quarto com Cidades ao Fundo)

17.10.05

DIA MUNDIAL CONTRA A POBREZA E A EXCLUSÃO SOCIAL

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Tirânicas são as sociedades que fiscalizam, pedem, exigem, obtêm, legalizam, legislam, puncionam, retêm, subtraem, impõem, taxam, quando não perseguem, param, constrangem e prendem para, depois, se declararem incapazes de oferecer o mínimo ao cidadão que terão despojado, roubado, despido, desnudado.
Michel Onfray

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O cidadão médio de um país desenvolvido goza de uma riqueza superior aos sonhos mais loucos de 1000 milhões de pessoas que vivem em países com um rendimento per capita inferior a 200 dólares. São estes, portanto, os países e os indivíduos que têm uma riqueza tal que podiam, sem ameaçar o seu próprio bem-estar, transferir uma parte para os pobres absolutos.
Robert McNamara

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O HORROR DE SER POBRE

Risco c’um traço
(um traço fino, sem azedume)
todos os que conheço, eu mesmo incluído.
Para todos estes não me verão
Nunca mais
Olhar com azedume.

O horror de ser pobre!
Muitos gabavam-se que aguentariam, mas era ver-
-lhes as caras alguns anos depois!
Cheiros de latrina e papéis de parede podres
Atiravam abaixo homens de peitaça larga como toiros.
As couves aguadas
Destroem planos que fazem forte um povo.
Sem a´gua de banho, solidão e tabaco
Nada há que exigir.
O desprezo do público
Arruína o espinhaço.
O pobre
Nunca está sozinho. Estão todos sempre
A espreitar-lhe pra o quarto. Abrem-lhe buracos
No prato da comida. Não sabe pra onde há-de ir.
O céu é o seu teto, e chove-lhe lá pra dentro.
A Terra enxota-o. O vento
Não o conhece. A noite faz dele um aleijado. O dia
Deixa-o nu. Nada é o dinheiro que se tem. Não salva ninguém.
Mas nada ajuda
Quem dinheiro não tem.


Bertolt Brecht, in Poemas e Canções, selecção e versão portuiguesa de Paulo Quintela, Livraria Almedina, Coimbra, Outubro e 1975
.

ELEITORES ELEITOS

Eleitores Eleitos


À primeira vista, a recente eleição de autarcas como Isaltino Morais ou Fátima Felgueiras, parece surpreendente. Por razões que uns sabem e outros fingem não saber; não vou alongar-me neste ponto. À segunda vista, porém, talvez este fenómeno comece a (a)parecer menos surpreendente. O que me parece é o seguinte:

1. Os eleitores votaram nestes, entre outros, autarcas, porque queriam que eles vencessem as eleições.
1.1. Note-se, queriam que eles vencessem as eleições. Isto não implica que tais eleitores gostariam de ir para a cama com eles, nem quer dizer que, nas suas vidas, reproduzam as condutas dessas pessoas, nem quer dizer que se tivessem podido teriam feito um universo repleto de seres com as mesmas características.
1.2. Note-se ainda, os eleitores que votaram nestas pessoas, votaram. Ou seja, acharam que deviam votar e foi isso que fizeram. Ao fazê-lo, mais ou menos conscientemente, aliaram-se a um esforço (o esforço que culminou numa vitória).

3. A não ser quando um traço masoquista assim o determina, as pessoas tendem a escolher para si coisas que consideram boas (a discussão seria aqui interessante e infindável, já que o nosso mau para o masoquista pode valer ouro).
3.1. Essas "coisas boas" também pode incluir coisas "menos más", mas o padrão é sempre comparativo e há uma escolha, incluindo, neste caso, o voto em branco ou a revolução.

4. Os eleitores que votaram nos candidatos "melhores" ou "menos maus" (na opinião deles), fizeram-no porque acharam que tais candidatos seriam os melhores para "a terra" ou para eles próprios.

5.Os eleitores que pensam no "bem da terra" (e que talvez em boa parte coincidam com os que só pensaram neles próprios), deveriam incluir no processo de decisão a lembrança de que "a terra" pertence a uma coisa maior chamada "país" (e este ao "mundo", num exercício que sirva para nos tirar do funil) e de que a parte precisa do conjunto como o conjunto precisa da parte.

7. Voltando ao ponto 1. acima, estes eleitores resolveram "associar-se" a determinado tipo de pessoas com determinado tipo de características, para que, em medida mais ou menos próxima, daí pudessem colher algum benefício, directo ou indirecto, imediato ou mediato, à custa do sacrifício de um conjunto mais vasto do que eles próprios ou a "terra" deles (a que alguns chamam sociedade, e pode e deve incluir- e inclui- "coisas" como a ética e a dignidade).

8. Pessoas que se comportam assim (falo agora apenas dos eleitores) são pessoas pequenas. Porque afunilam em vez de alargarem as vistas e o fazer. Não têm o exercício mínimo da liberdade que o ser humano devia trazer consigo como o mel o nariz da laboriosa abelha (ser livre dá trabalho). Imagino o que seja ser filho ou marido ou mulher ou aluno deste tipo de pessoas: O que é que pensa uma pessoa assim quando te chama amigo? O que é que imagina uma pessoa assim quando diz à sua filha que ela é muito esperta e devia tentar arranjar um lugar ao sol? O que pensamos e dizemos nós a estas pessoas sempre que lhes pagamos um café?

Tenho a certeza que a liberdade dá uma trabalheira do caneco. E é um trabalho que custa a todos, porque ninguém é livre se o for só dentro da solidão da casa ou "da terra".
Rui Costa

Onde a poesia se exibe como um espectáculo espectacular
não é poesia
onde a audácia do poema não é única
não é poesia
onde a poesia não é inocência de natureza fluvial
não é poesia
onde a poesia não é escandalosamente pura
não é poesia
onde a poesia não é filha do deserto nem da sede
não é poesia
onde a poesia não é presença viva que nasce da solidão e da ausência
não é poesia
onde a poesia não se oferece no seu abandono
não é poesia
onde a poesia não é poesia
não é poesia

António Ramos Rosa

António Ramos Rosa nasceu em Faro, a 17 de Outubro de 1924, e aí viveu durante a juventude, tendo-se radicado definitivamente em Lisboa, em 1962, depois de duas breves estadas na capital, nos anos 40 e 50, durante as quais teve uma experiência gorada como empregado de escritório, de que é testemunho o conhecido Poema Dum Funcionário Cansado. Para além das muitas obras que foi publicando, a sua intensa actividade poética, crítica e ensaística foi-se disseminando, ao longo de toda a segunda metade do século XX, em projectos editoriais como as revistas de poesia Árvore, Cassiopeia e Cadernos do Meio-Dia (de que foi co-director), bem como em diversos jornais e revistas, de que se destacam, entre outros, os suplementos literários do Diário de Notícias e d’ A Capital, o Jornal de Letras e a Colóquio/Letras. Proposto para o Prémio Nobel em várias ocasiões, a sua personalidade e obra têm merecido não só a consideração dos seus pares, como a distinção de prémios literários nacionais e internacionais. Como poeta, estreou-se na colectânea O Grito Claro (1958). Também tradutor, escreveu dezenas de volumes de poesia. No que respeita ao ensaio, Ramos Rosa é autor, entre outras, da obra Poesia, Liberdade Livre (1962). (a partir de Ana Paula Coutinho Mendes, António Ramos Rosa – Antologia Poética, Círculo de Leitores, Fevereiro de 2001)

Ut pictura poesis # 36 – Insónia

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Imagem respigada aqui:

Constance Marie Charpentier, Melancolia, 1801
Óleo s/tela, 130x160cm
Colecção privada

Sobre a pintora:
Maria João

16.10.05

NOCTURNOS

Café de cais,
Onde se juntam,
Anónimos de iguais,
Os ratos dos porões,
Babel de todos os calões,
Rio de fumo e de incontido cio,
Sexuado rio
Que busca, único mar,
Mulheres de pernoitar,
Unge-te a nojo, não Anfitrite,
Fina ficção marinha,
Mas nauseabundo
E tutelar,
O vulto familiar
Da Virgem Vício,
Nossa Senhora do Baixo Mundo.
Reinaldo Ferreira nasceu em Barcelona a 20 de Março de 1922. Filho do jornalista Reinaldo Ferreira, o vulgarizado Repórter X, foi para Moçambique em 1941. Aí publicou os seus primeiros poemas, por volta de 1947, em jornais e revistas (Artes e Letras). A pouca obra que publicou em vida, resume-se a esses dispersos mais algumas canções. Projectos de edição, conhecem-se-lhe alguns: Poemas Infernais, Um voo cego a nada. Faleceu canceroso em Junho de 1959, na então Lourenço Marques. Deve a José Régio o enfoque que nos anos 60 recebe a sua obra. (a partir de Sião, organização e notas de Al Berto, Paulo da Costa Domingos e Rui Baião, frenesi, Lisboa, 1987)

Ut pictura poesis # 35 – Nocturno

Viller
Foto respigada aqui:

Marie-Denise Viller, Rapariga desenhando, 1801
Óleo s/tela, 161,3x128,6cm
Metropolitan Museum, Nova York, EUA

Sobre a pintora:
Maria João

15.10.05

What's He Building In There?

para o there's only 1 alice
pelos 3 anos

ERA O HOMEM TODAVIA

Era a luz, o sol, o homem todavia
ainda que o olho ensanguentado não visse,
ainda que a boca esmagada não falasse.

Era o homem todavia!

A cabeça e os braços abertos,
a garganta aberta,
devorada…

Era o homem todavia!

Versão de HMBF.

Jimeno

Manuel Moreno Jimeno, poeta peruano nascido em Lima no ano 1913, publicou o seu primeiro livro de poemas aos 21 anos: Así bajaron los perros. Ainda de sua autoria são os livros Los malditos (1937), La noche ciega (1947), Hermoso fuego (1954), Delirio de los dias (1967) e Las llamas de la sangre (1974). Poeta vanguardista, porém aficionado da tradição romântica e simbolista, revela nos seus versos um trabalho de extrema concisão que procura não mais do que o essencial. A sua poesia é pontuada pela gestão dos silêncios e das pausas, avessa a qualquer tipo de exaltamento ou êxtase despropositado. Tradutor de Éluard, Char e Dylan Thomas, participou com César Moro e Emílio Adolfo Westphalen no boletim clandestino Cadre (Comité de Apoyso a la República Española). Faleceu em 1993.

Ut pictura poesis # 34 – Antes...

Armetisia Gentileschi
Imagem respigada aqui:

Armetisia Gentileschi, Judite e a criada, 1625-27
Óleo s/tela;182.8 x 142.2 cm
The Detroit Institute of Arts, EUA

Sobre a pintora:
Maria João

14.10.05

Ut pictura poesis # 33 – Interior feminino nº2

Françoise Duparc
Foto respigada aqui:

Françoise Duparc (1705-1778), Mulher cosendo
Museu de Belas-Artes de Marselha, França

Sobre a pintora:
Maria João

13.10.05

O primeiro post com música...

...é para a Soledade Santos, pelo precioso apoio técnico. Demora um bocadinho a abrir, mas vale a espera.

ÚLTIMOS DESEJOS

Quero voar como os anjos
quero lavar os dentes com triflúor
quero o Belinho sem o Oliveira
quero cornear o duque de Kent

quero 250 de Platão bem passados
quero a destreza do okapi
quero ir ao Douro às vindimas
quero pagar com letrasset

quero vestir de linho (e do Veiga)
quero ser primeiro no Mundial
quero pudim francês com caramelo
quero ler um cabinda em verso branco

quero um sequóia para o quarto
quero voar de Spitfire
quero esmurrar o Marcel Cerdan
quero a Maja Desnuda

quero-te de bicicleta
quero-te outra vez de bicicleta sobre as folhas
quero-te ouvir chegar de bicicleta
quero o som macio que fazia na mata a tua bicicleta

O GRANDE Fernando Assis Pacheco
Fernando Assis Pacheco nasceu em Coimbra em 1937. Escritor e jornalista, Licenciado em Filologia Germânica, esteve ligado aos grupos teatrais académicos durante os seus estudos universitários. Após um período de mobilização na guerra colonial, em Angola, enveredou pelo jornalismo, estreando-se no Diário de Lisboa, em 1965. Colaborou em publicações literárias e em vários jornais, como o República, O Jornal, o Se7e, o Jornal de Letras (de que também foi redactor) e o Record. Era, à altura da sua morte, redactor da Visão. Participou, ainda, em programas de rádio e televisão, foi autor de poemas musicados por compositores portugueses e de textos e diálogos para documentários e filmes. Dedicou-se também à tradução. Como escritor, Assis Pacheco não esteve ligado a qualquer escola literária. Estreou-se com o volume de poesia Cuidar dos Vivos (1963). Os seus textos, ao mesmo tempo que reflectem um esforço de pesquisa e experimentalismo na língua portuguesa, são fortemente marcados por uma intenção de crítica social e pela experiência da guerra colonial portuguesa. Publicou, durante muito tempo, pequenas tiragens em edição de autor, o que não impediu a imposição do seu nome na moderna literatura portuguesa. Na ficção em prosa, foi autor de Walt (1978) e do romance Paixões e Trabalhos de Benito Prada (1993). *

LOUCOMOTIVA.COM (de Jorge Garcia Pereira)

JORGE GARCIA PEREIRA
Rui Costa

12.10.05

INGLATERRA

Da primeira vez que fui a Londres estava a estudar em Espanha e numa rua de San Sebastian vi uma viagem muito barata e comprei-a. Fiquei no Bolsover Hotel, que parece depois foi transformado num hotel carote. No Bolsover Hotel conheci um marinheiro português, filho de um homem e uma mulher de negócios. Tinha estudado em Inglaterra mas aos 18 anos fartou-se e foi trabalhar nos barcos de uma empresa americana. Também lá conheci o Juan, um espanhol que era guarda-florestal e dizia que não conhecia ninguém (amigo, presume-se) que tivesse menos do que ele. Naquele tempo Inglatera não era (na minha cabeça) o que hoje é: um dos países mais racistas e classistas do mundo. Quando fui fazer o master em Leeds (2003) e às vezes tentava intervir, perguntavam-me: "Portugal, isso não é um país rural?" (bela rima). Mas quando tive as melhores notas do mestrado, incluindo os ingleses, até houve um professor que me pediu conselhos sobre a bibliografia para um trabalho que estava a fazer. O mérito é reconhecido e recompensado. Em Portugal a situação que descrevi seria praticamente impossível. Fazes qualquer coisa bem, anda cá que levas mais trabalho (raras excepções).

Não há países, como não há pessoas, perfeitos. Inglaterra é um país neo-colonialista (dir-me-ão que os que não são é porque não podem). Hoje, em vez de irem para a Índia com armas (e comboios, e algum sistema educativo) deixam que europeus, asiáticos, o mundo todo, venham a Inglaterra fazer cursos (os não- união europeus pagam propinas altíssimas), procurar trabalho (os menos qualificados fazem o trabalho que os ingleses não querem fazer; os qualificadíssimos são muito bem pagos, mas tendo os ingleses a vantagem de nada terem investido na sua deles formação).

É verdade que a Inglaterra tenta encontrar formas de integrar as minorias. Mas está sempre a fazer sapatos com solas de sabão. Há bons subsídios de doença, desemprego, etc. É um país em grande crescimento económico. Só que os não-ingleses são cidadãos de segunda, terceira, quarta, quinta (e só vão subindo na hierarquia à medida da sua capacidade para se inglesarem). Sociedade multicultural? Treta, meus amigos. Sabem que os ingleses ficaram muito admirados com os recentes atentados terroristas (é sempre uma coisa terrível, eu sei)? Sim, porque pensavam que as pessoas que os praticaram, que na sua maioria nasceram e viveram sempre em Inglaterra, gostavam de Inglaterra e se sentiam integrados. Não gostavam, odeiam; sabem que nunca se sentirão parte da sociedade inglesa. E por que é que os ingleses pensavam tal coisa? Porque a atitude dos ingleses é: OK, podem vir pra cá e abrir as vossas mercearias; ou trabalhar no JP Morgan e ganhar uma batelada de massa, desde que nós não tenhamos que saber como é que vocês são e vivem.
O multiculturalismo, que só faz sentido como genuíno interesse pela diferença, não se coaduna com meros esquemas formais de organização e gestão de sociedades burocráticas neo-colonialistas.
Desiludam-se, ó fascinados da neblina: Inglaterra, como país de gente no meio de gente, é um logro! E o pior de tudo: consentido.
Rui Costa

SABEDORIA

Desde que tudo me cansa,
Comecei eu a viver.
Comecei a viver sem esperança…
E venha a morte quando Deus quiser.

Dantes, ou muito ou pouco,
Sempre esperara:
Às vezes, tanto, que o meu sonho louco
Voava das estrelas à mais rara;
Outras, tão pouco,
Que ninguém mais com tal se conformara.

Hoje, é que nada espero.
Para quê, esperar?
Sei que já nada é meu senão se o não tiver;
Se quero, é só enquanto apenas quero;
Só de longe, e secreto, é que inda posso amar…
E venha a morte quando Deus quiser.

Mas, com isto, que têm as estrelas?
Continuam brilhando, altas e belas.

José Régio
José Régio nasceu e morreu em Vila do Conde, respectivamente em 1901 e em 1969. Formou-se em Filologia Românica pela Universidade de Coimbra, tendo sido, longo tempo, professor no Liceu de Portalegre, onde existe uma Casa-Museu com o seu nome, patenteando um sem-número de Antiguidades que, como Junqueiro, o poeta foi adquirindo durante a vida. Igualmente, a sua Casa de Vila do Conde é hoje museu, recheado de belas peças de antiquário. Contista, romancista, dramaturgo, ensaísta e poeta, é, talvez, esta a sua actividade literária que mais o distingue e impõe. Director, fundador e principal animador da revista coimbrã Presença, que foi o porta-voz do nosso segundo Modernismo e teve o condão de reunir, nas suas páginas, os melhores escritores portugueses da época, ainda que de gerações diferentes. A sua poesia, altamente dramática, tem como tema obsessivo a luta carne-espírito que o poeta sabe exibir com beleza e vigor. As obras poéticas mais importantes são: Poemas de Deus e do Diabo (1925), Biografia (1929), As Encruzilhadas de Deus (1936), Fado (1941), Mas Deus é Grande (1945) e Música Ligeira (1970).