31.10.05

"INDISCIPLINA" (Cesare Pavese)

"O bêbado deixa para trás as casas estupefactas". Começo algo súbito, o bêbado tem um passado mas é o presente que vamos seguir. Como julgamos saber, não há "casas estupefactas" e isto é uma figura de estilo. Mas realmente: as casas antropomorfizadas não estão habituadas a ver pessoas a andar na rua de tal maneira. O adjectivo "estupefactas" é forte numa frase curta e directa de início de poema e Pavese quer explicar melhor: "Nem todos se aventuram a passear bêbados à luz do sol". O bêbado é distinguido, neste segundo verso, do resto do mundo: é dele que trata o poema, já o adivinhamos. "Atravessa tranquilo a rua", diz Pavese. A ligação do adjectivo ao verbo é mais forte do que seria se a frase fosse "atravessa a rua tranquilo", caso em que o adjectivo seria directamente mais íntimo do sujeito; a vontade de tom coloquial também importará. Ou seja, não somos obrigados a aceitar que o bêbado é tranquilo. Como se verá no decurso do poema, o que mais interessa é a caracterização do movimento do bêbado. Pavese imagina os limites desta forma de abandono e conclui: "poderia entrar pelas paredes dentro". O bêbado, caso entrasse mesmo na parede, fá-lo-ia porque "as paredes estão ali". Não há (não haveria) significado ou objectivo naquela acção: as paredes são, no poema, as fronteiras de inércia de um corpo despreocupado com a parede que o nega. Num mundo feito de álcool as paredes são líquidas e penetráveis, porque em nada há essência (está-se a ser, não se é; com álcool ou sem álcool seria assim, mas variando os filtros das "doors of perception" de huxley).

Mas isto são os quatro primeiros versos do poema. Sem vos maçar mais, passo a transcrever na íntegra o poema:


INDISCIPLINA

O bêbado deixa para trás as casas estupefactas.
Nem todos se aventuram a passear bêbados
à luz do sol. Atravessa tranquilo a rua,
e poderia entrar pelas paredes dentro, pois as paredes estão ali.
Só os cães deambulam assim, mas um cão pára
sempre que sente uma cadela e cheira-a cuidadosamente.
O bêbado não vê ninguém, nem mesmo as mulheres.

Na rua, as pessoas que se perturbam ao vê-lo, não se riem
e gostariam que não estivesse ali o bêbado, mas os muitos que tropeçam
ao segui-lo com os olhos voltam a olhar em frente
com uma praga. Passado que foi o bêbado,
toda a rua se move mais lentamente
à luz do sol. E se uma pessoa começa
a correr, é alguém que não o bêbado.
Os outros olham, sem distinguir, o céu e as casas
que nunca deixaram de estar ali, ainda que ninguém as veja.

O bêbado não vê as casas nem o céu,
mas sabe que estão ali, pois num passo pouco firme percorre um espaço
tão claro como as franjas do céu. As pessoas, embaraçadas,
deixam de compreender o que fazem ali as casas,
e as mulheres já não olham para os homens. Têm
todos, dir-se-ia, medo de que de repente a voz
rouca se ponha a cantar e os persiga pelo ar.
Cada casa tem uma porta, mas não vale a pena entrar.
O bêbado não canta, mas mete por uma rua
onde o único obstáculo é o ar. Felizmente
não vai dar ao mar, pois o bêbado,
caminhando tranquilo, entraria também no mar
e, deixando de se ver, prosseguiria no fundo o mesmo caminho.
Cá fora, a luz seria sempre a mesma.
Rui Costa

3 Comments:

At 1:54 da tarde, Blogger hmbf said...

Pavese é há muito um dos meus poetas de eleição. Deixo aqui uma espécie de elogio pessoas a Pavese que escrevi, salvo erro, em 1994, num apartamento em Chelas, enquanto olhava a noite na rua:

SOLIDÃO

Val la pena esser solo, per essere sempre piú solo?
Cesare Pavese

há um halo de fumo
assobiado nos lábios de uma puta
singrando volúpia
por dentro da memória

há um gesto depredador
e outro que é presa
ambos recusam a solidão de uma leitura

há o olhar inocente das crianças
a terna escravatura dos instintos
a indizível gratidão do prazer

há música no espaço vazio
onde gestos vagueiam sós

e se dimanasse uma lágrima ao longo do ritual?
e se nos deixássemos morrer só po instantes?
e se o recanto da solidão fosse um sorriso?

é que há paredes rasgadas por retratos
que perfumam as salas onde os gestos
tomam um certo sentido fantástico
sem se dissiparem na dualidade dos olhos

in antologia do esquecimento, 2003.

 
At 2:09 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Lembrei-me agora que, curiosamente, este foi o poema de Pavese que eu escolhi para o poemário do Universos Desfeitos já lá vai mais de um ano... É um grande poema!

 
At 2:30 da tarde, Anonymous Anónimo said...

faltou dizer (na verdade esta e uma versao antiga do que eu escrevi) que a traducao e de Carlos Leite (livro publicado pela Cotovia em 1997).
Rui Costa

 

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