18.10.05

POST-CARD

(os velhos, os pombos, os gatos)

Alguns habitantes queixam-se dos pombos. Do mal
que fazem às fachadas, às estátuas, à pintura
dos automóveis. Os pombos não voam a gasolina
e têm humaníssimos hábitos como a gula, as
rivalidades do cio, a sede e a urgência
de defecar. Detestam coleiras, gaiolas, amparos
de casota, ausência de jardins
e adornos de penas alheias. E por este divino
despojamento recebem, à vezes,
algum milho displicente dádiva
de crianças para a fotografia, ou de benignos
velhos reformados. Algumas mulheres continuam
a socorrer os antiquíssimos (e terrestres) gatos
vadios. Gatos da minha infância. Dos muros,
das traseiras, dos quintais – o Simbad, a Pardoca – com
restos de arroz em papéis engordurados. Carinhosas
velhas, atentas à famélica e materna condição
das ninhadas, enquanto os pombos e os velhos
debicam espaços de pedra onde levavam asas
e entre todos assoma, por instantes,
a decaída aliança entre o Céu e a Terra.

Porto, 1998

Inês Lourenço

Inês Lourenço nasceu no Porto em 1942. É licenciada em Línguas e Literaturas Modernas (Estudos Portugueses) pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Trabalhou nos CTT e no Ensino Secundário. Publicou os seguintes livros de poesia: Cicatriz 100%, Editora das Mulheres, Lisboa, 1980 (prefácio de Maria Isabel Barreno); Retinografias, idem, Lisboa, 1986; Os Solistas, Limiar, Porto, 1994; Teoria da Imunidade, Felício & Cabral, Porto, 1996, Um Quarto com Cidades ao Fundo – poesia reunida – (1980-2000) incluindo inéditos, Quasi Edições, V. N. Famalicão, 2000; A Enganosa Respiração da Manhã, Edições ASA, Porto, 2002; Logros Consentidos, & etc, Lisboa, Março de 2005. Está incluída na Antologia de Poesia Contemporânea O Poeta e a Cidade, organizada por Eugénio de Andrade (1996). Colaborou com poesia em diversas colectâneas e em algumas publicações portuguesas, como: JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias, Cadernos de Serrúbia, Colóquio Letras, etc. e também em revistas de poesia de Espanha, Itália e França, com poemas traduzidos nas respectivas línguas. Coordena e edita desde 1987, os Cadernos de Poesia – Hífen, com 13 números editados, na sua maioria, temáticos, publicação de carácter inter-geracional, em que têm participado, com colaborações inéditas, grande parte dos poetas portugueses actuais, bem como poetas de outras línguas. (in Um Quarto com Cidades ao Fundo)