21.12.05

A PÁTRIA

A dor de feridas. A sede nas areias do deserto,
a fome nos castelos sitiados, a morte no campo
de batalha. Dizem, isto é a pátria, a tua pátria.
Mas também te podem dizer
és novo, és velho e a dor das feridas percorre-
-te, feroz, o anódino corpo. A fome leva-te ao
roubo em plena cidade e é tão difícil encontrar o
que pear, como acalmar a sede no deserto. A morte
pode vir numa cama de hospital, sozinho, a meio
da abandonada noite. Dizem
isto é a tua vida, a quadra dos teus belos dias
passageiros. Isto é ainda a tua pátria. E tudo
parece trair-te
deus, os amigos, os deuses. Palavras, todas elas,
de fria e morta expressão. Mais vale
que nos crave o rosto e o peito e nos esmague os
colhões
a garra de um lince e que nos devore no fogo
de quem descobre um segredo que não temos, que
não, que nunca existiu.

João Miguel Fernandes Jorge

João Miguel Fernandes Jorge nasceu no Bombarral em 1943. Poeta, ficcionista, ensaísta e crítico de arte, licenciado em Filosofia pela Universidade de Lisboa, foi professor do ensino secundário e professor de Estética na Escola de Cinema do Conservatório Nacional. Pode-se dizer que foi a partir da publicação do seu primeiro livro, Sob Sobre Voz (1971), que a geração de 70 passou a ser identificada como tal. E com ela aquilo a que foi chamado, com maior ou menor propriedade, o “regresso ao real”, por oposição ao formalismo da linguagem verificado na década precedente. Autor de uma obra extensa, as colectâneas de poemas começaram em 1987 a ser coligidas em volumes de Obra Poética. Outra constante é a actividade ensaística no domínio das artes plásticas e da fotografia, com intervenção regular na imprensa (A Capital, O Independente, Semanário, Expresso, etc.) e em diversas revistas da especialidade. Poemas seus encontram-se dispersos por revistas como O Tempo e o Modo, Colóquio-Letras, Nova, Sema, Raiz & Utopia, Belém, Europe, etc. *