21.1.08

O SANGUE DE SIMONE

A propósito do centenário do nascimento de Simone de Beauvoir, recupero um post editado a 11.1.06. Mudei-lhe a imagem, elaborei algumas correcções e, por culpa da capa da Nouvel Observateur, vejo-me obrigado a constatar que Simone não só era uma mulher inteligente como também tinha um cu bastante apetecível (o que desfaz o velho mito segundo o qual a inteligência nada quer com a beleza física). Sobre a sua obra vem-se abatendo, com o passar dos anos, uma nuvem turva de esquecimento. Há sinais preocupantes que nos dão conta desse facto. Se for exagerado falar-se de esquecimento, fale-se então do "gigantismo" de Sartre, seu companheiro de sempre, que acabou por lançar para a penumbra o que há de consequente na obra da mais conseguida escritora existencialista de todos os tempos. Criada no seio de uma família com aspirações aristocráticas, tipicamente burguesa, Simone cresceu em dissonância com a sua condição familiar. As privações que se seguiram à Primeira Guerra Mundial obrigaram a família a alguma austeridade, o que abonou em favor do desprendimento material que caracterizava a autora de O Segundo Sexo. Uma infância aprazível, rotineira, com apenas um senão: a exigência, por parte da mãe, de uma educação religiosa. A então jovem escritora iniciou a sua primeira grande batalha pela afirmação da individualidade, quando, aos catorze anos, renunciou a todo o tipo e fé. Ao mesmo tempo, conta a biografia oficial, aprofundou uma amizade marcante com uma colega do colégio. Não sabemos até que ponto terá ido essa amizade, sendo-nos apenas certo que nela se misturaram sentimentos de reacção ao autoritarismo familiar e de libertação espiritual. Os dogmas e tabus sexuais promovidos na infância começavam a desmoronar-se. Terminou o seu bacharelato com uma tese sobre Leibniz, à qual se seguiram os estudos de Filosofia na Sorbonne. A partir de então, a vida de Simone de Beauvoir é indissociável do percurso de Jean-Paul Sartre. A existência em comum estendia-se aos debates nos cafés parisienses, crescendo entre os dois uma relação cheia de peculiaridades: desde a renúncia ao casamento, por ser considerado um «aburguesamento limitativo», à proposta falhada de uma vida a trio, com uma aluna de nome Olga Kosakievicz. Deste episódio retirou Simone alguns argumentos para o seu romance de estreia, A Convidada, começado em 1938 e acabado em 1941. A sua publicação deu-se em 1943. Pelos entrementes da relação foi-se consolidando o objectivo de uma vida dedicada à literatura, mais do que à filosofia e à acção política (inicialmente motivo de enfado). O quotidiano era pautado pelo convívio boémio, leitura de policiais, filmes de cowboys, música jazz. A experiência da ocupação nazi fez implodir na consciência de Simone de Beauvoir um turbilhão de ideias e de sentimentos, organizados posteriormente num existencialismo empenhado politicamente e caracterizado pelo duelo constante entre um individualismo de tipo anarquista e o sentimento de culpa daí resultante. É desse magma que surde um dos seus romances mais eloquentes e marcantes: O Sangue dos Outros. Nele somos levados aos conflitos internos de personagens oprimidas pela ocupação e, de certa maneira, também pela necessidade de resistência à ocupação. Sentimento de culpa é a expressão chave deste romance memorável, onde a necessidade de mentir, de vingar, onde o ódio, a liberdade de cada um, se desenrolam sem remorsos, em cenário de guerra, no sentido de uma reconciliação do homem consigo próprio. Simone de Beauvoir morreu em Paris a 14 de Abril de 1986. Pela sua voz, chegaram-me pela primeira vez estas inquietações: «O meu mal-estar não se dissipava. Será que eu servia para alguma coisa? Para mim, não era essa a questão. Não podia talhar-me um destino justo num mundo injusto; desejava a justiça. Porque é que a queria? Pelos outros ou por mim? Disseste-me um dia com raiva: É sempre por si próprio que se luta. Eu lutava contra o remorso e a culpa, a culpa de existir, a minha culpa.» (in O Sangue dos Outros, tradução de Miguel Serras Pereira, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1985)

3 Comments:

At 2:22 da manhã, Blogger Li fialho said...

Procurando sobre Simone de Beauvoir no buscador encontrei seu blog...gostei do texto muito bom. O interessante também foi que seu sobrenome é o mesmo que o meu..."Fialho".
Você é de Portugal? ou do Brasil?

 
At 2:31 da tarde, Blogger ana salomé said...

adorei o sangue dos outros, tanto que o dei a uma amiga.

 
At 3:38 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Um cu mesmo muito apetecível, e o resto que se vê e que não se vê mas se calcula também devia ser de primeira.
E o escritor americano Nelson Algren, grande amor da sua vida e autor do muito bom "O homem do braço de ouro", pois o Sartre era só para trabalhos intelectuais como se lê nas memórias da capitosa filósofa, tirou de certo a barriguinha de misérias, deve-a ter levado cheiínha. Pois não! Sou capaz de imaginar diálogos de cama: "Castor (era por este anexim terno que a conheciam), tens um cu de ouro!". "Não, respondia ela dengosa e entusiasmada, tu é que tens um...braço de ouro!". E riam de sensualidade brejeira , os desalmados!
Viva a filosofia.

 

Enviar um comentário

<< Home