26.2.06

NÃO SOU O HERÓI DO DIA

Não sou o herói do dia.
A vida me obrigou
a comparecer, sem convite, ao banquete,
em que me vejo, agora, erguendo a taça,
não sei a quem.
Soldado que lutou sem querer, por força
do original pecado, e em cujo peito não fulgura,
até hoje, nenhuma
condecoração.

Não sou o herói do dia. Passei pela vida
como quem passa
por um jardim público, onde há uma rosa proibida
por edital.
A rosa de ninguém, a rosa anónima
que aparece jogada sobre o túmulo
do desconhecido, todas as manhãs.

É bem verdade que, em menino, eu possuía uma banda de música
que tocava no circo, acompanhava enterro,
que tomava parte em procissão de encontro
e nos triunfos da legalidade.
Hoje, porém, - pergunto -, onde o pitão, o bombardino, o saxofone, a flauta, a clarineta,
os instrumentos todos
dessa banda de música?
Todos quebrados, os respectivos músicos caídos
num só horizonte.
Minha banda de música, se existe,
é agora
de homens descalços e instrumentos mudos.

Não sou o herói do dia.

Ah, o silêncio
de alguns amigos que deviam falar e não falam.
O grande silêncio
da banda de música que devia tocar e não toca.
O silêncio espantoso
de quem devia estar gritando
desesperadamente, e ficou quieto.
E ficou quieto, sem explicação.
Maestro, não é hora de tocar-se o hino nacional?

Ah, positivamente,
não sou o herói do dia!

Cassiano Ricardo

Cassiano Ricardo, jornalista, poeta e ensaísta, nasceu em São Paulo a 26 de Julho de 1895 e faleceu no Rio de Janeiro a 14 de Janeiro de 1974. Fez os primeiros estudos na cidade natal. Aos 16 anos publicou o seu primeiro livro de poesias, Dentro da noite. Iniciou o curso de Direito, concluindo-o em 1917. Foi um dos líderes do movimento iniciado na Semana de Arte Moderna de 1922, participando activamente dos grupos "Verde Amarelo" e "Anta". Formou, com outros autores, a chamada fase nacionalista. No jornalismo, Cassiano Ricardo trabalhou como redactor no Correio Paulistano e dirigiu A Manhã, do Rio de Janeiro. Em 1924, fundou a Novíssima, revista literária dedicada à causa dos modernistas e ao intercâmbio cultural pan-americano. Também foi o criador das revistas Planalto (1930) e Invenção (1962). Eleito, em 1950, presidente do Clube da Poesia em São Paulo, foi várias vezes reeleito, tendo instituído, em sua gestão, um curso de Poética e iniciado a publicação da colecção "Novíssimos", destinada a publicar e apresentar valores representativos daquela fase da poesia brasileira. Numerosos poemas de Cassiano Ricardo foram traduzidos para o italiano, espanhol, francês, inglês, húngaro, holandês e servo-croata. »