30.4.06

O que sempre pensei, mas nunca disse…

Di-lo António Pinho Vargas numa crónica sobre futebol: «Estou convicto que Lisboa e, a grande distância e por razões diversas, o Porto, serão as duas cidades portuguesas onde vivem mais provincianos.» (DN, 28 Abril 2006)

Tiradas de génio e coisas assim

No Diário de Notícias da passada sexta-feira, esta tirada de génio de João Miguel Tavares: «Para os sindicatos portugueses, há tantos trabalhadores incompetentes como linces na serra da Malcata. E mesmo esses, como os linces, convém protegê-los, para preservar a biodiversidade.» Tem toda a razão. É por isso mesmo que nunca percebi, por exemplo, como é que o Sindicato dos Jornalistas não se indigna firme e hirtamente contra tanta incompetência que abunda na imprensa nacional. E o pior, digo eu, nem é a incompetência de alguns jornalistas, extensível aos seus representantes sindicais. No caso dos professores, veja-se, muita da gente que trabalha para os sindicatos dariam, não tenho dúvidas, péssimos professores. Pelo que não sei qual dos cenários seria menos desejável, se ver essa gente nos sindicatos ou numa sala de aula a educar criancinhas. É provável que se passe algo similar com os jornalistas. Talvez isso explique por que no meio de tanta escandaleira, de tanta notícia sensacionalista, de tanta denúncia de corrupção, praticamente nunca sejam chamadas à primeira página, raramente às outras, eventuais escândalos e casos de corrupção que envolvam agentes do jornalismo português. Será que não existem? Será que os jornalistas são todos impolutos? Provavelmente são como os bispos portugueses, para quem os grandes males da humanidade poderão resolver-se praticando males menores aos olhos do Senhor.

QUE LÁBIOS JÁ BEIJEI, ESQUECI QUANDO

Que lábios já beijei, esqueci quando
e porquê, e que braços sob a minha
cabeça até ser dia; a chuva alinha
os fantasmas que rufam, suspirando,
no espelho, respostas esperando,
e no meu peito uma dor calma aninha
rapazes que não lembro e a mim sozinha
à meia-noite já não vêm chorando.
No inverno a solitária árvore assim
nem sabe que aves foram uma a uma,
sabe os ramos mais mudos: nem sei quais
amores vindos, idos, eu resuma,
só sei que o verão cantou em mim
breve momento e em mim não canta mais.

Tradução de Vasco Graça Moura.

Edna St. Vincent Millay
Edna St. Vincent Millay nasceu no Maine, a 22 de Fevereiro de 1892. Em 1912 publicou um poema numa antologia intitulada The Lyric Year. Os anos seguintes foram passados a estudar literatura e línguas, ao mesmo tempo que escrevia poemas e peças de teatro. Em 1917 publicou Renascence and Other Poems. Nesse mesmo ano mudou-se para Nova Iorque, assumindo uma postura rebelde e dedicando-se ao teatro. Sob o pseudónimo de Nancy Boyd, publicou algumas short stories. Famosa pelas diversas relações amorosas que foi cultivando ao longo da vida, Millay foi a primeira voz poética no feminino a receber o Prémio Pulitzer. Em 1923, ano da consagração, publicou The Harp-Weaver and Other Poems. Em 1927, juntou-se a um grupo de intelectuais que reivindicavam a absolvição de dois anarquistas acusados da morte de dois guardas no Massachusetts. O caso Sacco-Vanzetti, assim ficou conhecido, terminou com a execução destes e a prisão de Edna St. Vincent Millay. Na sequência dos acontecimentos, a poeta publicou no New York Times um texto sob o título Justice Denied in Massachusetts. Simpatizante comunista, acabaria por ser eleita para o National Institute of Arts and Letters (1929) e para a American Academy of Arts and Letters (1940). Em 1944, após vários envolvimentos amorosos e tomadas de posição pacifistas contra o fascismo espanhol e o nazismo alemão, Millay sofreu um esgotamento. Os seus últimos anos, marcados pela perda de familiares e amigos, adensaram o vício no álcool. Faleceu no dia 19 de Outubro de 1950.

29.4.06

Bem sei que não há nada
novo debaixo do céu,
que antes outros pensaram
as coisas que agora penso.

Porém, por que escrevo?
Bem, porque assim somos,
relógios que repetimos
eternamente o mesmo.

Versão possível de HMBF.

Rosalía de Castro
Rosalía de Castro nasceu em Santiago de Compostela, Espanha, em Fevereiro de 1837. Aos vinte anos publicou o seu primeiro livro de poemas, La Flor, ao qual se seguiram Cantares gallegos (1863) e Folhas Novas (1880), ambos em língua galega. A sua obra mais conhecida e lida em Espanha, En las orillas del Sar, foi publicada em castelhano no ano de 1884. Os seus poemas, desprovidos de esperança, são um ponto de partida para a lírica moderna. Rompem com as formas métricas do seu tempo, representando imagens inquietantes e pouco convencionais. Escreveu também algumas novelas, mas foi com os poemas galegos que se projectou na história da poesia moderna. »

28.4.06

INSÓLITO

O fim de um século.
Estalam-nos na voz os massacres
de quantos acreditaram que viviam
sob a protecção de um céu
igualmente claro, igualmente sem mágoa.
Como harmonizar esta ruína
de longos medos construída
e tornar possível o amor
em olhares saturados de ódio,
ou de lágrimas, ou de seca lucidez?
Com quantos golpes de indiferença
se destrói um mundo?

Graça Pires

Graça Pires nasceu na Figueira da Foz em Novembro de 1946. É licenciada em História pela Faculdade de Letras de Lisboa. Publicou: Poemas (1990) [Prémio Revelação Poesia da APE, 1988], Outono: Lugar Frágil (1994) [Prémio Nacional de Poesia da Vila de Fânzeres, 1993], Ortografia do Olhar (1996) [Prémio Nacional de Poesia 25 de Abril], Labirintos (1997) [Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama, 1993], Conjugar Afectos (1997), Reino da Lua (2002), Uma Certa Forma de Errância (2003) [Prémio Literário Maria Amália Vaz de Carvalho].

Sei lá

Nos livros, a malta faz notas de rodapé. Nos weblogs fazem-se links. E os links para si próprio são assim tipo as notas de rodapé do género: «veja-se, do presente autor…» O link é só uma actualização, à medida dos tempos que correm, da velha nota de rodapé.

INSÓNIA

in Vida Involuntária.

Na íntegra (ou quase): «É um blogue cheio de vitalidade, aberto a comentários e debates, que o autor (HMBF) acolhe sempre com algum "panache" e frontalidade. Fortemente vocacionado para a divulgação e comentário de autores de Poesia (nacionais e de outras Línguas) - o próprio blogger a pratica, e bem - não deixa de incluir posts de outras áreas artísticas, incluindo, além disso, temas políticos, jornalísticos, da crítica literária, chamadas de atenção a outros blogues, etc, etc, tudo sem pedantismos, nem segregacionismos "homolíticos" (isto é um " neologismo", que acaba de me ocorrer) ou assepsias vocabulares enojadas, (tipo: não se pode escrever "caralho","puta" ou "foda-se").Outro factor que estimula o interesse é o facto, de tendo alguns colaboradores, não se eximir a discordar de opiniões, evitando assim, aquele efeito de sacristia e de sociedade de elogio mútuo, que noutros blogues com "team-members" é sumamente enfadonho.Visitem, que ficam ainda mais insones...»
Este post é a prova provada de que «há muito onanismo no "networking" dos blogues». No entanto, permitam-me lembrar que as práticas onanistas deste que vos escreve sempre foram declaradas. Quem nunca pecou, que atire a primeira pedra. Ou então mude-se.

27.4.06

prossegue a camioneta
nesta irregularidade de vago
ocupado logo o da frente
com o velho cabeceando
seguindo-se os três miúdos
feios e tossicando a amargura
de casa trazem as roupas coçadas
as sombras das priscas
que o pai consome
até ao tutano a maçã roída
da rapariga do grupo
a única que ri com os brincos
de prata a tez e macilenta
a face por onde caem os olhos
e se depositam o dos rapazes

Ana Paula Inácio

Ana Paula Inácio nasceu no Porto, em 1966. Publicou dois livros de poesia - As Vinhas de Meu Pai (Quasi, 2000) e Vago Pressentimento Azul Por Cima (Ilhas, 2000) e um livro de contos - Os Invisíveis (Quasi, 2002). Está representada nas antologias Anos 90 e Agora (Jorge Reis-Sá, Quasi, 2001) e Poetas Sem Qualidades (Manuel de Freitas, Averno, 2002). Vive nos Açores, onde ensina Filosofia.

Estas contas não são minhas

Esqueçamos a Primeira República. Desde a nomeação, em 1926, de António de Oliveira Salazar para Ministro das Fianças até à revolução de 1974 passaram 48 anos. Cavaco Silva foi Primeiro-Ministro entre 1985 e 1995. Juntando estes 10 anos aos 48 anteriores, obtemos este belo resultado: 58 anos. Mais dois anos de Francisco Pinto Balsemão: 60 anos. Mais um ano de Sá Carneiro e Freitas: 61 anos. Mais um ano de Mota Pinto: 62 anos. Coligações? Não é preciso. 62 anos e mais qualquer coisa a sermos governados pela direita e ainda temos de comer com eles a queixarem-se do país que temos, do povo que temos, das instituições que temos, etc. Bardamerda!

26.4.06

William Newman
Saberá alguém da semente que nos guiou até aqui? Do fruto rimado a dor? Dizem que é tudo em nada ser, mas para mim é mesmo nada. Um nada que abocanha o vazio, um nada que se alinha na ponta da espada, um nada tão nada que o silêncio não basta. Na raiz - é o medo que levanta a força de querer, o instinto de amar não mais que o próprio. Para que não mais se cante amor: desimpedir a morte.

DO TITANIC NO ECRÃ

«A poesia é uma loucura de palavras»*:
golfadas de água, pistons, caldeiras,
mar de silêncio, música de pianoforte,
escadaria, ascensores, golfadas
de água, trajos de gala, icebergs,
mar de silêncio, amor, morse, foguetes
de luz, música de pianoforte, amor,
decotes, plumas, tules, icebergs,
pistons, camarotes, madeira envernizada,
tapeçarias, ascensores, morse, amor,
mar de silêncio, salva-vidas, escaleres,
escadas de corda, sino, apitos, foguetes
de luz, golfadas de água, escaleres, jorros,
mar de silêncio, morse, sino,
escaleres, amores mortos, morse,
morte, amor, morse – disse
um grande poeta meu contemporâneo.


*Ruy Belo

Fiama Hasse Pais Brandão

Fiama Hasse Pais Brandão nasceu em 1938, em Lisboa. Poetisa, dramaturga, ficcionista, ensaísta e tradutora, frequentou a secção de filologia germânica da Faculdade de Letras de Lisboa. O seu nome costuma ser associado ao grupo de poetas de Poesia 61, movimento no âmbito do qual publicou Morfismos. Mas já antes publicara Em Cada Pedra Um Voo Imóvel (1957), que lhe valeu o Prémio Adolfo Casais Monteiro, e O Aquário (1959), dois títulos mais tarde expurgados da obra canónica. Ao lado de Gastão Cruz, com quem foi casada, foi uma das responsáveis pela Antologia de Poesia Universitária (1964). Nos últimos quarenta anos, colaboração sua encontra-se dispersa por inúmeras revistas literárias, como Seara Nova, Cadernos do Meio-Dia, Brotéria, Vértice, Plano, Colóquio-Letras, Hífen, Relâmpago, Phala, etc. »

25.4.06

Aragem

Era Outono, já crescera, florescera e dera frutos. Agora, sentado num banco estilizado de um ex-jardim, fazia o pousio.
No frio do Inverno próximo quase tudo era indiferente. A sombra coada das magnólias marcava o chão de desenhos ilógicos. As pessoas que passavam só raramente estavam lá.
Bailava-lhe na mente aquela palavra difícil, substantivo de dicionário, fazia-se comummente acompanhar de verbos como dar, tirar, ou mais complicado ainda partilhar. Vida. Que se tem, que se teve.
O ex-jardim tornou-se um ex-espaço, ex-remodelado por um ainda arquitecto famoso.
Uma fina aragem arrepiou-lhe a nuca. Desatou a melancolia. Olhou para o lado, não havia ninguém.
Existiam apenas lembranças no caminho para casa, das pedras, da extinta loja da esquina. A cidade sofria mutações lentas, umas de velhice outras de fúria.
Uma escadaria puída conduzia à ex-casa, ex-lar, mera habitação. O garrido dos reposteiros contrastava com o verde-escuro da alma, as estantes cheias de livros mantinham-se mudas e o tempo tornara o canário monocórdico. Nem sempre assim fora, houve um tempo de sol aberto em dias nebulosos, de calmaria nos passos dados.
Na então casa, a ex-mulher, ex-amante e ainda amada enchia cada canto de plenitude. Os livros nas estantes espalhavam versos nos espaços, os reposteiros avivavam ainda mais as cores das plantas e o canário nunca cantava menos que uma sinfonia.
O pó dos anos toldou a memória. Frustrante a memória. Magoa em cada sinapse porque torna demasiado presente a ausência.
Quando o hábito forçou o abrir de uma janela, a fria aragem atingiu-lhe o rosto e com ela a consciência que, até a sopa era de ontem. A roseira na varanda há muito não dá flor. Tem as raízes sufocadas de nós que ela própria deu.
É o melhor espelho que possui.
Cada minuto é um ano. Desde que lhe deram ânsias de morte o tempo abrandou.
No Inverno próximo há um lar. Chamam-lhe assim decerto porque nunca tiveram nenhum. Aí os reposteiros são brancos e higiénicos. E senhoras não menos brancas e higiénicas suprem as necessidades. Dizem. Há um jardim verde com pássaros devidamente afinados e a sopa, essa é sempre de hoje. Mas vontade de comer gastou-se, como se gastaram de passos, as escadas.
Aurora Silva

MALVA 62 por uma tarde de elite

Malva 62 (Quasi Edições, 2005), o último livro de Daniel Maia-Pinto Rodrigues, é um livro sui generis no conjunto dos livros publicados por este autor até à data. Realmente, é a primeira vez que a escolha dos poemas a publicar se deve à intervenção de uma pessoa da confiança (Luís Miguel Queirós) do autor, a quem este entregou um acervo lato de escritos novos e antigos com vista à selecção de textos que não excedessem os seis versos. Trata-se, portanto, de uma decisão deliberada e assumida de montagem de um livro a partir de textos ou fragmentos de textos publicados em anteriores livros, acrescidos de textos inéditos entretanto produzidos. O resultado final não é uma antologia de poemas do autor, é um novo livro. Excelente o trabalho de “encenação”, a organização das peças deste puzzle que a sintonia entre Luís Miguel Queirós e Daniel Maia-Pinto Rodrigues possibilitou.

A poesia de Daniel Maia-Pinto Rodrigues é, como toda a poesia, para ser dita. Imagine-se este livro como um passeio no jardim onde uma espécie de conversa serenamente caótica vai surgindo, uma troca de vozes que se mistura à liberdade do estorninho ou ao avanço das ervas. É o próprio autor que está presente em seus gostos pessoais ou peculiar atenção, observador em seu posto de escuta resgatado à degradação do mundo. E é um livro que resulta em toda a sua força quando “actuado” ao vivo, ou assim lido, ponto e contraponto de emoção subtil e conquistada ironia.

Conta-se que Almada Negreiros costumava dizer a Fernando Pessoa: “tu és o homem do paradoxo, eu do doxo”. Queria talvez dizer com isto que era afirmativo, característica revelada na forma como se assumia na sua particular inteireza. Ora, este livro tem muito (de) doxo, uma configuração de frontalidade que o tornará porventura menos imune a críticas de quem não o perceba como expressão de subtileza essencial ganha e destilada de uma forma que se pretende assim. E é nesta falta de imunidade que, paradoxalmente, a força deste livro se constitui e revela. Porque/mas há um paradoxo sempre latente, que em título de livro anterior se expressa assim: “O afastamento está ali sentado”. O autor sabe perverter a beleza que logra entrever ou captar, abrindo de registo lírico para outro desejadamente irónico, travesso (no sentido mais fundo que aqui possa caber) e a realidade e o sonho misturados saem a ganhar quando a força, exposta no esplendor da sua fragilidade máxima, nos aparece, então sim, como um mundo de coisas belas que é profundamente humano na sua inteireza: nada se exclui. Dito em direcção ao título do post: o verdadeiro poeta leva o sagrado a passear pela mão. Este livro, e os outros, são esse passeio. O discurso sobre o mundo, ou o texto que elege uma determinada concretização da beleza, são exercícios para os fracos. Aqui é outra coisa. É o tudo ou nada, e ganha o tudo. Sempre entre o bosque e a asa do frango assado, entre a tábua dos queijos e os fulgurantes túneis de luz.

Aproveito para dizer que para mim a poesia não é, não quero que seja, uma brotherhood of men. Só distingue quem sabe valorizar. Eu sei valorizar; gostaria que fosse esta a minha única forma de distinguir. Não estou a ser elíptico, estou a dizer que aqui, como porventura noutros lados, nem tudo merece o mesmo tipo de atenção.
Rui Costa

Cantiga de Mariana Alcoforado à maneira de lamento

Novas Cartas Portuguesas

Me tomam por tomada
a mim se dou
meu peito e meu convento
em troca de mais nada

que alheada andava
tão alheada andava

Me davam por freira
conformada
no hábito que habito
ou habitava

que alheada andava
tão alheada andava

Me têm por lei presa
tão bem posta em dádiva
pois me libertei

que alheada andava
tão alheada andava

Me dizem que morra
se por mim amei
com a ameaça funda que pequei

que alheada andava
tão alheada andava

Me sobram porém hoje os dias
que perdi
e a clausura então que não rasguei

que alheada andava
tão alheada andava

28/3/71

Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa, in Novas Cartas Portuguesas, Editorial Futura, Lisboa, Maio de 1974.

24.4.06

puro divertimento

semente expulsa da corola
procura estacionamento

a sapiência do cuco
soube-lhe a ego

couve-flor, em forma,
almeja jarro compatível

Aurora Silva

23.4.06

Se Portugal é um país de poetas…

A blogolândia lusa é cada vez mais uma nação de aforistas.

haikais

i)
a alvura da flor
não pediu licença
à madrugada

ii)
a pedra inquieta
enfrentou
o sal do mar

iii)
nunca o orvalho
embriagou o beija – flor

iv)
o traço separa-se da letra
e mata a palavra

v)
havia um penedo
numa encosta velha
envelheceu com ela

vi)
então o branco
olhou a rosa
estranhou a palidez

vii)
uma gota
obstinada
nasceu no mar
morreu em terra

viii)
o reflexo do lago
a mais lata forma
de realidade

Aurora Silva

HOMEM

Inútil definir este animal aflito.
Nem palavras,
nem cinzéis,
nem acordes,
nem pincéis,
são gargantas deste grito.
Universo em expansão.
Pincelada de zarcão
Desde mais infinito a menos infinito.

António Gedeão

António Gedeão, pseudónimo de Rómulo de Carvalho, nasceu em Lisboa a 24 de Novembro de 1906. Licenciado em Ciências Físico-Químicas, foi professor, pedagogo e autor de manuais escolares, historiador da ciência e da educação, divulgador científico e poeta. Publicou o seu primeiro livro de poesia, Movimento Perpétuo (Coimbra), em 1956. Em 1964, para comemorar o 4º Centenário do nascimento de Galileo Galilei, escreveu o "Poema para Galileo", que foi traduzido para língua italiana por Roberto Barchiesi, e publicado, em edição bilingue, pelo Istituto Italiano di Cultura. Este poema, musicado e cantado por Manuel Freire, conheceu uma grande expansão, tal como a "Pedra Filosofal", ou a "Lágrima de Preta". Faleceu em 19 de Fevereiro de 1997 na cidade de Lisboa. »

JMS said...

«A blogosfera é o meio de comunicação mais livre e democrático que existe (aliás, é o único a quem se pode aplicar tais adjectivos), e muita dessa liberdade e democracia têm que ver com o facto de qualquer um, na blogosfera, poder opinar, por muito estúpida e irreflectida que seja a sua opinião. Fazendo um paralelismo com o sistema democrático, ninguém acha (pelo menos ninguém o admite) que o Zé das Couves, cavador em Pencas de Baixo e homem sem qualquer instrução formal, deva ser proibido de exercer o seu direito de voto só porque é analfabeto e nunca teve tempo nem oportunidade para meditar nas magnas questões de natureza política que constituem entretém e ganha-pão de um almirante da Opinião como o Sr. J. Pacheco Pereira. Ora, eu não percebo que direito tem JPP de execrar o baixo nível de discussão nas caixas de comentários da blogosfera e defender a sua erradicação. Se são eleitores, meu senhor! Gente que, por muito ignara e insultuosa que seja (ou talvez por isso mesmo), nunca se esquece de ir deitar a cruzinha no partido que sustenta o Sr. Pereira (ou o Sr. Mendes, ou o Sr. Sócrates, ou o Sr ...). Assim sendo, como é que é? O povo serve para umas coisas e para outras não? Serve para opinar politicamente (nos locais e tempos próprios, of course), mas já não serve quando se trata de berrar uns comentários desaforados sobre a pessoa A, B, ou C, ou sobre a situação X, Y ou Z? Olhe a coerência, Dr., a coerência, que é um bem precioso, como diz o poeta.Claro que toda a gente tem o direito de abrir ou não abrir caixa de comentários, e podem encontrar-se excelentes motivos para defender ambas as opções. Não é isso que discuto. O que me aborrece é ver um político de carreira achincalhar o mesmo povinho que lhe põe o pão (e que pão!) na mesa; isso parece-me de uma falsidade intolerável. Por que é que o JPP não vai falar assim grosso para os comícios e para as campanhas de rua; por que é que à boca das urnas tudo são adulações e um fazer olhinhos à populaça, e só depois do frisson eleitoral vêm estes hipócritas revelar o seu desprezo pelo estúpido e burgesso zé-ninguém? (O qual não é mais burgesso nem inculto, aliás, do que a própria classe política; a única diferença é que veste pior.)»

JMS é autor do weblog Ad Loca Infecta. Ler também, a este propósito, o post Anda Pacheco!, de André Moura e Cunha, com um bom apanhado final de posts publicados noutros blogs acerca do mesmo assunto. E ainda este comentário de Sérgio Lavos no Auto-Retrato.

22.4.06

Sinergias alternativas

Ontem, no programa Expresso da Meia Noite (SIC Notícias), interessante debate sobre o “ouro negro”. Nuno Ribeiro da Silva Especialista em Questões Energéticas (parece ser este o nome da pessoa em causa), tentou desfazer o mito de que o elevado preço do petróleo deve-se essencialmente a uma maior procura por países como a China e a Índia. «As reservas estratégicas americanas correspondem a 1 ano e meio da produção mundial.» - disse. Ou seja, se o petróleo acabasse hoje os EUA ainda teriam à sua frente 6 anos de pleno consumo. Depois apresentou números: «os EUA representam 5% da população mundial e consomem 25% dos barris produzidos anualmente; a China e a Índia, conjuntamente, representam 50% da população mundial e consomem 11% dos barris». Segundo Nuno Ribeiro da Silva, sem rebate que se visse, a solução do problema passaria pelos EUA, passo a citar, «evitarem continuar com uma posição de laissez-faire em termos de consumo de petróleo». Como não percebo nada destes assuntos, ao que parece sou anti-americano, ainda que nunca tenha estado presente em manifestações contra a globalização e jamais tenha agarrado num cocktail molotov, não tenho nada a comentar.

21.4.06

O INSONE

Meus olhos abertos!
Levai-me até ao mar
a ver se adormeço!

Aqui tão distantes,
não se hão-de fechar
meus olhos abertos.

Chorarão lembranças,
formarão um mar
de pranto e desejo.

Um mar sem consolo,
que me há-de levar
à insónia eterna.

Não imitam os beijos
nem doces cantares
a onda e o vento.

A onda e o vento!
Quero ver o mar,
a ver se adormeço!

Juan Ramón Jimenez

Juan Ramón Jiménez nasceu em Moguer, no sul da Andaluzia, em 23 de Dezembro de 1881. Escreveu os primeiros versos na adolescência, quando frequentava o colégio de jesuítas do Porto de Santa Maria (Cádis). No Outono de 1896 foi para Sevilha estudar Direito, por vontade paterna; e pintura, por gosto próprio. Um ano depois, publicou num jornal sevilhano um poema inspirado numa rima de Gustavo Adolfo Bécquer. Em Março de 1899 começou a publicar versos na Revista Nueva, de Madrid. Por motivo de doença, regressou a Moguer. Em 1900, após experiência efémera na capital espanhola, publicou os primeiros livros: Ninfeas e Almas de violeta. Em 1901 esteve internado alguns meses num estabelecimento psiquiátrico. Desde então a sua vida dividiu-se entre a terra natal e a capital espanhola. Contra a vontade da família, casou com Zenobia Camprubí Aymar em 1916. Em 1917 publicou um dos seus livros mais aclamados: Platero y yo. Pouco depois de estalar a Guerra Civil, o governo espanhol concedeu ao poeta um passaporte diplomático. Viveu em França, EUA, Cuba, etc. Em 1940 recomeçaram as hospitalizações que o poeta teve de sofrer por depressões nervosas e achaques por estas provocados. Em 1956 foi concedido a Juan Ramón Jiménez o Prémio Novel da Literatura. Zenobia, morreu três dias depois, vítima de cancro. Juan Ramón faleceu em 29 de Maio de 1958.

20.4.06

O Faroeste da Rede

A discussão sobre as caixas de comentários nos weblogs é anacrónica. Não vou perder tempo com ela. Quero apenas dizer que compreendo os bloguistas de weblogs mais mediáticos que não possuem, nunca possuíram ou deixaram de possuir caixas de comentários. Isto porque, como bem alude Pacheco Pereira em artigo parcialmente citado por Eduardo Pitta, esses weblogs são mais apetecíveis para quem pretenda masturbar-se com «insultos, ataques pessoais, insinuações, injúrias, boatos, citações falsas e truncadas, denúncias.» Essas putativas caixas de comentários têm/teriam uma visibilidade que a maioria dos weblogs jamais logrará alcançar. Por isso mesmo, não consigo deixar de interrogar-me sobre o que levará alguém que escreve num dos weblogs mais lidos da blogolândia lusa, e, quanto a mim, um dos melhores, a ter comportamento similar. Sinceramente, não compreendo. Já agora, e a propósito de uma mesa redonda onde se discutirão, por certo, algumas destas questões, gostaria apenas de sublinhar o seguinte: a blogolândia reflecte a vida real. O que se pratica nas caixas de comentários, pratica-se todos os dias nos mais altos e insuspeitos meios. Ele é a intriga, a conspiração, o diz que disse. Sempre na calada das costas dos atingidos. Uma pergunta: será que aqueles que estarão sentados em debate nunca disseram nada, "off the record”, acerca uns dos outros? Se sim, seriam suficientemente arrojados para o dizer olhos nos olhos, tête-à-tête?

Não é possível estabelecer uma ligação.

Daqui a três dias, faltará um mês para o Insónia completar um ano de actividade. Nascido das cinzas de um outro weblog, este espaço tem sido por mim encarado como uma espécie de parque infantil. Sempre assim encarei o fenómeno dos weblogs, já lá vão quase três anos de prática: um brinquedo adulto, para gente que acha que tem alguma coisa a dizer. Se quiserem, um jogo. A coisa, entretanto, importantizou-se. O entusiasmo já não é o mesmo. A malta leva-se demasiado a sério e eu, mais que os outros, sou culpado de tudo e de todos. Porque pesam as palavras de Dostoievski, o próximo mês será de reflexão… e prática. P.S.: - Olha, sabes? Parece-me sempre que sou vítima de uma ilusão – murmurou Raskolnikoff.

TAV 69 remisturado por Filme Amador

9
entre as rosas
e os alhos
malaguetas

entre os alhos
e as malaguetas
rosas

o importante é pôr erva
na rua

10
diverte-te
com essa maldade
ditado popular

11
fora daqui homem mau
faz o teu saco
leva as tuas roupas
e os teus livros
e o teu pente
e nunca mais digas que me amas
leva a tua vida em fotos
e nunca mais

12
x – ela é uma criatura
do outro mundo.
y – eu vou facilitar-lhe
o acesso.

13
tururururum
ela alimenta-se daquilo
flores de quatro carreiros
a partir dali ia ser decedência
nada plausível
nico abate-a

1, 2, 3, 4
5, 6, 7, 8

Nuno Moura

19.4.06

Para António Pedro Ribeiro

As mulheres vão chegar

No sótão
os livros resistem
as guitarras acendem
os livros mexem-se
e as mulheres vão chegar
doentes
coloridas
prontas para a fuga
ao rude golpe do amor
para lá do palco da loucura
quando o absinto esgota
a dor toda de ser triste
ou ter vergonha
e o ar aquece
são mãos que sobem
pela voz quente de Jesus
beijando o templo fundo
de uma puta
que ama a humanidade
porque a humanidade é pobre
e não canta
e por vezes não ri
nem chega
como nós ou o mar
porque as mulheres vão chegar
verdes
e em fúria

Rui Costa

TOWERING INFERNO
Pogrom, in Kaddish (1993)
Woman's voice:
They received us with open arms
This will be the haven
You are in the free country.
Man's voice:
Pogrom.

TAV 69 remisturado por Filme Amador

5
x – dás-me uma pontada?
y – onde?
x – desculpa. uma sagres.

6
islamista
82 páginas
quer dizer
que eu vou viver
82 anos
como a minha
avó brasileira

7
dia internacional do homem
e do seu cão de companhia
e da sua gaiola aberta
e vazia
ei homem
vem ganhar aqui
o que perdes nos hipermercados
baixa a cabeça
considera o publichão
deite-se um pouco
sente-se um pouco
compre férias
use um cartaz
ANDAM AQUI PESSOAS
QUE SÓ FAZEM O QUE QUEREM
E SÃO COMO SÃO
grande homem
o colchão no centro comercial é seu
venha habitar o espaço que ganhou
(se levar o colchão perde o direito
de superfície)
já experimentou levar um balcão
leve agora uma vareta

8
lança no teu prédio berardo
uma associação cultural berardo
associação cultural berardo nº14
da rua berardo tal
associação cultural berardo nº157
rota do barro berardo
édredon berardo

1, 2, 3, 4

Nuno Moura

18.4.06

A TVI É UMA MERDA.

17.4.06

L-E-T-R-A-S PARA SIGUR RÓS

para J

é dágua
de-água
o meu vestido
o teu
soprado am-ar
líquido
um gás azul
o ponho aos pés
os teus pés e
os teus tornozelos
(teu-o fantasma
predilecto)

são sem
nada
não incomodam ar
não pressionam
(onde a cabeça
insiste, e então)
e respira
rente ao
ar
ao amor
de-o-ar a inspira-
te a expirar
e assim…- e
tu?


Rui Costa

TAV 69 remisturado por Filme Amador

1
um grupo de reclusos
num certo ponto
da sua confidencialidade
percebem que nunca
estiveram melhor
o que fazem em conjunto
é o mais importante
trabalho, escrita de poesia,
manutenção da biblioteca
e sexo

2
o açúcar domina o mundo
flauta grave
choco com chocolate

3
x – consegues passar ondas positivas?
y – não.

4
poesia é chegar a casa
poesia é o pouco tempo
que levas entre chegar a casa
e pores-te a dançar
poesia é brincar e rir
e silêncio onde às vezes
se escrevem umas palavras
quem escreve poesia deitado
de costas com os braços esticados
escreve no tecto do silêncio
o que menos interessa na poesia
é escrevê-la no tecto do silêncio
poesia é brincar e rir
e se para nós não há corpos que se toquem
leitores e ouvintes
vamos dançar

Nuno Moura

Na cama com… Rita Ferro


imagem respigada aqui

Quis o destino que a minha primeira vez com Rita Ferro acontecesse no campo. Rodeado de ovelhas, sumiços mugidos e passareiro vário, caiu-me em mãos, vindo vá deus saber de onde, uma revista Vidas publicada com o Correio da Manhã. Às páginas 51, um título chamou-me a atenção: «O sexo do povo». A quem teria o senhor, nestes dias pascais, concedido o dom e a destreza de tão custoso ditame? Isso mesmo, a essa «fêmea do povo, sem papas na língua», de seu nome Rita Maria Roquette de Quadros Ferro Ochôa. Filha do escritor António Quadros e de Paulina Roquette Ferro e neta dos escritores Fernanda de Castro e António Ferro, diz que publicou nove livros, tem projectos vários e crónicas espalhadas pelos quatro (re)cantos da imprensa nacional. É caso para dizer: filho de peixe sabe nadar. Mas saberá? Em crónica inspiradíssima, informa-nos a senhora da seguinte estatística: «80% das mulheres com mais de quinze anos de casadas acha o sexo uma chatice». Números redondos, certamente, para não atrapalhar a prosa. Pergunto-me: desses 80%, quantas andarão pelos cinquentas? E quantas andarão pelos quarentas? E quantas andarão, por que não, pelos trintas? Eu, daqui a nada, farei quinze anos de relação sexual e tudo com a minha de sempre. Como o tempo passa! No entanto, temos meros juvenis 32 aninhos. O sexo ainda vai sendo uma alegria. Mas para a aristocrática cronista, a coisa põe-se, quando se põe, nestes termos: «Um horror. Começa com o tirar da camisa de noite e das meias e acaba naquela “desinça” maçuda, que, sem unto de espécie alguma, nos deixa assadas!» É claro que quem fala é uma «fêmea do povo, sem papas na língua». Se não tem papas, para dizer estas coisas, o que terá a fêmea na língua? Eu só sei que a minha pobre mãe, escutando a declamação, saiu-se-me com esta: «Ó filho, assada sei o que é. Agora isso da “desinça” maçuda nunca ouvi falar!». Rita Ferro explica, mãezinha: «Não acertam, coitados. E, para acertarem, é preciso muito tempo e já a gente está cansada. Fazem tudo ao contrário e quando, enfim, nos arrancam um sorriso, não vêem, porque a luz está apagada, e lá se vão eles para outro sítio, em vez de se deixarem estar quietos!» Pergunto-me como seria se a luz tivesse ficado acesa? Mas não vale a pena perder-me em suposições e quejandos, pois a mulher que ora se debruça sobre o sexo do povo "não perde pela demora". Num repente, dá-nos com este naco de prosa nas fuças que ficamos todos atordoados: «Definitivamente, acham que o pouco gozo que sentem não justifica a higiene a que obriga, o frio que rapam, todo aquele peso em cima, que as cilindra». E mais: «Por tudo isto, muitas já desistiram de se lavarem por baixo ou de raparem os pêlos, como estratégia para tentar dissuadi-los, pouco a pouco, ferindo-os nas pernas ou gaseando-os com aquele cheiro a maresia, tão sulista, cuja origem ninguém sabe se são algas ou descargas directas dos grandes adutores de esgotos junto à costa». Fónix!!!! Deve ser por estas e por outras que eu tinha um vizinho, lá no campo, que se entretinha com as ovelhas. E um outro que, de quando em vez, se atirava à burra. Contou-me o meu pai que havia mesmo um a quem não escapava uma única galinha das que tinha no galinheiro. Quer lá um homem, homem que seja do povo, pôr-se numa fêmea a cheirar a esgoto? Antes as ovelhas, as burras e as galinhas. Mas espera aí… Eles, «coitaditos: só tomam banho aos domingos, parcialmente, as unhas é o negrume que se vê, e aquele cheiro tão típico, entre lodo, sudação acumulada, arroto com fedor a azeitona e mil nove e vinte, que as mulheres do povo, embora não gostem, acham varonil.» Imagino o que acharão as mulheres do não-povo. As mulheres, digamos assim, high society. Que acharão elas, reluzindo de spa, quando engajatadas no decote, exibem os broches num Lux de uma Kapital a seus galos de crista perfumada? E eles, coitaditos, tomando duas e três banhadas por dia, as unhas roídas ao sabugo, com aquele cheiro tão típico das amantes estrangeiras, arrotando a marisco e uísque de malte! Ó, valha-nos deus nosso senhor! Já não há coglioni esquerdo para aguentar tanto espermicida vocabular.

Bloco de apontamentos # 18

Estive a fazer as contas: a primeira vez que fui a tua casa encontrei uma nota de dois mil escudos no meio do chão e reencontrei-te passados seis anos, tu vinhas das finanças; também encontrei uma nota de cinco Euros na calçada há dois anos, quando me dirigia para a Aula Magna, para cantar o “Requiem pelas vítimas do fascismo em Portugal” de Lopas-Graça. Dois mil escudos correspondem a 10 Euros, e 5 Euros a mil paus. O dinheiro antigamente era paus ou contos, agora tudo tem de ser convertido em Euros. Quando era pequena, o dinheiro convertia-se em gelados.

MJLF, XIS, 1995, acrílico s/esculturas em cimento

Maria João

16.4.06

Bloco de apontamentos # 17

Perguntas-me pela música e descrevo-te uma polifonia de Estêvão de Brito, com os poemas das lamentações de Jeremias, numerados com letras do alfabeto hebraico também musicadas, formando vários intermezzos. Dizes-me que Évora está sempre presente e entoas uma nota média. Peço algo mais grave e exemplifico – tu tens voz de tenor abaritonado, como quase todos os homens portugueses. Despedes-te a rir no latm, cantando gregoriano e acenando uma das mãos.

MJLF, páginas de Vale de Corvos 1992, técnica mista s/papel, 10x26cm.

Maria João


15.4.06

Nem de propósito

No Mil Folhas de hoje, dois maus exemplos de recensões a livros de poesia. Na página 10, Eduardo Pitta aborda a tradução dos Poemas de Oscar Wilde levada a cabo por Margarida Vale do Gato. Já afirmei e reafirmo o meu respeito pelo crítico (de poesia) Eduardo Pitta, autor de uma coluna na revista LER que primava por uma inteligente capacidade de síntese e cuidada abrangência. O texto que agora me decepciona, intitulado Contra os filisteus, consiste na sua grande maioria num resumo biográfico do autor de O Retrato de Dorian Gray. Não sou leitor que despreze o enquadramento biográfico de um autor, ainda mais, como é o caso, se for um autor que admire profundamente. No entanto, a quem esteja interessado nos poemas de Oscar Wilde, o que acrescenta ficar a saber, através de uma recensão, que Wilde teve uma ligação com o pintor Frank Miles, casou com Constance Lloyd, de quem teve dois filhos, manteve uma ligação extra-marital com Robert Ross, conheceu Lord Alfred Douglas, etc? Isto tudo para, sobre os poemas, sermos informados que: «A luta de Cristo contra os filisteus, por si associada à ambivalente hipocrisia da “boa sociedade” face aos homossexuais, encontrou nos poemas uma adequada caixa de ressonância.» E mais isto: «Eu diria, sem ironia, que esta poesia desmente o aforismo wildeano de que “toda a poesia medíocre é sincera”. Mesmo a balada escrita na prisão, descontando o módico da contextualização, tende a colidir com as leituras contemporâneas do romantismo». Caso para dizer que Wilde merecia mais. Também Adília Lopes merecia outra abordagem num texto, supostamente mais reflexivo, que Eduardo Prado Coelho lhe dedica duas páginas à frente. O pretexto é a edição de Le Vitrail la Nuit / A Árvore Cortada, recentemente publicado pela & etc. No meio de uma enxurrada de citações (20, se bem contei), ficamos a saber que Prado Coelho está em desacordo com Adília num ponto: «há uma poesia da presença que assume a irradiação de um rosto, de um gesto ou de um objecto. Isso não impede que exista também uma poesia da ausência. A presença/ausência não recorta a distinção entre poesia e ética da bondade». Para concluir, 10 citações depois, que: «A poesia de Adília Lopes é um enigma que neste livro se confirma e adensa.» Ou seja: o que num caso há de biográfico em excesso, há no outro de citações. Reflexão e análise, pouco. Muito pouco. Tão pouco que seria preferível, talvez, ocupar as páginas com poemas de Oscar Wilde e Adília Lopes.

14.4.06

4 filmes

Stephen Gaghan, argumentista de um surpreendente Traffic (2000), atirou-se agora às câmaras com um não menos politicamente incorrecto Syriana (2005). Merecedor de dois prémios da academia de hollywood, entre os quais um merecidíssimo para George Clooney, Syriana peca apenas por um argumento excessivamente complexo. O centro das atenções é um agente da CIA, interpretado por George Clooney, apanhado numa dedálea teia de interesses em torno da indústria petrolífera. Para o espectador menos esclarecido em matéria de política internacional, como é o meu caso, é bem provável que grande parte do alcance do argumento passe ao lado. Não obstante, a história cativa e o filme vê-se com constante interesse. À mistura, a corrupção que surde da promiscuidade entre os homens do petróleo e os homens da política. Em suma, a ideia com que ficamos é precisamente esta: há apenas uma política, a do petróleo. As múltiplas histórias que se vão desenrolando ao longo do filme adensam essa complexidade, mostrando-nos um Médio Oriente manietado pelos interesses ocidentais e por uns tantos que, a Oriente, têm algo a ganhar com os interesses dos seus propagados inimigos.
***

Apesar de Spider (2002) estar entre os meus filmes preferidos, nunca fui grande apreciador do cinema de David Cronenberg (n. 1943). Talvez isso se explique por Spider ser, segundo dizem os especialistas, o menos cronenbergiano dos seus filmes. A History of Violence (2005), o mais recente tomo de uma obra que começou há quarenta anos com uma curta intitulada Transfer, contribui, de certa maneira, para eu começar a ultrapassar esta minha embirração. Sem abdicar de alguns elementos absurdos e hilariantes, Cronenberg filma esta história com rara sobriedade. Trata-se da história de um homem aparentemente vulgar que, por mero acaso, transforma-se no herói da sua pequena cidade. Por arrasto dessa contingência, começa a vir à tona todo o seu passado omisso e tenebroso. A pouco e pouco vamo-nos apercebendo que a mais violenta de todas as histórias é o passado que cada indivíduo carrega dentro de si. Libertarmo-nos dele, a mais difícil e inglória das tarefas. A lembrar alguns westerns de excepção, sobretudo nas cenas de tiroteio e no drama da personagem central, interpretada por um Viggo Mortensen admirável, A History of Violence está perto de ser excelente. Só não o é por uma razão: não foi Eastwood quem o realizou.
***

Galardoado com o Óscar para melhor documentário, entre pelo menos mais uma dúzia de prémios, A Marcha dos Pinguins (2005), do francês Luc Jacquet, é uma espécie de documentário que, apesar do sentimentalismo bacoco, fascina em absoluto. Imagino a experiência visual que será vê-lo numa boa sala de cinema, pobre de mim que apenas pude vê-lo agora em DVD. Com uma fotografia lindíssima, planos de uma beleza inquestionável, A Marcha dos Pinguins é um documentário ficcionado que aproveita com perícia a magia e o poético do mundo natural. O argumento, bem delineado, propõe-nos uma história de amor acerca da reprodução dos pinguins Imperador. Sob condições meteorológicas inóspitas, o amor acontece num desses misteriosos rituais já só possíveis onde a natureza não foi tocada pela humana conspurcação. Um trabalho árduo, a merecer todos os prémios do mundo. Mais que não seja, por nos fazer acreditar, como tão raras vezes a arte contemporânea faz, que o amor ainda é possível... sob umas boas dezenas de graus negativos.
***

Flightplan (2005), que em português levou o título Pânico a Bordo, iniciou a aventura hollywoodesca do germânico Robert Schwentke (n. 1968). Vi-o recentemente, na versão DVD, por uma razão que se chama Jodie Foster. Sou fã de Jodie Foster, provavelmente, desde Taxi Driver (1976), um dos meus filmes preferidos e um dos melhores do mestre Martin Scorsese. Como filme, Flightplan arrebatou-me apenas longos e estóicos bocejos de tédio. Thriller psicológico, para usar um chavão comum, onde as tensões são constantemente obnubiladas pelo óbvio, tem como único foco de interesse a performance de Jodie Foster. Encarnando uma mãe a braços com o desaparecimento da filha em pleno voo, a actriz americana tem aqui um daqueles papéis feitos à sua medida. Notamos-lhe a fragilidade da Sarah Tobias, em Os Acusados (1988), assim como a energia da excelente Clarice Starling, em O Silêncio dos Inocentes (1991). Durante as buscas no avião, o pânico e o desespero, misturados com uma espécie de paranóia obsessiva, adquirem no rosto de Jodie Foster expressões deveras convincentes. Só isso, mais nada, merece ser visto num filme que, infelizmente, não se contém no ridículo.

Generosidade

A generosidade rima, muitas vezes, com a hipocrisia. As pessoas incoerentes são, geralmente, as mais generosas. Mas são igualmente as mais perigosas. Pelo que a generosidade sempre me pareceu uma atitude muito perigosa.

Elevador

Sei, hoje, exactamente aquilo que falhei:
não senti a dor até ao fim. Fugi
antes que ela se tornasse coisa nenhuma
e fosse já nada diferente de mim, do que sou
antes, depois, durante as coisas sensíveis
tangíveis, tacteadas, apalpadas na escuridão
dos anos.
Sem luz nem cor nem beleza possível
de julgar.
E, súbito, tudo são corpos a cair contra corpos
imaginar é o dom que lhes foi dado.
Imaginar a beleza e a fealdade, o longe e o
perto que se está de cada coisa.

Nenhuma vitória me ensinará mais que um naufrágio
nenhuma vida é mais vida por ter mais risos que palhaços
menos esperas que encontros.
A vida eterna não promete o sol nem o calor nem a riqueza nem
abraços. Os livros
falam da paz. E da paz só. A paz apenas prometem, por isso
sei, hoje, o que sonhar para a morte.

Subo e desço das camas, das cadeiras, dos lugares
agarro-me ao que acaba como se o mar me fosse engolir depois
enquanto as trevas rodam em torno da terra e
deixam intervalos de luz,
corro contra as horas
para não chegar tarde, para não ser esquecido
para não me mentir

mas o que importa é subir e descer, manter-se
à superfície de si mesmo, não interessa em que mar
as camas, as cadeiras, os lugares, os corpos sem cor
continuarão antes depois durante os intervalos de luz
e só eu poderei responder à morte
a que preço está a vida eterna,
em quantos anos pagarei
os juros do empréstimo
com que comprei a paz

Alexandre Borges

Alexandre Borges nasceu em 1980 em Angra do Heroísmo. Licenciado em Filosofia, é autor de Dez Histórias de Amor em Portugal e co-autor de Histórias Secretas de Reis Portugueses (Editorial No tícias). Recentemente, publicou o livro de poemas Heartbreak Hotel. Está incluído em várias antologias de poesia e ficção. A sua actividade desenvolve-se entre o teatro, a televisão e a escrita, designadamente na imprensa periódica regional dos Açores. No teatro, para além da representação, tem feito adaptações e produção de diversas peças. É autor do weblog O Boato. »

13.4.06

MARGARIDA-LIGHT

A literatura da Margarida é uma bosta e não é literatura. Dito isto, qual o interesse de se perder tempo a escrever um livro sobre a obra da rapariga?
Na minha opinião, a “Margarida” é um caso sociológico importante. E é importante porque enormemente revelador da “estrutura de afectos” da sociedade portuguesa em que vivemos. Tal como os Morangos com Açúcar, por exemplo. É certo que o João Pedro George não fez um estudo da “Margarida” do ponto de vista sociológico. Concentrou-se na “literatura” e fez, desde logo, um inventário de situações claras de escrita merdosa, repetida, bacoca, etc. Os Morangos com Açúcar também são, no sentido que estou aqui a (tentar) passar, um fenómeno sociológico “importante” (já devem ter percebido que este “importante” não tem nada que ver com “brilhante” ou “meritório”) e portanto passíveis de um estudo que poderia ser pertinente. Voltando à Margarida, foi o facto de ela vomitar livros que reflectem/movem/excitam/satisfazem a sociedade portuguesa actual que “a” tornou um caso sociológico merecedor de um “estudo” (vai entre aspas para manter aberto o “conceito”).

Não me parece nada mal que fique assente, escrito, documentado, “inventariado”, o tipo de literatura que “esta” é. Pelo contrário, acho bem. A “forma” do livro parece-me adequada ao “tema” que é tratado. Também acho que o livro estava condenado ao sucesso e que a providência cautelar que a autora pôs mostra bem a parvoeira da mulher e dos seus conselheiros.

Por fim, admito que não fiquei a gostar nem mais nem menos da obra da Margarida-light depois da leitura da versão do livro que apareceu no blogue “Esplanar”. Mas algumas pessoas literariamente menos exigentes do que eu poderão ter no “Couves e alforrecas…” uma boa pista para eventualmente questionarem algumas coisas e reforçarem o seu sentido crítico.

Quanto a mim, já sei: vou escrever um livro sobre o sucesso do livro “Couves e alforrecas: os segredos da escrita de Margarida Rebelo Pinto”. Yeeeees, editooooras?


Rui Costa

Bloco de apontamentos # 16

Existem formas que nunca encaixam, funcionam como as rectas paralelas; certo é que duas rectas paralelas têm a mesma direcção, por isso têm de se encontrar, só que isso não é possível ver a olho nu, arranjaram o conceito de infinito para esse tipo de encontros metafísicos. A propósito, já alguma vez experimentaram partir pedra?

MJLF, s/título, 1999, 80x200x180cm
Maria João

Uma Vela

P
O
r
Quem
Discute
As velas.
As velas.
As velas.
As velas.
As velas.
As velas.
As velas.
As velas.
As velas.
As velas.
As velas.
As velas.
As velas.
As velas.
As velas.
As velas.

Maltrapilho remisturado por TAV 69

11
a propina do cão
levou-me a dar-te
murros na porta
má vizinhança
eu vou dizer ao senhor
padre o que tu fizeste
ao animal
dou-te uma cabeçada
e digo que caiste
das escadas
o bombeiro fartou-se
de sangrar
quando inventaste
a história da chave

12
a grande
felicidade
o polvo

13
isto tudo parece
o bolo da spa

1, 2, 3, 4...
5, 6, 7...
8, 9, 10...

Nuno Moura

Manias

A mania de que ser o primeiro é ser melhor que os outros e a mania de que ser original é, por si só, ser muito bom – deprimem-me. Há também a mania de que as primeiras obras não prestam e a mania de que tem de haver um livro a que se chame, por mania, o livro da maturidade. Essas manias, todas elas, deixam-me deprimido. A mania de que ser velho é ter conhecimento acumulado, deprime-me como todas as outras. Mas nenhuma mania me deprime tanto como a mania de que ser novo é não ter experiência.

12.4.06

Maltrapilho remisturado por TAV 69

8
fim de tarde tarado
malpatado trouxe
bacalhau e batatas
grão e vinho branco
cinco euros emprestados
para cinco sagres
desanuviamento
movimento da mão
da garganta e do pensamento
a minha companheira
diz que eu sou um vândalo
devia eu ter dito perestroika
depois de partir todas as garrafas
e de atirar algumas para a rua

9
ladrão, se entrares já não sais
(há muitos livros para leres)

10
bancos de urgência
e tribunais
bezanos
não querem sair dali

1, 2, 3, 4...
...5, 6, 7...

Nuno Moura

Estranha a arte

Estranha a arte que quer do homem
só a parte de deus.
A poesia
que se desfaz da serotonina
quando fala do amor.

Traz para o poema
a tabela de ninharias.

Ninguém enche
o bolso da frente
com a angústia e o tormento.

Há também a moeda
e o talão de estacionamento.

Nuno Costa Santos

Nuno Costa Santos nasceu em 1974. É jornalista, guionista, humorista e um dos directores da editora Livramento. Foi criativo no programa Zapping, da RTP 2, e um dos fundadores do grupo Manobras de Diversão (Produções Fictícias). Publicou um livro de histórias intitulado Dez Regressos (Salamandra, 2003) e, mais recentemente, o livro de poemas Os Dias Não Estão Para Isso (Livramento, 2005). É autor do weblog melancómico.

11.4.06

Um calo nos olhos, uma ferida no coração*

Na exposição do CCB dedicada à vida e obra de Frida Kahlo, havia pessoas penteando-se enquanto se olhavam reflectidas nos vidros que protegiam alguns dos trabalhos expostos. Deu também para ver um turista tirar macacos do nariz. Enfim...
São mais as fotografias do que as obras, muito mais a ementa e os acepipes que o prato principal. Para aí uma vintena e meia de quadros, repartidos por quatro salas atafulhadas de gente. O pior é que esta gente rima demasiado com frente e indiferente. É gente que se atravessa à frente dos nossos olhos, gente indiferente a quem olha com a pausa possível as parcas obras ali disponíveis de um acervo que também não foi por aí além.
Há qualquer coisa na pintura de Frida Kahlo que me obriga a arrumá-la no caderno dos artistas cuja vida parece interessar-me mais que a obra. Eu fui ao CCB com a intenção de entrar na obra. Saí da exposição sem saber bem onde tinha estado. Se mais na vida, se mais na obra.
O Diário de Frida é projectado numa das paredes. Talvez o sentido desta exposição se possa resumir a este gesto: uma reconstrução fragmentada do diário de Frida. Deste modo, andamos pelas salas como quem se passeia dentro das páginas de um diário. Só não sei é se isso me agrada muito…

*Este título, completamente aparvalhado, surgiu-me depois de ter ouvido alguém comentar que os quadros de Frida Kahlo «sangram por todos os lados».

Maltrapilho remisturado por TAV 69

5
x – a cláudia está em madrid?
y – não sei se está em madrid.
x – mas está a tocar?
y – onde é que está o telemóvel?

6
no cantinho do álcool
soprado por ciclones e catarinas

7
ofereço dez euros pelos sapatos pretos do gajo
que se senta à minha frente
ele não quer, não quer ir descalço para casa
eu digo-lhe: fica com os meus
ele não quer, não quer ir a ranger até casa
mora num prédio haja respeito

1, 2, 3, 4...

Nuno Moura


Shohachiro Takahashi
Cosmography for Speech

10.4.06

E depois de muito reflectir

Chegou à conclusão que de Agustina Bessa Luís tinha lido, muito esforçadamente, um único livro: O Manto. De António Lobo Antunes tentara ler, mas não conseguira, Explicação dos Pássaros e O Manual dos Inquisidores. De José Saramago havia lido meia dúzia de romances e ficara a meio de outros dois. Se bem se recordava, tirara algum gozo da leitura do Ensaio sobre a Cegueira. Um bom romance, por certo, não fora o caso de Albert Camus haver escrito A Peste. Saramago, Agustina e Lobo Antunes. Se excluirmos os mortos, é esta a santíssima trindade da ficção portuguesa contemporânea. Prefiro Mário Zambujal.

PROVINCIANISMO (2)

Um gajo falar de coisas excitantes como poesia, pintura ou música e haver quem olhe entediado sem perceber que estas são maneiras sofisticadas e divertidas de falar de sexo.

Rui Costa

Maltrapilho remisturado por TAV 69

1
o do céu mais o que as plantas
estão agora a limpar mais o que conseguir
aspirar de ti, o que está preso em alguns cofres
e alguns quartos, deixaste a janela aberta?

2
se chover no telhado faço chá
com chá terei certamente a companhia
de algum gato

3
quando fazes amor contigo própria
aquecem-me as mãos e tenho
que abrir a torneira de água fria

4
por favor não me compre
um pacote de esparguete
que eu não tenho gás

[continua]

Nuno Moura

Fragmento #33 – A casa no tempo

No centro da cidade branca das muralhas ergueu-se uma casa com paredes de medo, elas suspendem o tempo em divisões há muito abandonadas por corpos vivos; restam apenas os objectos dos seus habitantes, rastros de existências que se perderam na memória, objectos enigmáticos com um carácter quase arqueológico; o rosto desta casa só se vê parcialmente da rua, os muros altos da sua entrada ocultam-na como um véu feminino no islão; toda a casa é espaço interior, tudo se passa dentro de pátios, de portas, e paredes com janelas discretas, perante um exterior austero de pedra e cal. A casa no tempo é composta por uma estrutura labiríntica com portas que interligam as suas divisões, corredores estreitos como as ruas calcetadas da cidade onde se ergueu, escadas comunicantes entre os diversos níveis das suas habitações, que se revelam como passagens secretas, inesperadas; é um interior onde se circula abrindo portas que vão de divisão em divisão, com um carácter ilógico, levando-nos constantemente para o mesmo lugar, com caminhos diversos. O interior da casa é sombrio, escuro, frio como as pedras no chão de algumas divisões; o seu interior é gelado mesmo quando o amarelo invade a planície em torno da cidade branca das muralhas, e o ar no exterior da casa é sufocante como o bafo de um dragão; é uma casa indiferente às temperaturas exteriores, com um coração de pedra, a sua cozinha, que resistiu às ameaças do tempo, agora com os fornos extintos. È uma casa com cadeiras vazias, móveis austeros que estalam com o abrir das portas, num silêncio opressivo em contraponto com o som do vento que bate na clarabóia das escadas, que dão para o sótão; uma casa com paredes composta por camadas translúcidas de vidas em esquecimento, habitada por almas enclausuradas, fantasmaticamente, por mulheres emparedadas em sofrimento; as paredes desta casa escondem segredos e crimes que nunca se revelam no exterior, ficaram suspensos numa ruína labiríntica como uma muralha de água circular no seu interior, sombria e escura, que se ergueu no tempo, no centro da cidade das muralhas.

Maria João

HOMENAGEM A ALBERTO CAEIRO

Amo as flores da minha varanda
não por serem bonitas ou feias
mas por serem flores
e minhas
e da minha família
e estarem na minha varanda

8/6/1994

Teresa Rita Lopes

Teresa Rita Lopes nasceu em Faro, em 1937. Viveu 13 anos em Paris onde foi professora na Sorbonne e defendeu a tese de doutoramento "Fernando Pessoa et le drame symboliste – héritage et création". É professora catedrática na Universidade Nova de Lisboa. Tem colaborado regularmente em várias publicações literárias portuguesas e estrangeiras, quer no domínio do ensaio, quer da poesia. Escreve poesia, contos e teatro. Tem publicados sete livros de poemas, com traduções para francês, italiano e espanhol. Estreou-se na poesia em 1987, com Os Dedos, os Dias, as Palavras.

7.4.06

Carlos Zílio
Carlos Zílio
Para um Jovem de Brilhante Futuro, 1973 / 74 »

Fumar mata, mas engorda

Recordo-me de em 97, quando foi aprovado o regime jurídico da instalação e do funcionamento dos estabelecimentos de restauração, se ter afirmado que muitos restaurantes teriam de fechar porque lhes era impossível realizar uma série de obras então exigidas. Entre elas, lembro-me de algumas que obrigavam a remodelações profundas das casas de banho, das cozinhas e das zonas de armazenagem. Se bem me recordo, uma dessas exigências obrigava à existência, num qualquer estabelecimento de restauração, de três casas de banho: para homens, mulheres e funcionários (essas classe sem género específico). Muitos proprietários queixaram-se que lhes seria impossível cumprir com tais obrigações, para o que, se bem sei, foram disponibilizados projectos de financiamento. Agora que o Governo se prepara para apertar o cerco aos fumadores em restaurantes, bares e discotecas, a malta da restauração vem já com o argumento de que «mais de 90% dos restaurantes e bares do País vão ter de fechar» «porque não têm mais de 100 metros, o que os impede de criar áreas para fumadores». Só espero que isto não volte a dar em projectos de financiamento de obras-fantasma. É que passados todos estes anos sobre o tal decreto que estabelecia o regime jurídico da restauração, o que eu vejo é qualquer pastelariazeca de bairro transformada, à hora de almoço e de jantar, num restaurante barato. As condições são mínimas e muitas vezes caricatas. Casas de banho exíguas, espaços inóspitos para deficientes motores, condições de higiene e segurança muito aquém do desejável. Era bom que se definissem as coisas: um restaurante serve refeições, uma pastelaria serve bolinhos e chá, um café serve bifanas e imperial. Meter tudo no mesmo saco só serve ao chico-esperto. Portanto, que se definam agora de uma vez por todas: se não têm espaço para fumadores, impeçam que se fume. Ponto final. Não venham cá novamente com o choradinho da falta de condições.

O meu coglioni esquerdo

O meu coglioni esquerdo sempre foi o mais descaído, talvez isso explique (cientificamente) uma propensão desmesurada para a sinistra. Quem não estiver a perceber, que leia isto: «A infeliz frase de Sílvio Berlusconi, ao qualificar como coglioni [testículos, em calão] aqueles que votarem no centro-esquerda, transformou-se na maior vitória da oposição…» Quem o garante é Manuela Paixão, correspondente em Roma do Diário Notícias, na edição de hoje do referido jornal. Em destaque, aparece ainda esta afirmação: «A designação coglioni transformou-se numa identificação que faltava nesta campanha eleitoral, dando vantagem à esquerda». Só podia, pois o esquerdo é sempre o mais avantajado. No entanto, não sei se repararam bem no parêntesis recto: testículos, em calão, que é como quem diz colhões ou, na sua forma mais aligeirada, tomates. Berlusconi só prova a sua banalidade metafórica, pois nós já estávamos fartos de saber que a malta de esquerda sempre foi a mais apessoada. Daí que se diga que Fidel os tem no sítio e que Bush os traz entalados na goela. Ter colhões, assim como ter tomates, é ter coragem. Ser de esquerda em Itália, segundo consta, equivale precisamente a ter coragem. Isto é, a ter tomates. Os meus é que já me vão faltando para tantos… pruridos… semânticos.

Diz que

Jesus, afinal, caminhou sobre gelo e não sobre água. Eu, que ateu me confesso, preferia-o a adejar planícies verdejantes, a flutuar sobre mares revoltosos, a mover-se em passos de mágica nos quatro cantos do mundo. Estou farto das explicações científicas. Um Jesus explicado, assim como quem explica fenómenos meteorológicos improváveis, é um Jesus insalubre. Começo a ficar saturado de tanta explicação, de tanta ciência, de tanta física e de tanta química acumuladas. Até um ateu precisa de sonhos. Um Jesus com poderes sobrenaturais, com asas invisíveis e uma visão de raio-x, não faz mal a ninguém. Tal como o Pai Natal, que apenas traz infelicidade ao mundo quando por trás das barbas postiças mostra as rugas do rosto.

UMA FONTE, UMA ASA…

Os anos passam… Já vai sendo tempo
De pensar na Viagem.
Irei bem ou enganei-me? Este caminho
É verdade ou miragem?

Procuro em vão sinais. Em vão persigo
As horas silenciosas.
De olhos abertos, cega, vou andando
Sobre espinhos e rosas.

Errada ou certa é longa a caminhada,
Longo o deserto em brasa.
Ah, não fora, Senhor, esta esperança
De uma fonte, uma asa!

Fonte, Senhor, que mate a longa sede
Desta longa subida.
Asa que ampare o derradeiro passo
No limite da vida.

Ah, Senhor, que mesquinhas as palavras!
Vida ou morte, que importa?
Para entrar e sair a porta é a mesma:
Senhor, abre-me a porta!

Fernanda de Castro

Fernanda de Castro nasceu em Lisboa em 1900. Poeta, romancista, dramartuga e escritora de livros infantis, publicou em 1919 o seu primeiro livro: Antemanhã. Em 1969, ao prefazer meio século sobre a publicação do seu primeiro volume de poemas, foi-lhe atribuido o Prémio Nacional de Poesia. Deixou também uma vasta obra no que se refere a textos para teatro, tendo recebido em 1920 o Prémio do Teatro Nacional, com a peça Náufragos. Foi colaboradora de António Ferro (com quem era casada) em várias conferências propagandísticas do Estado Novo. Morreu em 1994. » » »

[Frontalidade]

As pessoas falam da frontalidade como se a frontalidade fosse sempre uma virtude. Não é. Muitas vezes é pura arrogância, estupidez, teimosia. Outras pessoas há também que se dizem muito frontais mas, quando se lhes espera uma tomada de posição acerca de uma polémica qualquer, apertam as nádegas e olham por cima do ombro revelando uma hipocrisia da pior espécie. Só há um tipo de frontalidade que me convence, é a frontalidade na humildade. Saber ouvir, ter a capacidade de reconhecer e aceitar as nossas limitações, por mais sábios que nos julguem os outros, é, muitas vezes, bem mais frontal do que não ter hesitações em disparatar ideias, pensamentos, convicções que, por mais que nos possam parecer absolutamente certas, serão discutíveis pelo simples facto de serem as nossas convicções. Como se não bastasse o simples facto de serem convicções humanas. Tudo o que é humano é discutível. Isto não quer dizer, parece-me óbvio, que não aprecie a frontalidade (aquela que só faz sentido se for fundamentada). Prefiro um indivíduo frontal, no sentido de dizer aquilo que pensa sem pretensões secundárias, a um indivíduo cauteloso, hesitante e astucioso porque, em última instância, este é cínico e pretensioso. O problema da frontalidade reside no facto de amiúde nos iludir. Sem que demos por isso, ela torna-se facilmente numa forma insidiosa de mentirmos a nós próprios sem que mintamos aos outros. E eu não sei se prefiro uma pessoa enganada consigo própria a uma pessoa que engane os outros. Parece-me que as primeiras são bem mais perigosas, porque não nos deixam forma de nos defendermos das suas acções. E há tantas delas por aí... São aquelas que se convencem de um modo doentio quanto à validade absoluta das suas opiniões. Não distinguem a fé da verdade, a crença do raciocínio. Em suma: a mim parece-me que muitas vezes, demasiadas vezes, aquilo que julgamos ser frontalidade não passa de um estilo diferente para o cinismo.

Bloco de apontamentos # 15

Lá fora a chuva com a voz das pedras; por vezes diz olá nos vidros da janela e interrompe-me a escrita. Ao meu lado, a lua espreguiça-se como uma suite de Bach, no calor agradável das almofadas. Preparo um chá com aroma a gengibre depois da chuva cair no coração da noite.

MJLF, páginas de Vale de corvos 1992, técnica mista s/ papel, 10x26cm

Maria João

POIS SERÁ VOSSO O REINO DOS CÉUS

Grande noite de poesia no bar portuense Púcaros, ontem (tarde à noite). Foi o lançamento do livro do António Pedro Ribeiro (Declaração de Amor ao Primeiro-Ministro, Objecto Cardíaco). Ambiente variado em idades e estilos, prefiro assim. António Pedro Ribeiro confirmou que ama o primeiro-ministro, e o segundo, e o terceiro, e todos os presidentes de câmara e de junta. Confessou ainda que o deseja ver num bacanal, “com todos os ministros e todos os ministérios a arfar de prazer”. O primeiro-ministro ainda chegou a tempo de ouvir alguns poemas ditos pelo autor perante o entusiasmo do insaciável público delirante. O André Guerra pega na guitarra para um momento musical sob a batuta do mestre Ian Curtis, o autor-vocalista agora derramando sangria-poema de “She´s lost control” (Joy Division). João Rios e Isaque Ferreira também luciferam vociferam, entre outros satãs da noite portuguesa. O Primeiro-Ministro, demonstrando a sua enorme sensibilidade e classe poéticas, começa a despir-se e enraba o défice. “As gajas apalpam os telemóveis”. A poesia é um broche. “A gaja olha/A gaja sorri/A gaja dança/A gaja parte/E fica no poema”.
Rui Costa

6.4.06

O prestígio é um fenomenal prestidigitador.

Reprodução Interdita.

Os poetas que falam de poesia como se esta fosse o que de mais importante há no mundo. Os cães que ladram por ossos de plástico. As marcas registadas e as reproduções interditas. As antecipações históricas. Eu fiz primeiro que tu o que tu dizes que fizeste primeiro que eu. O mundo virtual é uma barroca gigantesca para onde são jogados berlindes que se confundem com os dedos dos jogadores. Os críticos que se julgam juízes do tempo, tal como os padres que se julgam juízes de deus. Os afilhados de bibe, os padrinhos de calças a caírem-lhes do cu. Os Hermógenes dialécticos: assim me parece, sim, creio que sim, certamente, exactamente, de modo algum, é isso mesmo, falas bem, creio que tens razão, é assim mesmo, sem dúvida, esse é o meu parecer, indubitavelmente, com toda a certeza, porque não? E os outros, sempre com o dever na ponta dos dedos: que deve ser assim, que deve ser assado, que devia ser cozido. Devotos da querela, reverentes no libelo. E ali ao lado a fome, a nossa indiferença, e ali ao lado a tortura, os nossos modos de dizer que nada é connosco, e ali ao lado um espelho a dizer-nos: que podes fazer? Olhamos para o lado e ali ao lado voltamos a cabeça para trás e ali ao lado subimos cheios de ar no pulmão e ali ao lado insuflamos um pouco de gás e ali ao lado explodimos e ali ao lado desistimos e ali ao lado voltamos a olhar para trás. No fundo, andamos todos a disfarçar a nossa incompetência. Porque fomos educados para dizer sim ao relógio, obedecer ao horário, trazer em cada bolso da fatiota um calendário de emoções, cumprir com brio a agenda dos milagres. Queres ser feliz? Compra. Vende-te. O poder de compra põe-te o conforto em casa. Produz. Sai de casa, volta para casa, abre a asa. E no entretanto os poetas continuam a falar da poesia como se ela fosse o que de mais importante há no mundo. Cães de plástico que ladram gemidos. Somos todos históricos, um pouco rebeldes. Quanto não vale uma vidinha entupida na honraria? Homens elefantes. Todos. Todos deformados à nascença, logo que no pulmão cai o primeiro sopro poluído da boca dos nosso pais. É preciso saquear a indiferença, é preciso nomeadamente ser mais estúpido ainda. Uma controvérsia para animar os habitualmentes. Uma discussão, uma polémica aveludada para tudo ficar na mesma. Como a lesma. Lesmas deformadas à nascença. A verdade é esta: o estado larvar do mundo é assegurado pelo instinto expectante. Deixa cá ver no que isto dá. E quando dá, ou dá para o torto ou dá para o direito. Se der para o torto, conspiraremos. Se der para o direito, logo teremos as nossas medalhas. Em suma: mata! Começa por matar-te a ti próprio, segundo a segundo, palavra a palavra. Depois mata todos os elementos da tua família. Aqueles com quem conviveste nos primeiros anos de vida. Mata a memória. Mata-te o mundo que há dentro de ti. Mata-te nos outros e mata o que resta dos outros no teu dentro. É preciso reconhecer, de uma vez por todas, que somos incompatíveis. Somos a marca registada das nossas próprias ilusões. Somos uma reprodução interdita. Venha então daí esse pedaço de glória, esse aplauso, esse carinho, esse mimo, esse encómio, esse elogio. Venha então daí esse Hermógenes concordante. Estaremos cá para lhe dizer, também a ele, que «a vida é uma grande cama».

Bloco de apontamentos # 14

Caminho a passos largos depois de uma pausa que se apoderou de mim como o espaço entre dois passos; a porta já está entreaberta numa espécie de tensão fenomenal. O pensamento do entre é assim; caminho no escuro sentido um lento dégradé sonoro em ascensão.

MJLF, Ponte, 2000, aguarela s/papel, 21x30cm

Maria João

5.4.06

Fiz uma rosa contemporânea
com um compasso

não cheira
nem sonho com ela

Fiz um sonho com duas linhas
mas não acordo
nem sinto os olhos

fiz um quadrado
com a rosa dentro
nas duas linhas

e estava escrito o meu desalento

Fernando Lemos

Fernando Lemos nasceu em Lisboa, no dia 3 de Maio de 1926. Estudou na Sociedade Nacional de Belas-Artes. Foi viver para o Brasil em 1953, naturalizando-se brasileiro, onde permanece até hoje. Originalmente ligado ao surrealismo, colaborou com artigos em vários jornais brasileiros e portugueses. Publicou Teclado universal (1953) e Teclado universal e outros poemas (1963). Poemas seus encontram-se dispersos por algumas antologias, embora a sua carreira artística se tenha desenvolvido mormente nas áreas da pintura e do desenho. »

4.4.06

Dick Higgins
Dick Higgins
Primavera, 1973

ESTE POEMA

Escrevo este poema
para que ele
exista.


Rui Costa

Bloco de apontamentos # 13

Sentei-me para poder olhar o céu e escutar a água a cantar no largo das portas; na torre da catedral habita um pássaro nocturno que conhece a voz das pedras, as portas fechadas elevaram-se na fonte do lago com a forma do mundo, depois do sol se esconder no céu cor de chumbo; num vale junto à cidade branca das muralhas voam corvos negros ao entardecer.

MJLF, Páginas de Vale de Corvos 1992, técnica mista s/papel, 10x26cm
Maria João

RELÓGIO

Pronuncia a palavra como quem
lentamente
a desmontasse
- cada sílaba
um segundo

Ela nomeia
o pequeno maquinismo
do tempo divisível

onde um rosto invisível
te contempla
a cada sílaba

Até chegar a hora
em que te cansas
de ver
de ouvir
e de falar

João Pedro Mésseder
João Pedro Mésseder nasceu em 1957, no Porto, cidade onde completou os seus estudos universitários e exerce a docência. Assinou livros de poesia para adultos e livros para crianças e jovens e está representado em diversas obras colectivas. Tem colaboração poética dispersa em várias publicações portuguesas e da Galiza, tais como Alma Azul (Coimbra), Mealibra (Viana do Castelo), Rodapé e Pé de Página (Beja), Jornal do Centro (Viseu), o suplemento «Das Artes das Letras» de O Primeiro de Janeiro e Dorna (Santiago de Compostela). Entre os seus livros de poesia constam A Cidade Incurável (1999), Fissura (2000), Espuma (2001), Gondomar em Fundo (2003), O que Impuro Olhar Algum (2005), Abrasivas (2005) e Elucidário de Youkali seguido de Ordem Alfabética (2006). »

3.4.06

Bloco de apontamentos # 12

Encontrei-te por acaso, estava sentada num café onde nunca tinha entrado, tu também não, vinhas bem disposto das finanças. Sentas-te e pedes uma cerveja branca e uma das outras, frisando que não se deve dizer isso; pergunto se é um cocktail, respondes que é uma cerveja multicultural e misturas as duas. Bebes e interrogas-me sobre o que vejo no vidro do copo – eu vejo um conjunto de ilhas desenhadas pela espuma, tu vês figuras, uma cabeça.

MJLF, As cidades invisíveis, 1997, esculturas em terracota, dimensões variáveis.

Maria João

7. [in A Ordem do Mundo]

Em qualquer momento, no começo e no fim,
mesmo na medida de toda a vida – falhos de toda a pena,
permanecemos sem amanhã nem princípio,
esbatidos na idade e na distância, saqueados na sua mentira,
apenas acumulando areia para o fundo de um recreio
a simular um amuleto contra o regresso impossível.
Não temos trégua – não podemos voltar – e afastamo-nos – sem
ruído – lá para onde de longe chamamos, no ar rarefeito
- figuras resumidas a uma branca poeira informe,
em quantas inumeráveis semelhanças com a morte.
Pressentida ruína, a do íntimo declínio disto tudo,
demais cientes na incerteza como o sinal exposto da memória,
resina que nela se abate à frente dos olhos, que
esmaga cada braçada do tempo ao seu embuste
e nos recusa a menor separação do abandono –
que por nada existimos – e só acenamos – acenamos –
senão para crer no que julgamos não ter acontecido,
senão a entender a justa aceitação da nossa vida.

Rui Coias

Rui Coias nasceu em Lisboa no dia 2 de Setembro de 1966. Em 1985, com 19 anos, ingressou na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, onde se licenciou em 1991. Trabalhou como advogado numa empresa petrolífera espanhola, profissão que abandonou para se dedicar ao estudo de Filosofia. Publicou dois livros de poemas, ambos nas Quasi: A Função do Geógrafo (2000) e A Ordem do Mundo (2005). »

Abrolhos

Olhos que mais vezes
se devem manter fechados
do que abertos. Para resguardo
do músculo cardíaco.

João Pedro Mésseder, Elucidário de Youkali, Caminho, Janeiro de 2006.

[Ao cuidado de Alexandra Barreto.]

ARFE COMTUSA (2)

Dizia em (1) que me parecia mais ou menos consensual a aceitação da ideia de que a obra de arte comove. Estremecimento ou choque, e disse, ainda que ao nível do discurso.

Mas pode dizer-se que nem tudo o que comove é obra de arte. Será esta, aliás, a argumentação mais óbvia de quem quer recusar o “estatuto” de obra de arte a uma canção pimba. E podemos, claro, falar do conteúdo dessa tal emoção ou comoção.

Entramos num segundo plano (que pode ser um terceiro ou um quarto). Ao nível neurofisiológico, e convocando Damásio, passaríamos do frio e do calor à consciência desse frio e desse calor ou ainda à consciência de se estar tendo a consciência desse frio e desse calor e (depois) das alterações que esse frio e esse calor estão a provocar em mim. O que se passa com a obra de arte?

“(...) Para que qualquer impressão possa ser convertida em matéria de arte, é mister que, primeiro, se transmute em impressão, não parcialmente, senão inteiramente, intellectual.” (excerto de uma carta de Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro, datada de 11 de Janeiro de 1930, citado aqui - http://ruialme.blogspot.com).

Aqui lembro-me de quem diz que a poesia é boa quando nos faz sentir. O autor citado relembra que podemos sentir com a inteligência. Há de facto duas pedras na mão contra a inteligência (isto já dá para outra história), e está visto que por aqui cada “coração” sua sentença - afastamo-nos do alargado consenso inicial (a ideia de que a arte comove) quando perguntamos a cada um o que o comove!

Quando Duchamp pega num urinol, o vira ao contrário e lhe chama “fonte”, o que é que está a acontecer? O tratamento daquele objecto do quotidiano como obra de arte – a nomeação de uma nova “coisa”, passando a coisa a ser outra pela LEGENDA que se lhe (a)põe – é uma manipulação artística da realidade que funciona ao nível do discurso. Se assim for (e sem me deter demasiado nesta ideia do discurso) o que eventualmente nos possa comover naquela concreta obra de arte não resultará do seu magnífico branco ou da harmonia das suas formas mas das alterações conceptuais que o artista propõe no plano precisamente do conceito de arte – objecto, legitimidades, campo de trabalho – e no plano da realidade, onde os conceitos muitas vezes são preconceitos. Neste caso concreto a obra de arte serviu, desde logo, para se repensar a questão do objecto da arte, que pouco a pouco se tornou mais inclusivo (no sentido de que uma cada vez maior “parte” da realidade passou a ter dignidade artística; a merecer a atenção do artista). O campo de trabalho do artista alargou-se (ou a perda de preconceitos anterior fê-lo acreditar que sim), passamos às latas de sopa (Warhol), um dia viria em que o próprio erro teria o seu lugar na obra de arte (Thomas Hirschhorn, por exemplo).

A “fonte” de Duchamp pelos vistos comoveu muita gente. No plano do discurso (ou a partir dele) mas comoveu. Mas é que tinha uma coisa de que alguns hoje se parecem esquecer (digo, quando apresentam propostas “semelhantes”, seja em que área for; embora possa compreender-se que uma certa reiteração é precisa, e que tende mesmo a existir até ao momento em que as metáforas deixem de ser metáforas; ou inflectindo opinião, se ainda se apresentam certas obras, ou partes delas, como “novidades”, é porque de facto ainda o são, pelo menos para alguns): a NOVIDADE!

Rui Costa