3.4.06

ARFE COMTUSA (2)

Dizia em (1) que me parecia mais ou menos consensual a aceitação da ideia de que a obra de arte comove. Estremecimento ou choque, e disse, ainda que ao nível do discurso.

Mas pode dizer-se que nem tudo o que comove é obra de arte. Será esta, aliás, a argumentação mais óbvia de quem quer recusar o “estatuto” de obra de arte a uma canção pimba. E podemos, claro, falar do conteúdo dessa tal emoção ou comoção.

Entramos num segundo plano (que pode ser um terceiro ou um quarto). Ao nível neurofisiológico, e convocando Damásio, passaríamos do frio e do calor à consciência desse frio e desse calor ou ainda à consciência de se estar tendo a consciência desse frio e desse calor e (depois) das alterações que esse frio e esse calor estão a provocar em mim. O que se passa com a obra de arte?

“(...) Para que qualquer impressão possa ser convertida em matéria de arte, é mister que, primeiro, se transmute em impressão, não parcialmente, senão inteiramente, intellectual.” (excerto de uma carta de Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro, datada de 11 de Janeiro de 1930, citado aqui - http://ruialme.blogspot.com).

Aqui lembro-me de quem diz que a poesia é boa quando nos faz sentir. O autor citado relembra que podemos sentir com a inteligência. Há de facto duas pedras na mão contra a inteligência (isto já dá para outra história), e está visto que por aqui cada “coração” sua sentença - afastamo-nos do alargado consenso inicial (a ideia de que a arte comove) quando perguntamos a cada um o que o comove!

Quando Duchamp pega num urinol, o vira ao contrário e lhe chama “fonte”, o que é que está a acontecer? O tratamento daquele objecto do quotidiano como obra de arte – a nomeação de uma nova “coisa”, passando a coisa a ser outra pela LEGENDA que se lhe (a)põe – é uma manipulação artística da realidade que funciona ao nível do discurso. Se assim for (e sem me deter demasiado nesta ideia do discurso) o que eventualmente nos possa comover naquela concreta obra de arte não resultará do seu magnífico branco ou da harmonia das suas formas mas das alterações conceptuais que o artista propõe no plano precisamente do conceito de arte – objecto, legitimidades, campo de trabalho – e no plano da realidade, onde os conceitos muitas vezes são preconceitos. Neste caso concreto a obra de arte serviu, desde logo, para se repensar a questão do objecto da arte, que pouco a pouco se tornou mais inclusivo (no sentido de que uma cada vez maior “parte” da realidade passou a ter dignidade artística; a merecer a atenção do artista). O campo de trabalho do artista alargou-se (ou a perda de preconceitos anterior fê-lo acreditar que sim), passamos às latas de sopa (Warhol), um dia viria em que o próprio erro teria o seu lugar na obra de arte (Thomas Hirschhorn, por exemplo).

A “fonte” de Duchamp pelos vistos comoveu muita gente. No plano do discurso (ou a partir dele) mas comoveu. Mas é que tinha uma coisa de que alguns hoje se parecem esquecer (digo, quando apresentam propostas “semelhantes”, seja em que área for; embora possa compreender-se que uma certa reiteração é precisa, e que tende mesmo a existir até ao momento em que as metáforas deixem de ser metáforas; ou inflectindo opinião, se ainda se apresentam certas obras, ou partes delas, como “novidades”, é porque de facto ainda o são, pelo menos para alguns): a NOVIDADE!

Rui Costa

6 Comments:

At 10:33 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Não queres tornar mais claro o que entendes por comoção?

 
At 3:14 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Quero. Mas entretanto era fazer algumas aproximações: primeiro, a ideia que provoca pouca alergia de que a obra de arte comove (o tal consenso); depois, a ideia minha (ainda que implícita) de que é possível considerar-se como arte uma obra de que não se goste (ou, o que para o objectivo destas linhas serve, que não nos comove); depois, a ideia de que afinal pode não ser uma questão de não gostar (ou não comover) mas de comover num plano “diferente” – o plano do discurso (daí o exemplo da “fonte”). Mas o objectivo é partir do particular (o indivíduo que “olha” a obra de arte) para o universo, procurando perceber o que é que essa “comoção” representa nele (o que é que mostra, de que é sintoma, como evoluiu – e aqui sei que já/ainda não dá pra ver o que é que eu estou a querer dizer). O meu último comentário ao post anterior (sobre o olhar uma paisagem) mostra a minha percepção “disto” – a ideia de que a comoção perante “coisas simples” (o sol, água) continua incessantemente a encher-se de novidade – através da sofisticação do “olhar” (sentir, pensar, o que seja) que interage com essas tais “coisas simples”…até já.
Rui Costa

 
At 9:28 da tarde, Blogger MJLF said...

temos assim dois aspectos nas obras de arte, que não necessitam de ser contrários: o estético e o artistico. Existem obras de arte que comovem e existem obras de arte que colocam a questão: o que é a arte? Existe ainda uma terceira espécie de obras de arte, as que comovem e colocam a questões ao nivel do que é o artistico.
Maria João

 
At 10:56 da tarde, Anonymous Anónimo said...

etanol: sim, todas as distinções são más mas essa (entre estético e artístico) serve para acentuar o facto de algumas obras (como a “fonte”) serem importantes pelo que propõem ao nível do discurso. Não sei se deixa de haver comoção neste caso, já que esta tal proposta (ao nível do discurso) tem que ser NOVA. E quer-me parecer que novidade e isso que chamamos de comoção andam bastante a par. A novidade só é novidade se provocar uma alteração nos canais que nos permitem interagir com o mundo, aumentando a rede total das coisas que existem. Nesta alteração do movimento do mundo é que se “dá” (é que consiste), quanto a mim, a comoção.
Rui Costa

 
At 2:40 da tarde, Blogger MJLF said...

o factor da novidade e as propostas ao nivel do discurso nas obras de arte são aspectos importantes, mas mais do que isso existe o aspecto a cognição, no sentido em que uma obra é uma forma de conhecimento,de conheceres e te relacionares com o mundo; o que as obras de arte acrescentam ou o que é novo nesses termos, não é o factor do novo de um ponto de vista futil, quando pensamos em termos de moda ou termos da economia de mercado. O aspecto da novidade em termos cognitivos será o seguinte: em que sentido a arte acrescenta algo ao que tu conheces? por exemplo: um quadro de monet acrescentar algo ao que conheces, poderá deixar-te mais atento quando olhas uma paisagem natural? ou um já fêto do duchamp irá acrescentar algo à tua visão sobre mecanismos ou objecto manufacturado de uso quotidiano?
maria joão

 
At 6:43 da tarde, Anonymous Anónimo said...

maria joão: é novo aquilo que acrescenta. uma obra de arte que seja uma obra de arte (seja Monet ou “ready made”) modifica e aumenta (acrescenta) a nossa interacção possível com uma laranjeira (o nosso “olhar” sobre ela sofistica-se). Isto é (tb) no plano cognitivo, como dizes. O foco no “discurso” serve só para sublinhar que uma obra de arte pode ser “feia” (no sentido mais tradicional do preconceito) e ser uma obra de arte (coisa que só uma pequena parte da “sociedade” percebe – 5%? 1% ? ou se calhar muito menos).
Rui Costa

 

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