10.4.06

Fragmento #33 – A casa no tempo

No centro da cidade branca das muralhas ergueu-se uma casa com paredes de medo, elas suspendem o tempo em divisões há muito abandonadas por corpos vivos; restam apenas os objectos dos seus habitantes, rastros de existências que se perderam na memória, objectos enigmáticos com um carácter quase arqueológico; o rosto desta casa só se vê parcialmente da rua, os muros altos da sua entrada ocultam-na como um véu feminino no islão; toda a casa é espaço interior, tudo se passa dentro de pátios, de portas, e paredes com janelas discretas, perante um exterior austero de pedra e cal. A casa no tempo é composta por uma estrutura labiríntica com portas que interligam as suas divisões, corredores estreitos como as ruas calcetadas da cidade onde se ergueu, escadas comunicantes entre os diversos níveis das suas habitações, que se revelam como passagens secretas, inesperadas; é um interior onde se circula abrindo portas que vão de divisão em divisão, com um carácter ilógico, levando-nos constantemente para o mesmo lugar, com caminhos diversos. O interior da casa é sombrio, escuro, frio como as pedras no chão de algumas divisões; o seu interior é gelado mesmo quando o amarelo invade a planície em torno da cidade branca das muralhas, e o ar no exterior da casa é sufocante como o bafo de um dragão; é uma casa indiferente às temperaturas exteriores, com um coração de pedra, a sua cozinha, que resistiu às ameaças do tempo, agora com os fornos extintos. È uma casa com cadeiras vazias, móveis austeros que estalam com o abrir das portas, num silêncio opressivo em contraponto com o som do vento que bate na clarabóia das escadas, que dão para o sótão; uma casa com paredes composta por camadas translúcidas de vidas em esquecimento, habitada por almas enclausuradas, fantasmaticamente, por mulheres emparedadas em sofrimento; as paredes desta casa escondem segredos e crimes que nunca se revelam no exterior, ficaram suspensos numa ruína labiríntica como uma muralha de água circular no seu interior, sombria e escura, que se ergueu no tempo, no centro da cidade das muralhas.

Maria João