30.6.06

Nesta paz desconforme
de negação e aborrecimento
o heroísmo é desertar,
ter a coragem de um encolher de ombros.

Saber opor ao menos
ao silêncio cúmplice dos outros
a solidão radical
do emigrante interior.

João José Cochofel

João José Cochofel, nasceu a 17 de Julho de 1919. Ensaísta e poeta do núcleo neo-realista coimbrão, formou-se em Ciências Histórico-Filosóficas. Fez parte do grupo fundador das revistas Altitude (1939) e Vértice (1942). Foi crítico musical, dirigiu o Grande Dicionário de Literatura Portuguesa e Teoria Literária (1977), colaborou na organização do Novo Cancioneiro (1941) - colectânea de poemas ligados ao neo-realismo. Da sua obra poética, destacam-se Instantes (1937), Sol de Agosto (1941) e 46º Aniversário (1966), entre outros. Faleceu em 1982.

George por Mexia

Excelente texto de Pedro Mexia, na edição desta semana do 6.ª (Diário de Notícias), sobre Não é fácil dizer bem, de João Pedro George. Aproveito para confessar que Pedro Mexia é dos poucos críticos literários portugueses, seja lá o que isso for, que leio sempre com imenso prazer. Do texto em causa, destaco as seguintes passagens: «O estilo vigoroso de George tem suscitado reacções excessivas: os visados e outros membros do clube das letras, incomodados, recorrem ao ataque pessoal ou mesmo ao insulto; os medíocres e os ressentidos, por seu lado, elegem George como seu cruzado na demolição da actual literatura portuguesa, essa coisa infecta. (…) João Pedro George é perspicaz nas considerações sobre a recepção dos textos e as engrenagens literárias; é minucioso na sua close reading linha a linha; mas no meio disto perde-se muitas vezes a visão de conjunto de um livro, as suas ideias, o seu tom ou intenção. (…) Claro que a leitura sublinhada dos textos é muito acutilante, uma vez que detecta e desmonta banalidades, clichés, desleixos, pretensiosismos e sentimentalices. Mas o entendimento de George sobre enredo ou estilo ou clareza ou autobiografismo vigiado é essencialmente um elemento de gosto que devia sempre ser assumido como tal; acontece que George, quando se sente acossado, não resiste a procurar refúgio numa suposta cientificidade que contraria o seu credo (…). Nestes textos de crítica literária de João Pedro George há quase sempre notas pessoais (ex: um saldo do Multibanco dentro de um livro em análise) e uma linguagem coloquial ou castiça (“com mil buzinas”, “apanhar bonés”, “macacos me mordam”, “pessegada”). Isto acontece porque George se aproxima muitas vezes da crónica, mesmo quando escreve crítica. (…) Já as ficções do último terço do livro ou são maus textos que George não sabe que são maus textos, ou então estão lá como simples pretexto para a criação do heterónimo “Rui Falcão”, um leitor imaginário que funciona como auto-crítica por interposta personagem ou como guerra preventiva contra as objecções inevitáveis ao “caso mental” João Pedro George.» Para ler na íntegra.

29.6.06

ARteoRIA # 7 : Volume X (1998/1999)

- Conhece o trabalho de Armand Schulthess?

- Não, o que fez ele?

- Desistiu de comunicar oralmente com o mundo aos 50 anos. Isolou-se e escreveu umas marcas que inventou em árvores, no bosque que rodeava a sua casa.

- Ai, que tédio...! Já viu se a vida fosse só como está na nossa cabeça?.

- Mas é muito como está na sua.

- Está a exagerar. Talvez seja muito como está na sua.

- Mas eu digo verde e você responde amarelo

- Mas isso até tem graça!*
Maria João
Natália de Andrade
O Nosso Amor é Verde

* In Diálogos da Academia, edição MJLF, numerada e oferecida a todos os que entraram em diálogo comigo durante o percurso académico. Trata-se de uma sebenta onde registei um projecto de dez livros, a executar cada um em duas placas de pedra, ligadas por argolas de aço, onde os textos seriam escritos com ácido, tal como se faz nas campas. Na altura achei que seria bom executar este diálogo em mármore amarelo, mas isso não existe. Também pensei no mármore verde de Ficalho, mas agora e depois de conhecer a grande Natália de Andrade a cantar O nosso amor é verde, penso que o verde de Viana, que é duro como o granito, é muito mais chique.

Bloco de apontamentos # 34

fotograma
MJLF, S/ título, fotograma em cybachrome, 1994.

Ontem a lua salvou-me quando fechei os olhos para ver intensamente e a cabeça a girar estava a chegar àquele ponto onde já nada faz sentido, numa espécie de aproximação ao nada, ao que não podemos ver ou percepcionar. Então, ouvi a respiração da lua que me lembrou de que também estava a respirar.

Maria João

FADO KAPITAL

À porta da discoteca Kapital
há gente à espera de um lugar vistoso
pra lá da porta onde um vaso cheiroso
concede a entrada a quem não fica mal

Há quem espere aí tempos infinitos
em bicos de pés com o nariz à espreita
Não cabem todos a porta é estreita
e o sol da noite só nasce prós bonitos

Lá dentro, armas e armanis imitadas
por copos de cerveja com gente por trás;
planetas e estrelas, maravilhas atrás
de outras, conversas d’oiro marchetadas:

"Já estou super-farta de noitadas"
"Olá sua marota como vai a Mimi?"
"Vem aí o deputado … então por aqui?"
"Fui para a neve ó parti as queixadas"

"Mamas daquelas só de silicone"
"Ele é tão simples e gosta tanto de mim"
"Agora pago eu ai não seja assim"
"Foi apanhada coa boca no trombone"

Assim se veste a alma e passa a hora
Conversa amiga cool e mais da moda
Numa só noite ter a vida toda!...
Beijinho mais beijinho fui-me embora

Rui Costa

28.6.06

O blogue da Fundação Rosa Casaco

in Arrastão.

Cito: «Quem não percebe a diferença entre a presunção de uma intenção e um acto, nunca saberá de que lado está. E quem compara Rosa Cavaco [delicioso acto falhado] aos anti-fascistas escolhe um lado. No caso destes senhores, o de Rosa Casaco. Que lhes faça bom proveito.»
E acrescento: sempre achei esse weblog da blasfémia uma rica bosta. Isto não tem nada que ver com política. Há "weblogs à direita" que leio todos os dias com imenso prazer. Mas esse, depois da experiência inicial, só lá tropeço quando outros para lá me enviam. Desta vez fui lá parar levado por um arrastão.

AS ÁRVORES

Árvores
As girafas têm o pescoço comprido porque esticaram muito o pescoço à procura das folhas mais altas.

E/ou: as girafas têm o pescoço comprido porque os pais delas, que tinham o pescoço comprido, foram os que se adaptaram melhor ao meio.

E/ou: as árvores esticam-se muito para serem altas e as girafas não lhes comerem as folhas.
Rui Costa

Post sobre nada em particular para ninguém em geral

Pratiquei futebol até aos 17 anos, quando parti para a capital a ver se me licenciavam. Gosto muito de futebol e se há coisa da qual sinta saudade é de uma boa futebolada. Muito de vez em quando, junto-me aos possíveis para dar uns toques em pavilhão fechado. Quem gosta de futebol, sabe que jogar em salão, cinco contra cinco, é como praticar surf num mar bonançoso. Mas enfim, a gente faz o que pode para matar o vício. O meu clube é o Sporting de Portugal, mas não vivo a coisa com fundamentalismo. Não sou sócio. A época transacta fui uma única vez ao estádio. Acresce que aprecio sobremaneira os programas da bola, que tomo ao estilo de comédias espontâneas e grotescas. Vejo quase sempre O Dia Seguinte, às segundas na SICN, e o Trio de Ataque, às terças na RTPN. Se consigo compreender a febre pelo futebol, já o mesmo não sucede relativamente à febre anti-futebol. A febre pelo futebol compreendo-a de muitas maneiras. Por exemplo, a carência que leva as pessoas a sentirem como suas as vitórias dos seus clubes ou da sua selecção. É uma grande ilusão, pois claro. Mas o que não é, hoje em dia, uma grande ilusão? Fiquei contente quando Carlos Lopes, Rosa Mota, Fernanda Ribeiro, entre outros, venceram provas importantes representando Portugal. Da mesma maneira que me senti feliz pelo Nobel atribuído a Saramago. Por que não hei-de manifestar a mesma alegria quando se trata da selecção de futebol? Há, clara e obviamente, um excesso de futebol nos media. Mas os media vivem e sobrevivem desses excessos: seja o excesso de futebol, de entretenimento, de escândalos, de novelas, do que quer que seja. O excesso é, pela sua própria razão de ser, o que atrai as massas. Um acidente grave, porque excessivo, atrai todos os olhares sobre si. Os media, dependentes que estão do excesso para gerarem receitas, exploram isso até ao tutano como bem sabem, querem e podem. Mas eu prefiro isso à impossibilidade de ter isso. Sendo-me possibilitado esse excesso, não deixa de me ser possibilitada a hipótese de recusá-lo. Mudando de canal, procurando alternativas. Elas existem, não vale a pena dizer que não porque, na realidade, elas existem. Basta procurar e não engolir tudo o que nos metem na boca. Como tal, não consigo compreender a febre anti-futebol. Para remate, recordo uma entrevista de ontem, na 2:, no programa de Ana Sousa Dias. O entrevistado era Ney Matogrosso, que interrogado sobre o escândalo gerado pelos excessos das suas prestações em palco disse, quanto a mim, o fundamental: «Quem não gosta, coma menos».

Parabéns

A Rui Pedro, por um ano de apontamentos. Comemora a efeméride com Uma tipologia dos bloguistas.

Fragmento # 34 – Estação

O segredo da vida encontra-se nas estações onde paramos
Joseph Beuys


- Por favor, pode-me indicar onde é a saída da estação?
- Claro, vai sempre em frente, vira à direita a seguir àquela árvore e segue depois até às escadas rolantes.
- Olhe que está a falar comigo como se eu visse...
- Desculpe, eu vou lá consigo.
- Preciso de apanhar um táxi e aqui não sei o caminho.
- Vamos em frente. Hoje fui parar à antiga estação das camionetas, não sabia que agora é aqui.
- Eu na antiga sabia onde estava tudo.
- À nossa direita temos uma árvore, depois viramos na próxima, na passadeira.
- Os taxis ficam muito longe das escadas rolantes?
- Não, é logo a seguir, também à direita. Vamos virar agora, tal como toda a gente.
- Na outra estação era mais fácil o caminho.
- Aqui não é difícil, tem alguns obstáculos. Gosto mais desta estação, tem espaço ao ar livre.
- Isso para mim é mais complicado.
- Agora já estamos perto.
- Na outra estação não ficava tão longe, era só sair do edifício e encontrava logo a paragem.
- Estamos a chegar às escadas
- Muito obrigado.
- Não quer que vá consigo até lá abaixo?
- Não, já sei como é. Sabe que falou comigo sempre como se eu visse?
- Não me leve a mal, sou muito despassarada.

Maria João

27.6.06

ARteoRIA # 6 : Volume IX (1996/1997)

- Como é? Para se ser de Évora é necessário ser rico e estúpido, não é? Como é que pensava o Virgílio Ferreira?

- Do Virgílio Ferreira lembro-me melhor de outras coisas.

- Como assim?

- “ Évora mortuária, encruzilhada de raças, ossuário dos séculos e dos sonhos dos homens, como te lembro, como me dóis!”

- Ah...! Sabe, li esse livro quando tinha 18 anos e fiquei muito abalado.

- É sempre complicada a descoberta do eu.

- Sim, alguns aguentam, outros não. É como o grito do Tristan Tzara. Como era na Aparição?

- Era a relação de um professor de liceu com um aluno chamado Bexiguinha.

- Que repetia a palavra galinha.

- Não era galinha, era pedra.*
Maria João

* In Diálogos da Academia, edição MJLF, numerada e oferecida a todos os que entraram em diálogo comigo durante o percurso académico. Trata-se de uma sebenta onde registei um projecto de dez livros, a executar cada um em duas placas de pedra, ligadas por argolas de aço, onde os textos seriam escritos com ácido, tal como se faz nas campas. Na altura achei que para este diálogo, qualquer mármore servia, mas tinha de estar em estado bruto e com pouco polimento. Agora, a esta distância e depois de visitar a cidade do Porto, prefiro o cinzento do granito e as suas surpresas.

p a l a v r a s


Não digas alma, diz corpo. Não digas morte, diz vida. Não digas memória, diz esquecimento. Não digas coração, diz pulmão. Não digas amor, diz ódio. Não digas ideia, diz afecto. Não digas boca, diz mão. Não digas vento, diz respiração. Não digas luz, diz sombra. Não digas noite, diz crepúsculo. Não digas palavra, diz imagem. Não digas casa, diz rua. Não digas outro, diz eu. Não digas heroísmo, diz medo. Não digas mãe, diz poesia. Não digas céu, diz chão. Não digas flor, diz fruto. Não digas silêncio, diz ruído. Não digas ruído, diz eco. Não digas nada, diz tudo.
4 de Maior de 2005

PROTESTO

São como flores fanadas os fúteis alfarrábios,
estagnados e doentios como a água adormecida,
do senhor dom artista que não quis colar os lábios
contra os seios da vida.

O homem que vende livros na velha padiola
expõe o romance da sua vida nessa espécie de montra
e grita contra os romances onde a vida estiola
em maciezas de lontra.

E em todos os cantos e recantos da rua
gritam contra os versos mornos, versos mansos, versos falsos,
as mulheres bem vestidas que ganham a vida nuas
e os garotos descalços.

Sidónio Muralha

Sidónio Muralha nasceu em Lisboa a 29 de Julho de 1920. Integrado no movimento neo-realista, estreou-se com Beco, colectânea de poemas publicada em 1941. Perseguido pela ditadura, partiu para o Congo Belga, acabando por fixar residência, já na década de 1960, no Brasil. Escreveu contos, novelas, poemas, dedicando-se também à literatura infantil. O seu primeiro livro de poemas para crianças data, porém, de 1950: Bicos, Bichinhos e Bicharocos. No Brasil, fundou a Editora Giroflé. Faleceu em Curitiba no ano de 1982.

26.6.06

A saga contínua… (sic)

Eu sei, o assunto já tresanda. Ainda assim, arrisco deixar aqui ligações para “um debate ameno” que vai ocorrendo em águas blogolândicas. Os intervenientes são João Morgado Fernandes, João Villalobos e Daniel Melo. Este último, se não me engano, é o mesmo que aquando da "polémica das toupeiras” comentou no Insónia: «Subscrevo o essencial dos comentários do J. P. George sobre o favoritismo na crítica literária lusa (ter sido o DN a servir de pretexto, existindo o suplemento floral do Público e outros há séculos, foi um bocado injusto, embora aquele tenha dado o flanco). Nem tudo estará completamente certo (é possível criticar/ recensear amigos ou conhecidos mantendo imparcialidade, claro); porém, num meio com espaço draconianamente limitado e essencialmente público como o jornalístico, há que ser selectivo e imparcial. A propósito, já repararam no espacinho destinado ao ensaio e às ciências sociais na imprensa lusa? Se formos por aí, ui... Claro que ser o JPP a vir a terreiro (bem criticado pelo Pedro Mexia, em «Gu gu»), o intelectual orgânico do centrão/ direita/ do que está a dar, o polícia-sinaleiro dos media (que quanto mais lhes bate mais eles gostam dele), o intelectual do (novo) regime, enfim... Em suma, é o que há na chafarica. Alternativa: El Pais (em linha, à borlix!), The Guardian, etc.. E a Internet, claro!» E acrescentou: «O cerne da polémica é o contexto da escolha que se faz na divulgação cultural, o que se revela e o que se omite e suas implicações. Neste particular, o ensaio/ reflexão científica em Portugal é um enteado desgraçado, onde só cabem os textos de uns poucos budas e pseudo-ensaios de vips, que todos correm a opinar, salivando de contentamento parolo por irem atrás da carruagem. Também poderia falar no teatro, dentro da ficção. No meio cultural luso vivemos ainda em sociedade de corte semi-feudal, em sistema de coutadas, donde se sai de vez em quando para ir ao beija-mão nos palácios reais ou de fidalgos amigos.» É claro e óbvio que já nada disto é sobre crítica literária. Daí o regabofe.

25.6.06


Calma, gentes. A vossa paz está a um poderá da nossa burocracia. A vossa vida está a um deverá dos nossos cuidados. Em breve, poderão sentir a justeza do Conselho de Segurança da ONU: a diplomacia sempre foi mais lenta do que a morte. Mas nós, nós saberemos aparar-vos os mortos e os corpos catanados na celebração que se avizinha. O que é um ano de reformas ao pé do vosso sangue derramado? À distância, importa para já assinalar «que estamos em face da maior crise humanitária do mundo». Sejam compreensivos.

Bloco de apontamentos # 33

MJLF, páginas do livro Babilónias, 2000.

A última vez que me cruzei com a escrita, apontei os teus pensamentos numa factura de supermercado que já tinha pago. Agora reencontro a factura e vejo que tudo o que apontei foi sobre o futuro ser sempre uma incógnita.

Maria João

QUADRAS

Alma de humilde tem asas,
De ambicioso, rasteja.
O incenso morre nas brasas
E perfuma toda a igreja…

Pedaços de espelho são
Espelhos do mesmo modo…
Reparte o meu coração
E em cada parte irás todo!

Porque fui dançar na boda,
Em que foi que te ofendi?
Andei sempre à roda, à roda,
- Mas sempre à roda de ti…

Não anda sem companheira
O amor, a eterna criança…
Quando não é a Cegueira,
É sempre a Desconfiança.

Augusto Gil
Augusto Gil nasceu no Porto em 1873. Formou-se em Direito, na Universidade de Coimbra, em 1898. Pertenceu à Academia das Ciências de Lisboa, cidade onde exerceu advocacia. Em 1894, ainda antes do curso concluído, publicou Musa Cérula. Alcançou alguma popularidade com Luar de Janeiro, de 1909, e O Canto da Cigarra (sátiras às mulheres), de 1910. Faleceu em 1929.

O escritor

No Mil Folhas desta semana, anuncia-se logo a abrir novo livro de Eduardo Prado Coelho (ensaísta e cronista do PÚBLICO) lá para 11 de Julho. (sem retroactivos) Umas páginas depois, o homem do livro dá azo a um exercício do mais ignóbil que possa imaginar-se. Não sei se Eduardo Prado Coelho ensandeceu, mas nada mais pode explicar uma coisa daquelas. Supostamente sobre livro de J. M. Coetzee, metade da crónica desta semana é para achincalhar de modo sórdido e vergonhoso Augusto M. Seabra. Este, recordo, tinha opinado na semana passada, no mesmo suplemento, o seguinte: «Como suponho que será óbvio - para mim é-o certamente -, o sistema crítico de Prado Coelho e o método de George, o que foi designada por "crítica bulldozer", têm estatutos incomparáveis. Mas também o longo percurso crítico e intelectual de E.P.C. inclusive autor de uma obra de referência, "Os Universos da Crítica", me levam a dizer que o seu exercício quase diário de opinião nas páginas deste jornal se está a tornar com cada vez maior frequência penoso e mesmo pernicioso, nem que seja pelo desgaste das formas e das fórmulas». Reaccionariamente, EPC reage mais uma vez acusando «a atmosfera de frustração em que se envolve tudo o que [Augusto M. Seabra] escreve». Diz que tem «pelo Augusto uma enorme admiração», mas depois chama-lhe «amargo e ressentido», «magoado pelo facto de os cargos e responsabilidades irem sistematicamente para os outros», que «nunca conseguiu fazer textos, sobretudo textos teóricos, mais extensos e consequentes», etc. Para quem crê que o mal-estar nas letras portuguesas tem nos weblogs o seu circo predilecto, basta ler a crónica desta semana de Eduardo Prado Coelho para perceber que está errado. Esta gente, que há anos comanda as hostes, não se dá ao respeito. Manter Eduardo Prado Coelho a escrever coisas daquelas num suplemento literário é penoso, tão penoso quanto assistir à decadência do touro que se arrasta pela arena. Se o nível das elites desce assim tão raso, tão rasteiro, tão superficial, tão rude, tão primário, tão grosseiro, o que se pode esperar da populaça tantas vezes criticada, rebaixada, ridicularizada, humilhada por estes pregadores da cultura? Venha a bola, que de cultura desta estou eu cheio.

23.6.06

Bloco de apontamentos # 32

Fotograma
MJLF, S/título, fotograma em cybachrome, 1994.

São inúmeras as coisas às quais resisti, antigamente, porque achava que era nova demais, agora, porque já estou fora de prazo para elas. Posso enumerar algumas: o casamento, ter filhos, ter uma carreira (seja lá qual for), ir ao cabeleireiro, trabalhar das 9h às 17h, abandonar Portugal, tirar a carta de condução ou ter um telemóvel. Sou uma resistente, amo a vida porque conheço o sabor doce e amargo da liberdade.

Maria João

Queda no Real

entre o real e o irreal
está a ambiguidade do imaginário

entre o real e o imaginário
está a ambiguidade dupla da invenção

entre o imaginário e o irreal
está a duplicidade ambígua da fantasia

entre o real e a invenção
está a ambiguidade tripla do rigoroso

entre o irreal e a fantasia
está a triplicidade bi-ambígua do sonho

entre o rigoroso e o real
está a quádrupla ambiguidade da ciência

entre o sonho e o irreal
está a quíntupla multi-ambiguidade da alucinação

entre a ciência e a alucinação
está a exponencial simplicidade
da dupla real e irreal

em gravidade zero

E. M. de Melo e Castro

E. M. de Melo e Castro nasceu na Covilhã em 1932. Poeta, crítico e ensaísta, frequentou a Faculdade de Medicina de Lisboa mas veio a formar-se em Engenharia Têxtil em Bradford (Inglaterra). Doutorado em Letras pela Universidade de São Paulo (1998), ministrou no Brasil diversos cursos de Literatura Portuguesa. Introdutor, com outros autores, do "experimentalismo poético" em Portugal, tem sido um dos seus mais destacados teóricos. Publicou, em 1952, Sismo, vindo a destacar-se dez anos mais tarde com Ideogramas. Foi organizador do segundo caderno de Poesia Experimental e de outras publicações de carácter vanguardista como Hidra e Operação I. A Melo e Castro se deve também a organização de várias antologias de poesia e conto, assim como de programas radiofónicos de Poesia.

22.6.06

Bloco de apontamentos # 31


MJLF, Diálogo com Camões, 2006.
Tem o tempo sua ordem já sabida.
O mundo, não; mas anda tão confuso
Que parece que dele Deus se esquece.
Luís de Camões
Maria João

(redução e fuga)

reduzir tudo
ao nada
ao sentir de
circulares ondas
de poesia
sendo a palavra
a fuga
à razão
à certeza
ao centro
que é periferia

manuel a. domingos

manuel a. domingos nasceu em Manteigas no ano de 1977. Licenciou-se em Professores do Ensino Básico, variante Português/Inglês, na Escola Superior de Educação da Guarda. Concluiu um Mestrado em Língua, Cultura Portuguesa e Didáctica, na Universidade da Beira Interior - Covilhã, com a tese Conta-Corrente: um diário - 1974/1980 (a perspectiva vergiliana do 25 de Abril e da Pós-revolução). Publicou Entre o Silêncio e o Fogo (poesia, 2002), pelo AQUILO Teatro da Guarda. Foi colaborador do DNJovem entre 2001 e 2005. É o autor dos blogs meia-noite todo o dia, versões e a ordem alfabética . É colaborador da revista Rodapé e do weblog Insónia.

As capas da Sábado

“Excelente revista de direita”, onde escreve, entre outros, esse baluarte da luta anti-jornalismo sensacionalista que dá pelo nome de Professor José Pacheco Pereira, a Sábado pode gabar-se dos mais originais títulos de capa. Alguns exemplos: «As aventuras do Miguel» (n.º 39, com Miguel Sousa Tavares na capa), «O que ele fez para ser o melhor» (n.º 50, com Mourinho na capa), «Mude de imagem para ter sucesso» (n.67, com Mourinho na capa) «O que os torna especiais» (n.º 105, com Mourinho e Miguel Sousa Tavares na capa), «O que Figo faz para vencer» (n. 112). Nota-se também uma certa inclinação voyeurista em alguns números: «Sampaio como nunca foi visto» (n. 53), «Vieira mostra tudo» (n.º 54, com o presidente do Benfica mais uma pobre águia na capa), «Viagem dentro da TVI» (n.º 66, com José Eduardo Moniz na capa) «Os segredos do jornal mais poderoso do país» (n. 76, com Francisco Pinto Balsemão na capa), «Cavaco na intimidade» (n.º 82). Os meus números preferidos são, porém, aqueles que denotam, ao mesmo tempo e na mesma proporção, paternalismo e mística: «Acabe com os seus medos» (n.º 56), «Como ficar mais inteligente» (n.º 58), «Truques para manter o desejo sexual» (n.º 59), «Saiba lidar com a inveja» (n.º 64), «Os truques dos alunos geniais» (n.º 71), «Truques para aumentar a memória» (n.º 88). Questiono-me sobre qual será o truque para tanta originalidade. Há ainda, como não podia deixar de ser numa “excelente revista de direita”, subtis e oníricos apelos ao consumo: «10 paraísos para este Verão» (n.º 52), «Férias de luxo» (n.º 62), «Esconderijo dos ricos» (n.º 68), «Luxo – o negócio que dá certo» (n.º 80), «Hotéis de charme» (n.º 83). Tudo isto, como é óbvio, sem qualquer cedência ao jornalismo sensacionalista. P.S.: os sublinhados são meus.

21.6.06

Bloco de apontamentos # 30

MJLF, Sobreira centenária, óleo s/tela, 100x150cm, 2003.

Inaugurei um novo caderno de apontamentos graças à insónia, que apareceu primeiro com o calor excessivo no fim de Maio, e agora com a forma de relâmpagos e trovões. Tento ser um pouco mais humilde nestas questões, a natureza é que manda e sei que também sou bicho. As mudanças bruscas de tempo também têm os seus efeitos nos humanos.
Maria João

Avó Bibi (1929-2005) remisturado por Guindaste Cabisbaixo

g
A rapariga trouxe um berlinde
por cima do lábio
e não gosta que os fósforos
se cruzem no cinzeiro
com a ponta da caneta
faz um buraco na mesa
deita a cabeça e adormece
bibi tapa-a com o lado
mais quente do seu vestido.

h
O Sr. Pimenta comprou o “flying shit – wheel of death”
de gilbert & george
para colocar na parede que dá para o acre (4000m2)
da sua casa em Broadacre City
e para cada olhar rotativo de bibi
comprou uma zona verde.

i
Bis
bibi
bis.

a, b, c
d, e, f

Nuno Moura

20.6.06

Avó Bibi (1929-2005) remisturado por Guindaste Cabisbaixo

d
Bibi e o Sr. Pimenta seguem sozinhos
sem horário numa carruagem do metro
desviada por eles
sentados como no buick dois lugares
munidos de um passe internacional
sempre mais animados
em cada estação que passa.

e
Bibi emociona-se com um amor desembrulhado
de repente à sua frente
o sr. Pimenta tinha um carrinho de bebé ainda embalado
em papel grosso da loja e mostrou-lhe
a emoção dos objectos
a emoção da consciência dos desejos
de há décadas atrás
o sr. Pimenta investe com prazer
neste tipo de brincadeiras.

f
Bibi e Sr. Pimenta conversam no sofá
enquanto comem meio quilo de gelado
o elo inicia-se
o gelado brilha nas colheres
a sala ganha esse brilho verde.

a, b, c

Nuno Moura

Os professores e a culpa

Dois bons artigos sobre educação, ambos no Público, com opiniões divergentes acerca do desempenho da actual ministra da tutela. Um, pela pena inteligente de São José Almeida, intitula-se O Titanic (dia 17); o outro, de António Borges, leva um título menos metafórico: Educação, Professores e Avaliação (dia 18). No meio da discórdia, um consenso emana: há maus professores. São José Almeida é mais assertiva: «Também não há que negar que há maus professores, desleixados, que se estão nas tintas e que até ludibriam o Estado». Ao passo que Borges opta por um estilo mais técnico e, digamos assim, diplomático: «Há evidentemente muitos bons professores em Portugal; há também muitos outros que encaram o seu trabalho como uma rotina que tem de ser cumprida, sem qualquer preocupação com os resultados». O hard-core do debate, mais uma vez, parece ser o da culpa e o de uma putativa perseguição que Maria de Lurdes Rodrigues terá encetado contra a classe docente. Não sei se a ministra disse que a culpa era dos professores, ou de alguns professores, ou somente dos maus professores. O que sei é que a culpa também é dos professores. Dos maus e dos que, levados pelo instinto corporativista, teimam em nada fazer contra a permanência daqueles em lugares aos quais se agarram que nem sanguessugas. Um mau professor empregado não significa só um mau professor empregado. Um mau professor empregado significa a promoção do desmazelo em detrimento da qualidade. Um mau professor empregado significa um bom professor no desemprego. É preciso ter isto em conta. Em entrevista à Pública, Nuno Crato não se contém na excitação: «Se há culpas dos professores, essas também se devem ao Ministério. Por exemplo, se alguns professores não têm a melhor preparação científica isso deve-se ao Ministério da Educação que durante décadas se recusou a fazer aquilo que era evidentemente necessário, que era um exame de entrada na profissão». Pergunto: se um aluno chega a um 12.º ano sem saber ler (repito, sem saber ler), quem poderei considerar responsável por isso? Se um aluno chega a um 12.º ano sem saber a tabuada dos 5, de quem é a culpa? Eu acho que é do aluno, dos pais do aluno, dos professores do aluno, das escolas por onde esse aluno andou, e, em última instância, dos sucessivos sistemas que os ministérios foram impondo sem se darem ao trabalho de os fazerem cumprir. Mas antes de chegar ao ministério, a responsabilidade passa por muitas outras instâncias. Quando um cidadão não cumpre a lei, a culpa é da Assembleia da República? Quando um médico é negligente, a culpa é da Ordem? Em matéria de culpa tendo a ser cartesiano: é a coisa mais bem distribuída do mundo. Os bons professores, creio, sabem disso e, por isso, vivem desassombradamente a temática da culpa. Diria mesmo que os bons professores estão-se nas tintas para as larachas da ministra. O que não significa que os outros sejam necessariamente maus. Os bons professores, reza a história, nunca ligaram muito a ministérios que não o das aulas e do ensino dos seus alunos. Os bons professores querem alunos, querem boas escolas e boas condições de trabalho. Querem, e merecem, respeito, sendo que para tal começarão, desde logo, por darem-se ao respeito não embarcando em histerias colectivas nem corporativismos estéreis. Os bons professores, se bem percebo, não estão contra serem avaliados. Há muito que ambicionam essa avaliação. Apenas desejarão que ela seja criteriosa e, tanto quanto possível, arraste para fora da escola os maus professores. Porque é disso que se trata: limpar da escola os maus professores. Os bons professores querem encarregados de educação mais intervenientes e interessados na educação dos filhos. Querem mais organização, escolas mais autónomas, programas mais flexíveis. Os bons professores, nisso faço fé, não estão à espera que lhes reconheçam o estatuto que merecem, pois há muito sabem que o estatuto de um professor conquista-se diariamente no labor das escolas. Os bons professores têm sido, desde sempre, envenenados. O Estado, no qual se incluem os maus professores, nunca gostou dos bons professores. Mais democracia, menos democracia, a história dos bons professores sempre foi uma história de discriminação. Começa logo nos estágios profissionalizantes, na forma macabra como se avaliam competências em função do volume dos dossiers. Cabe aos bons professores terem consciência disso, procurando resistir, cada um à sua maneira, junto dos seus alunos, à tentação de se tornarem maus professores. Quem são os maus professores? Aqueles que, não assumindo também as suas responsabilidades, desmoralizam quando não são apaparicados, seja pelos ministros, seja pela opinião pública, seja por quem for.

19.6.06

Avó Bibi (1929-2005) remisturado por Guindaste Cabisbaixo

a
Há uma série de batatas
que se podem arrumar num b.i.
a senhora do arquivo sis
chama-se bibi
e canta a música do paulo tordo
ontem hoje amanhã
excita-a pegar nos dedos
a mão sobre a mão sobre um videojogo
a primeira impressão é sua
de bibi
de dedos na alegria
ontem hoje amanhã de uma assentada.

b
Bibi fotografa macacos à distância
de uma árvore e elefantes a dez trombas
gatos dourados a três porcos selvagens
centopeias flamingos a dois Dezembros
e para os marriages cassetes áudio.

c
A actriz que faz de estrela do mar
encontra-se ofendida
bibi usa o binóculo para ver a figurante
que entre os braços dos ginastas nas argolas
tenta chegar-se a Simbad
empurra não tem crachat
nem como demover os cilindros do plateau
fere-se é impossível.

Nuno Moura

Vasco Pulido Valente na 2:

Vasco Pulido Valente, numa entrevista que deu ontem à 2:, contou a história de um pobre e de uma vaca que era uma coisa em forma de assim: um funcionário do governo chegou ao pé de um pobre e deu-lhe uma vaca, sugerindo-lhe que a tratasse bem; deveria o pobre aproveitar-lhe o leite e estimá-la, fazendo fé que no futuro lhe trouxessem um boi que a pudesse cobrir; consequentemente, assim estimada, tratada e poupada, a vaca poderia vir a dar muitos bezerrinhos. Primeira moral da história: trabalha e poupa, se queres enriquecer. Aconteceu que o funcionário do governo pôs-se a andar e, logo que o viu pelas costas, o pobre matou a vaca e comeu-a. Segunda moral da história: assim que se apanha com alguma coisa, o pobre esbanja-a. Estas historietas são muito engraçadas, sobretudo quando proferidas por quem fala de barriga cheia. Num poema dedicado a Malthus, Hans Magnus Enzensberger colocou bem o problema: «O que sabemos da fome / vem da boca dos que estão saciados; grande saber não será.»
Lá em casa sempre se contou outra história: a de um rapaz, filho de pais alcoólicos, que aos 11 anos de idade teve que fazer-se à vida. Dormia num curral, aconchegado pelo calor das burras. Teve o primeiro par de sapatos oferecido pelo patrão, dono de uma tasca onde se retocava o bandulho à escória da vila. Casou cedo, com 18 anos mal feitos. Foi para a guerra do ultramar, convencido de que Portugal tinha inimigos. Chegou lá e viu gente a morrer de fome, mais pobre ainda do que ele alguma vez fora. Deixou por cá a mulher e a primeira de três filhos. No regresso, prometeu a si próprio esfolar-se para que os filhos «fossem alguém na vida». Naquele tempo, ser alguém na vida significava bom emprego. O primeiro dos três filhos fez-se juíza de direito; o segundo fez-se psicóloga; o terceiro fez-se professor. Missão cumprida? À excepção da primeira, bem instalada, ainda os outros se socorrem, de quando em vez, do que a família pode abonar. Todos para cima dos 30, apenas 1 dos três pode gabar-se da segurança e compensação no trabalho que permite uma certa emancipação financeira.
É que agora o funcionário do governo dá a vaca, mas leva para si a maior parte do leite que a vaca dá. A gente fica à espera que o boi chegue, mas ele não chega. E quando chega, tanto nós como a vaca estamos caquécticos. A vaca, estéril, bezerrinhos já não dará. Poupar? Só se for para pagar a luz, o gás, a água, as telecomunicações, a gasolina, os empréstimos, a segurança social, o IRS, o IVA… O resto dá para a comida, para a bebida, para uma muda de roupa por estação e cultura quase nenhuma. Poupar? E viver? Podemos viver? Será que se pode viver, foda-se?! Poupar? Só se for para morrer desossado, aquecido de novo pelo bafo das burras. Enfim… para que conste, o poema de Enzensberger supracitado, dedicado a Malthus e não a Vasco Pulido Valente, termina assim: «um intrépido cagarola, / um simulador que toda a vida se fez passar por saudável, / o grande folgazão entre os profetas da catástrofe.»

GALILEU


Rui Costa

18.6.06

COLAGEM: PRÁTICA(S) DA (I)MEMÓRIA

«… Chinteya, uma rapariga de 4 anos, assustada chorava. Um soldado, simulando compaixão, aproxima-se e, acariciando a criança, pergunta-lhe se está com fome. Sem porém esperar a resposta, continua «Toma o biberão». E metendo à força o cano duma arma pela boca da criança, diz: «Chupa». E dispara. A criança cai com um rombo na nuca. Não foi Chinteya a única vítima tratada assim, várias outras tiveram a mesma sorte.»

in Relatório dos Padres da Missão de S. Pedro sobre os massacres de Tete em 16-19 de Dezembro de 1972. Extracto de MASSACRES DA GUERRA COLONIAL, Edições Ulmeiro, Lisboa.

DESTITUIR-ME
DA COROA E TEIA
DE SER
HUMANIDADE:
-
PIOR QUE TUDO
SÃO OS CRIMES POR EXPIAR!

J. O Travanca-Rêgo

J.O. Travanca-Rêgo
nasceu em Vila Boim (Elvas) a 31 de Outubro de 1940. Licenciado em Filosofia, começou a publicar em 1959 (jornal Linhas de Elvas). Posteriormente, colaborou em vários jornais e revistas, estando também representado em diversas publicações de carácter colectivo. Dos seus livros de poesia publicados, destacamos Hiatos (Editorial Diferença, 1998) e Da Poesia – dois segmentos (Black Sun Editores, 1999). Morreu em 2003.

16.6.06

O CORPO

Olhai-nos com clemência, escutai nossas súplicas.
Ao sol e na pobreza nos conhecemos.
De que serve ao homem ganhar tantas batalhas,
se ao fim perde a sua contra a solidão.
Clamamos a injustiça, o opróbrio certo
sobre as nossas fronteiras: as fronteiras da alma,
cercadas pelo medo ao desconhecido.
Para que porto obscuro navega a memória
poderosa do ódio, apodrece a esperança.
De que serve ao homem destruir-se a si mesmo,
afundar-se, naufragar, no mar das suas noites,
dócil à ondulação. Olhai-nos com clemência.
Na espada e na morte nos conhecemos.
Livrai-nos dos antigos monstros da ira,
dos lábios furiosos dos nossos corações.


Tradução de Joaquim Manuel Magalhães.

Vicente Valero

Vicente Valero nasceu em Ibiza em 1963. Publicou quatro livros de poemas: Jardín de la noche (1986), Herencia y fábula (1989), Teoría solar (1992), com o qual obteve o "Premio Internacional Fundación Loewe a la Joven Creación", e, nesta mesma colecção, Vigilia en Cabo Sur (1999, Marginales 176). Como ensaista publicou os livros La poesía de Juan Ramón Jiménez (1988), Experiencia y pobreza. Walter Benjamin en Ibiza 1932-1933 (2001) e Viajeros contemporáneos (2004). »

15.6.06

L

Emmet Williams

Emmet Williams nasceu no dia 4 de Abril de 1925 em Greenville, Carolina do Sul. Formou-se em Antropologia, pela Universidade de Paris, tendo sido, na Suiça, assistente do etnologista Paul Radin. Entre 1957 e 1959 colaborou com Daniel Spoerri no círculo de poesia concreta de Darmstadt. Já na década de 60, foi um dos coordenadores do movimento Fluxus (movimento artístico de vanguarda, organizado por George Maciunas, especialmente dedicado à exploração de técnicas artísticas alternativas como a colagem, o vídeo, a performance, o happening, a poesia visual, etc.). A maior parte dos trabalhos de Emmet Williams foram realizados no contexto desse movimento, muitos deles em colaboração com Robert Filliou. Em 1967 publicou uma Antologia de Poesia Concreta, considerada ainda hoje uma das melhores recolhas do género. Em 1992 publicou uma autobiografia intitulada My Life in Flux – and Vice Versa.

14.6.06

Escrever

Antes que seja tarde, devo dizer que considero o acto de escrever pouco saudável.
E gostaria que o tom fosse considerado como um desabafo, e não confessional.
Decorrido meio século de existência, aprendi a coabitar comigo mesmo.
Quer essa relação se assuma como um comovido
flash back, ou um severo ajuste de contas.
Felizmente, sobra-me mais tempo para esquecer do que para emendar.
Decorrido meio século de existência, li e escrevi o suficiente para considerar a escrita – como qualquer outro acto criador – antropófaga até à vileza.
Ninguém se surpreenderá se afirmar que a minha geração superou esse objectivo.
Excedendo-se no
show off, ou no striptease onanista, onde um predisposto auditório se reconhece e excita.
A leitura das gerações que me precedem, em nada tem contribuído para perturbar, ou abalar, este assumido preconceito.
Os Pessoa, Kerouac, Ginsberg, Hemingway, Michaux, Aquilino, Cardoso Pires, o exaltante Saint-John Perse, ou o inevitável Herberto, todos me recusaram uma escrita límpida e saudável.
Até mesmo em
O Sorriso aos Pés da Escada, o único Miller que conservo, a beleza é perversa e sublinhada por um fio de pus.
Todos eles me envenenaram uma predisposição que começou por ser saudada na escola, e onde a família se conformou em depositar esperança de que continuasse a ser bonita.
E, sobretudo, que tivesse futuro.
Antes que seja tarde, devo esclarecer que ainda hoje tenho relutância em considerar o futuro, e que me reservo o maior desprezo pelo presente.
Sem pretender a honestidade que, dificilmente, reconheço nos outros, arrisco que a escrita – como qualquer outro acto criador – precisa de vítimas.
E alimenta vítimas.

Jorge Fallorca

Jorge Fallorca nasceu no dia 15 de Junho de 1949. Poeta, tradutor e jornalista, frequentou o Círculo de Artes Plásticas de Coimbra. Representado em várias antologias, tem grande parte da sua obra reunida no livro Fruta da Época (frenesi, Maio de 2001). Ter-se-á estreado em livro em 1976, com Imitação da Morte dos Outros (& etc). Poemas seus podem ser encontrados em revistas e antologias tais como Grade, Poesia 70 e Poesia 71, Continente/1, Aresta, & etc, Sema 1, frenesi 1980-1982 e Sião. Em 1999 venceu o IV Concurso Internacional Literário de Primavera/Poesia (Brasil). Foi-lhe ainda atribuído o Prémio Literário Cidade do Funchal, Edmundo Bettencourt/Poesia, 2000. O poema que aqui transcrevemos, foi citado do livro Longe do Mundo (frenesi, Maio de 2004).

O HOMEM CURVADO


Rui Costa

13.6.06

Queridas Contas

O Insónia existe há cerca de 385 dias. Foram publicados 2617 posts até agora. Dá uma média de 6.79 posts por dia. Average Per Day: 535. Este post, integralmente estrambótico, pretende ser apenas um contributo para os trabalhos estatísticos de Paulo Querido. Lá fora chove e troveja.

Do riso

Tenho um péssimo sentido de humor. No entanto, mais facilmente rio que choro. Raramente choro a rir. Mas quase nunca choro, tornando-se por vezes angustiante esse bloqueio. A verdade é que nunca tive jeito para o humor. Suponho que para ter humor seja necessário saber chorar, estar suficientemente bem com a vida, para que uma certa visão do mundo possa emergir do caudal de angústias, dramas e tragédias que preenchem qualquer ser humano. Eu acredito mesmo que a personalidade humana resulta basicamente das frustrações e do modo de lidar com elas. Faço parte daquele insuportável grupo de pessoas que tem uma tendência estúpida para levar a sério tudo o que ouvem. Devido a tal, às vezes passo por ingénuo, na melhor das hipóteses, outras vezes pareço arrogante, na pior das hipóteses. Até o humor eu levo a sério. Estou sempre a tentar perceber o sentido das piadas, como se fosse obrigatório as piadas terem algum sentido. Não consigo entusiasmar-me com as piadas sem sentido. Acho-as sem piada. São graçolas. Contudo, o meu maior drama não é esse. Vivo, neste momento, num país de humoristas, de sátiros, de cínicos, de irónicos. Alguns bastante bons. Outros apenas um reflexo dúbio das asneiras que berram, ou seja, uma desgraça (no sentido de sem graça). Este estado de euforia colectiva, obrigando a tudo o que seja dito um estilo, ou espírito, gracejante, deixa-me numa situação incómoda: ou entro no esquema e rio, ou continuo eu mesmo (sorumbático, sério, grave, correndo o risco de me transformar num desagradável misantropo). É que o meu real problema, aquele que está por resolver há muito, é não saber chorar. Desejo profunda e ansiosamente algo ou alguém que me faça chorar com a facilidade com que alguns fazem rir as pessoas à minha volta. Só depois de me fazerem chorar assim, eu sei que não pararei de rir.

Respigado do baú do esquecimento, com algumas alterações.

PEQUENO POEMA DIDÁTICO

O tempo é indivisível. Dize,
Qual o sentido do calendário?
Tombam as folhas e fica a árvore,
Contra o vento incerto e vário.

A vida é indivisível. Mesmo
A que se julga mais dispersa
E pertence a um eterno diálogo
A mais inconseqüente conversa.

Todos os poemas são um mesmo poema,
Todos os porres são o mesmo porre,
Não é de uma vez que se morre…
Todas as horas são horas extremas!


Mário Quintana

Mário Quintana nasceu no Rio Grande do Sul, no dia 30 de Julho de 1906. Em 1919 começou a produzir os seus primeiros trabalhos, publicados na revista Hyloea. Em 1927, por iniciativa do cronista Álvaro Moreyra, a revista Para Todos, do Rio de Janeiro, publicou um poema de sua autoria. Dois anos depois começou a trabalhar na redacção do diário O Estado do Rio Grande, publicando os seus poemas na Revista do Globo e no Correio do Povo. Traduz obras de diversos escritores: Giovanni Papini, Proust, Voltaire, Virginia Woolf, entre outros. Em 1940 estreou-se em livro com A Rua dos Cataventos. Desde então, nunca mais parou de escrever e de publicar: poesia, crónicas, prosas várias, pensamentos, literatura infanto-juvenil, etc. Em 1980 foi-lhe atribuído, pelo conjunto de sua obra, o Prémio Machado de Assis. Faleceu, em Porto Alegre, no dia 5 de Maio de 1994.

12.6.06

Avaliação dos professores/formadores pelos alunos/formandos

Há seis anos que sou avaliado pelos meus alunos e formandos. Os itens são os seguintes: modo de apresentação dos temas; conhecimentos sobre a matéria; utilização de linguagem clara e objectiva; capacidade de motivar os alunos/formandos; relacionamento com os alunos/formandos; execução de trabalhos/exercícios e actividades; pontualidade. Para cada um dos itens é pedido aos alunos/formandos uma classificação de muito fraco (1) a muito bom (5). Se bem me lembro, fui sempre classificado entre o bom (4) e o muito bom (5). O que vou expor pode, por isso, jogar contra mim: a avaliação dos professores/formadores pelos alunos/formandos é, geralmente, um logro. Todo o professor/formador sabe que é cada vez mais angustiante a ausência de espírito crítico (dos adolescentes à sociedade em geral), assim como a falta de critérios objectivos e neutros que permitam avaliar com justeza. É frequente, por exemplo, quando se pede aos alunos/formandos que avaliem os trabalhos uns dos outros, essa avaliação enfermar de simpatias e influências grupais mais ou menos explícitas. Nos momentos de auto-avaliação são usuais dois fenómenos, explicáveis, talvez, à luz da personalidade dos indivíduos em causa: ou o aluno/formando se avalia por cima ou, ao contrário, tende a avaliar-se por baixo. Raramente as avaliações elaboradas pelos alunos/formandos são sustentadas em dados objectivos, imparciais, indiferentes. Pergunte-se a um aluno/formando por que atribui uma avaliação a um trabalho de um colega e dificilmente este obterá uma resposta. As razões que sustentam este tipo de avaliação reflectem amiúde intenções que nada têm que ver com senso de justiça. Quanto a mim, isso é consequência de aspectos de vária ordem. Já referi a frequente ausência de espírito crítico, mas podia também referir um desinteresse generalizado, extensível à sociedade portuguesa, por tudo quanto implique esforço de abstracção, metodologia e objectividade, digamos assim, científica. Nós vivemos num país de improvisadores convencidos que dominar a pauta é um entrave à criatividade. Constato, deste modo, que a avaliação que os alunos/formandos fazem dos professores/formadores tende a espelhar, sobretudo, a simpatia que o aluno/formando nutre pelo professor/formador que avalia. Raramente a competência. Assim, se para um aluno/formando o bom professor/formador for o professor fixe (não manda trabalhos para casa, não marca faltas de pontualidade, é permissivo, diz umas piadas, joga uns jogos, está-se nas tintas para as competências dos alunos) a avaliação fica, à partida, inquinada. Para um aluno/formando avaliar com justiça um professor/formador é fundamental que o aluno/formando possua a consciência do que é um bom professor. O que noto é o seguinte: professor/formador que sorria muito, não registe faltas de material nem de pontualidade, seja pouco exigente e dê boas notas (muitas vezes basta a almejada positiva), corre o risco de ser considerado muito bom pelos alunos/formandos; ao invés, professor/formador que encare com seriedade o seu trabalho, registe faltas, seja exigente e procure ser justo, corre o risco de ser considerado suficiente ou, no pior dos casos, fraco (raramente muito fraco). Outro aspecto curioso é o facto de as avaliações elaboradas pelos alunos/formandos parecerem ajustar-se à postura dos professores/formadores. Por exemplo, se um professor/formador for geralmente pontual, assim como exigente com a pontualidade dos alunos/formandos, basta atrasar-se uma ou duas vezes para logo ser considerado pouco pontual; por sua vez, se um professor/formador for pouco pontual, assim como nada exigente com a pontualidade dos alunos/formandos, o aluno/formando tende a esquecer-se da falta de pontualidade do professor/formador. A negligência do professor/formador reflecte-se, de certa maneira, na negligência do aluno/formando. Dito isto, concluo que a avaliação dos professores/formadores por parte dos alunos/formandos é como os testes de psicologia: são uma ferramenta de trabalho que jamais poderá determinar qualquer tipo de conclusão, sob pena do sistema tornar-se mais injusto que justo. Vários exemplos, por vezes funestos, permitem-me estas conclusões. Ainda há bem pouco tempo uma ex-formanda confessava-se-me revelando que um seu ex-formador de Matemática, sempre excelentemente avaliado, passava as horas de formação a praticar todo o tipo de artes divinatórias com os formandos. Isto durou 3 anos consecutivos, sem que alguém desse por isso.

POP MUSIC

Goldfrapp

O que distingue as canções pop das outras é o facto de serem assobiáveis. Há melodias que entranham-se-nos de tal forma na cabeça que é impossível passar-lhes indiferente. Perseguem-nos como sombras, mais ou menos nítidas, dos ritmos que trazemos dentro. Há melodias que são a sombra dos ritmos que trazemos dentro. São uma espécie de sangue a invadir-nos, o ar que nos insufla o pulmão. Cadenciam-nos os nervos, espalham-se-nos pela pele, pelos músculos, fazem-nos andar de uma certa maneira. Há melodias que são uma espécie de cheiro, penetram-nos involuntariamente. Chegam-nos ao cérebro como uma nuvem de cifradas emoções. E depois andam por ali, entre o cérebro e o coração, a ludibriarem-nos o sentir do mundo. Há melodias que nos intoxicam para se transformarem numa espécie de cura dos males que as próprias disseminam.

A SELVA É REDONDA

Os macacos comem bananas porque
era a fruta que tinham mais à mão.
Se tivessem mais à mão morangos, os
macacos comeriam na mesma bananas,
porque os morangos são muito difíceis de
descascar. As bananas são comidas por
macacos porque são os animais com mais
mãos que têm ali à mão. As bananas não
têm mãos mas têm casca, que é uma espécie
de mão à volta da banana. As bananas prefe-
riam ter mãos mas saiu-lhes antes casca.
Ser casca não deve ser fácil, passar a vida
a ser deitado fora. Os árbitros de futebol
têm duas mãos, uma para cada cartão.
Os macacos também arbitram as bananas,
comendo-as. Os macacos não mostram
os cartões às esposas. Preferem seduzi-las
usando da inteligência. Não sei como vim
parar à selva. Talvez tenha corrido demais
atrás da bola.



Rui Costa

11.6.06

Migrantes

O sol estendeu-se sobre os telhados, a dormir a sesta. Alguns adolescentes regressam a casa com um sorriso de fim-de-semana, outros remetem para o estilo o andrajo das suas amarguras. Há ainda os outros, os que não conseguem esconder na palidez dos olhos as frustrações prolongadas na sombra. Essa sombra que os perseguirá como uma cauda animal que se transporta para a vida. Quatro migrantes fecham as feridas do trabalho à volta duma mesa de álcool e tabaco. São muitos os migrantes, são demais os migrantes, que passeiam nas ruas a solidão com que saem dos empregos e regressam às casas de ver o tempo passar. A gente nem sabe a sorte que tem num simples sumo de maçã.

10.6.06

A QUALIDADE DA INSÓNIA

Tenho um toiro fustigado nos pulsos
e por companhia a dúvida melódica
de fazer caber o poema na palavra prometida
ou de como o pomar resgata os seus filhos
se depois de perdidos se rende
à metódica certeza da devastidão.
Sossegar o peso das perguntas
nas olheiras deste vento com cio,
é o mesmo que tentar ascender nos fios da chuva
até à nuvem minada de litígios.
Resta-me aquiescer à qualidade da insónia,
conceder todo o campo às palavras amotinadas.
Talvez alvoreça uma rosa de orvalho
por entre as ruínas da madrugada revolvida.

Paulo Ferreira Borges
Paulo Ferreira Borges nasceu em Pataias em 1961. Estudou Direito na Universidade Clássica de Lisboa. Colaborou com o suplemento literário DN – Jovem, do Diário de Notícias, e com o Jornal de Letras, Artes e Ideias. A sua poesia foi várias vezes distinguida, sendo de destacar o Prémio de Revelação de Poesia da APE/IPLB de 1999 pelo livro Para Tentear a Desmesura e o Prémio de Revelação de Poesia Fernando Pessoa de 2001 atribuído ao livro A Água Materna dos Poentes.

É p'ra hoje...

Antes de mais, um esclarecimento: não me movem tricas pessoais. Não sei o que possam imaginar a esse respeito, mas eu vivo cá nas minhas caldas, não vou a colóquios, conferências, debates, lançamentos de livros, e estou-me nas tintas para aquilo a que chamam meio literário português. É certo que tenho as minhas simpatias, sobretudo enquanto leitor, mas não julgo serem importantes para o caso. Também é certo que já declinei convites, alguns até bem atraentes, que poderiam aproximar-me daquele que não é o meu lugar: o tão badalado meio. Tenho um weblog onde procuro divulgar e partilhar parte do que me toca, mas não me escuso a dizer o que penso. Mesmo quando o que penso possa ser desagradável, fastidioso, desinteressante. Cada um fará o julgamento que tiver a fazer.
Vem isto a propósito da Promessa Não Cumprida de João Pedro George. A primeira vez que ouvi o nome do autor de Não é fácil dizer bem foi num artigo, publicado na finada revista Periférica, intitulado A coutada literária do Expresso. Sublinhei-o em várias partes, concluindo: ora aqui está um gajo que os tem no sítio certo. Entretanto João Pedro George assentou praça na blogolândia, fazendo-se notar pelo espírito inquisitório e pelo tom polemista, decalque óbvio, por isso medíocre, de mestre Luiz Pacheco. Os alvos preferenciais de João Pedro George são os críticos literários, coisa que o próprio se julga, e alguns escritores mais populares, fáceis, tremendamente fáceis de abater. O estilo é o do “crítico-prontuário”, acusando nos outros o facilitismo que o próprio pratica. É um estilo essencialmente sensacionalista, que atrai pela audácia mas nada acrescenta. De certa forma, acaba mesmo por ser decepcionante. Admiro-lhe o espírito desbocado, antipático, acutilante, porque o país precisa de gente assim. Mas não julgo que a sua posição só lhe dificulte a vida, granjeando com ela um certo estatuto de independência, alguma admiração, o espanto mesquinho de um país que não está habituado a uma retórica mais corrosiva. Porém, julgo haver embuste nos intentos do nosso homem. Mais, noto-lhe quase sempre uma insuportável demagogia.
Ainda há não muito tempo, quando o vi no programa Livro Aberto, de Francisco José Viegas, a comentar listas de livros que confessou não ter lido, pensei: mas se não leu os livros, por que aceitou ir ao programa? Foi lá fazer o quê? Depois comecei a pensar em alguns posts que lhe tinha lido no Esplanar, procurando encontrar as motivações do guerreiro. É certo que a forma como João Pedro George expõe os problemas não é comum no nosso país. Mas não haverá pretensões menos impolutas na forma como o faz? Não percebo, por exemplo, como pode alguém reconhecer a um crítico, seu colega de actividade, a autoria de «críticas exemplares, pequenas maravilhas da sensibilidade humana» (17 de Outubro de 2005), para, passado pouco tempo, vir a terreno acusar esse mesmo crítico de «preguiçoso sem recursos críticos». (27 de Janeiro de 2006) Não haverá qualquer coisa de estranho nisto? Talvez não. O João Pedro George que o faz não é propriamente exemplo de coerência. É o mesmo que, saudando a chegada de Constança Cunha e Sá à blogolândia, o faz agradecendo-lhe pelos «bons tempos» (6 de Janeiro de 2006) que passou quando trabalhava no Independente. Serão esses «bons tempos» os mesmos que em 29 de Outubro de 2004 João Pedro George lembrava assim: «onde me pagavam, quando calhava e depois de muitos telefonemas, chatices várias, mal e porcamente»? Terá sido nesses “bons tempos” do Independente, que o nosso George abandonou por causa de um crítica a um livro de uma amiga da directora (e fez muito bem), que o crítico impoluto aceitou jantar com um autor da editora XPTO (que frontalidade!!!!!), acabadinho de publicar um livro. Como o próprio revelou no seu weblog, foi um repasto do melhor, com gente do meio à mistura e coisa e tal. Depois, terá regressado a casa e começou a escrever sobre o livro. Apesar do revoluteio no estômago, fê-lo. E fê-lo assim: «Quando me sentei a escrever o texto sobre o livro do qualquer coisa Rosas, a cara minhoca do escriba estava sempre a aparecer-me no computador. Era um fantasma, um espectro. Estava na engrenagem, comprimido nos dentes da engrenagem, estava a pôr em andamento a engrenagem. Mesmo com as fraldas borradas de raiva, escrevi. Nem sim nem sopas. Foi assim assim. Acabei por dizer nem mal nem bem. Mas acabou-se aí. Fechei a loja. Das vezes seguintes, mandei dizer que não podia.» Pronto, está confessado o pecado. Não há impoluto que não peque. Bons cristãos são os que se confessam e reconhecem seus pecadilhos. Mas… e a moral, a tal moral acima de tudo e de todos? A moral é Pachecal e, pela boca de João Pedro George, conclui-se desta maneira: «Porque, meus caros, o que interessa é o dinheirinho, já dizia o Salazar.» O dinheirinho? Sim, claro, o dinheirinho. Todos nós andamos a amanhar-nos como bem podemos. É ou não é? É. Então o que faz de uns mais éticos que outros? A frontalidade, pois então, com que se confessam os seus pecados e denunciam os dos outros. Se isto não é um Judas arrependido a falar, então o que é?
A pergunta que faço é esta: João Pedro George bate na coutada do Expresso (faz bem, tem a sua razão); João Pedro George bate em Eduardo Prado Coelho (faz bem, tem a sua razão); João Pedro George bate na malta do DN (faz bem, tem a sua razão); por que não bate João Pedro George nos restantes? Quem serão, em sua opinião, os bons críticos? Talvez João Pedro George se julgue o crítico que faz falta a este país. Isto não tem nada que ver com escrever sobre os amigos ou com ética e deontologia, isto só tem que ver com escrever sobre si próprio. É um homem, tal como os outros, a lutar pelo seu lugar ao Sol. Nada tenho contra os críticos que escrevam sobre livros dos amigos, como já disse e repito, desde que o façam com critério. O problema, também já o disse, pode colocar-se de outra forma: deverá um crítico escrever sobre os seus inimigos? Mais me choca que quem não tenha amigos nem inimigos se veja privado de ser criticado, condenado ao ostracismo e ignorado por parte destes senhores que passam a vida a citar-se uns aos outros, fazendo disso só mais uma forma de se citarem a si próprios. João Pedro George incluído.
Por que apontar o dedo a uns e não a outros? Talvez porque haja aqueles que são mais simpáticos que os outros. Que simpatias serão essas? Editar um livrito, por exemplo. Só de uma coisa posso estar certo: a lei de George (um livro que não seja reconhecido, comentado, acolhido pela crítica é esquecido, não existe) não cabe cá em casa (onde as estantes estão repletas de livros que não são reconhecidos, comentados, acolhidos pela crítica), sobretudo quando proferida por um crítico egocêntrico (avaliação meramente subjectiva e “psicologizante”) que não perde oportunidade para se pôr em bicos de pés. Um bom crítico é como um bom árbitro: nem se dá por ele durante o jogo. Ver como, ao estilo de um Herman José de terceira categoria, se põe a falar de si mesmo no posfácio ao Diário Remendado, de Luiz Pacheco: «O meu estilo é rebuscado, falta-me vocabulário, tenho uma tendência irreprimível para a efabulação, o exagero.» Pelo menos é sincero. Ou quase.
P.S.: Nuno Galopim, editor do suplemento 6.ª, publicou uma biografia musical de Sérgio Godinho. Deveria o suplemento onde Nuno Galopim trabalha ignorar o seu livro? Não. O próprio Nuno Galopim encarrega-se de recensear, na mesma edição do referido suplemento, dois livros dedicados a António Variações. A crítica que faz desses livros é negativa. Poderá isto ser considerado auto-promoção, falta de profissionalismo, nepotismo? Não. Mau seria que os ignorasse. Terá dito o que pensou. Fez muito bem. E nem me venham falar de interesses. Quem os não tem?

9.6.06

O HOMEM PENSANDO E O ACTO

Mete a linguística no caixote do lixo
a palavra certa na mão, atirando directa ao alvo.
No vazio da noite com a alma cansada
o corpo caído no quarto solitário
todo o passado tremendo em ti.
Distorces a caneta
e tiras o sumo tinta abstracção
sorriso de palavra
voas no teu poema
e tentas dar-lhe um final feliz.

Tiago Gomes

Tiago Gomes nasceu em Lisboa no ano de 1971. Poeta, performer, editor da revista Bíblia, publicou em 1993 o livro Caixa Negra de Avião Desviado Por Ataque Terrorista. Seguiram-se, em 1995, Homem Vago em Cinzento e, em 1998, Viola-me Eléctrica. Tem colaboração dispersa por várias revistas.

8.6.06

CADA MORTO, SUA TOCA

(Ao U. Mohamede)

Só os imbecis, pela raiva, desejam a longevidade.
Tortos, se babando, exigem os sinais do espelho.
Neste, o sol tosse pela boca dessa menoridade,
de quem, na frenética procura, toma o nariz pelo joelho.

Empinados, eles gritam; balbuciam remorsos pela saliva espessa
e o carrinho de rodas é chita, na savana, a toda a brida;
o clínico se comove, a seu lado; afaga-lhes a cabeça
e as palmas das mãos, se é inadiável o fim da vida.

Somos como eles, os imbecis, se julgando imortais.
Uns, até raptam a morte e lhe trocam as horas, os dias fatais.
Se encarquilha a realidade e a placa salta, em pragas, da boca;
nos nauseamos, somos o resto; cada morto em sua toca.

Coimbra, Dezembro de 1991

Heliodoro Baptista
Heliodoro Baptista nasceu em Gonhane, Quelimane, Moçambique, no ano de 1944. Publicou em 1987 Por Cima de Toda a Folha (Prémio Nacional de Poesia [Moçambique] em 1991) e A Filha de Thandy (1991). Poemas seus, com traduções em várias línguas, constam de antologias e estudos publicados em Moçambique, Portugal e Itália. Reside na cidade da Beira.

Humores.

in A Origem das Espécies.

Sobre isto, Francisco José Viegas escreve: «Uns são bons, outros são débeis mentais, outros (se nos conhecerem e se nós os incluirmos na lista dos nossos conhecidos) são interessantes, e ainda há a massa anónima que, claramente, não existe porque nunca foi simpática para nós.» Nem mais. E já que estou com a mão na massa, soube ontem que o autor de Longe de Manaus venceu o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores/2006. Foi notícia de fecho do telejornal da SIC. Os meus sinceros parabéns.

7.6.06

Bom dia, desenho a mesa de café onde abandono
um retrato a sépia, um risco, outro risco, um rosto.
Amareleço, alivio a consciência, a manhã, os gozos
e a angústia deste frio que, de súbito, invade a cidade.

Alguém me estende um maço de cigarros, e um isqueiro,
escondo-me atrás de um jornal, procurando ignorar
os que se aproximam, sorrindo, querendo dizer-me
qualquer coisa. Leio os anúncios, faço os crucigramas,
finjo preocupar-me com um descarrilamento na índia
e suponho que julgam que ando à procura de emprego.

Alguém fala do tempo, que vai chover, que o boletim
meteorológico não sei quê, mas fecho ainda mais o rosto
para que ninguém me pergunte que horas são, se o fumo
me incomoda. Na verdade, finjo que a terra já desapareceu.

José Viale Moutinho

José Viale Moutinho nasceu no Funchal em 1945. Escritor, jornalista no Diário de Notícias e investigador de temas literários e linguísticos, particularmente ligados a escritores portugueses do séc. XIX, participou no movimento português da Poesia Experimental e em exposições de Arte Postal. O seu primeiro livro, Urgência, data de 1966. É autor de numerosos textos em catálogos de Artes Plásticas, de obras de literatura Infantil, crónica, ensaio e organizador de volumes colectivos. Tem publicação dispersa em revistas e jornais, traduziu romances, ensaios e peças de teatro. Obteve vários prémios literários e de jornalismo. A sua obra foi traduzida em diversas edições estrangeiras, nomeadamente para asturiano, castelhano, galego e catalão, italiano, alemão.

O dom dos blogues

Andei a espreitar as caixas de comentários do weblog de Nuno Júdice. Numa delas, alguém que assina cerejinha diz: «Nuno Júdice himself? / Que honra e que prazer! / :-)» Achei piada. Os weblogs têm de facto este dom de nos fazerem pensar que são a carne e os ossos de quem, do lado de lá do monitor, debita palavras, imagens, sons. Não duvido que haja quem leia weblogs como se estivesse a ler pessoas. O weblog é o himself do autor. Só por isso pode ser uma honra ler um weblog, tal qual seria conhecer alguém que admiramos. O culminar disto poderia ser casarmos com um weblog, termos uma vida conjugal virtual. Chegarmos a casa, abraçarmos o monitor e dizermos meu amor. Assim como quem abraça alguém. De carne e osso.

6.6.06

O parêntesis

Eduardo Prado Coelho publicou hoje no Público um texto, naquele seu estilo mais afectuoso, onde lista alguns dos que são, em sua opinião, excelentes editores e programadores portugueses. Termina assim: «Algumas editoras recentes optam pelo número reduzido de livros, mas de grande qualidade. É o caso interessante de Valter Hugo Mãe [maiúsculas do autor], que lançou alguns livros curiosos (embora tenha apoiado a sua estratégia comercial num débil mental como João Pedro George). É o caso de Jorge Reis Sá [omissão de hífen do autor] e no [?] excelente trabalho da Quási [acento do autor]. Ou é [opção disjuntiva do autor] o caso de uma tentativa notável, a de Manuel Fonseca com Guerra e Paz. Esperemos que tudo isto dê bons resultados.» Não me perguntarei sobre omissões escandalosas. Victor Silva Tavares, só para dar um exemplo. Pergunto antes: para quê o parêntesis? A gente pode concordar ou não concordar com um homem. A gente pode até não simpatizar com um homem. A gente pode inclusive odiar um homem. Mas para quê o parêntesis? João Pedro George pode ser muita coisa, mas lá débil mental é que ele não é. Aliás, diria mesmo que só uma certa debilidade mental justifica um parêntesis assim.

BUÉ-DÁDÁ

Merche

O Encontro Internacional de Pessoas com Apagona Psíquica, também conhecido por Campeonato do Mundo de Futebol, vai começar. Por enquanto já fui conseguindo saber que o Cristiano Ronaldo gosta de chouriço mas não gosta de morcela. E que o Ricardo gosta de patos mas não gosta de frangos. Que o Quaresma tem muito jeito (diz a mãe) para ligar e desligar o micro-ondas. Que a Merche Romero já compra tampões com fio de ouro. Mas que nunca os usa porque tem pena de estragar o fio de ouro. Quase tremo ao saber disto mas eu sou tão curioso. O Ronaldinho é simpático e tem uns dentitos de coelho tão bacanos. Eh pá, e apesar de ter tanta pasta é uma pessoa tão simples. É amigo do seu amigo pá, e chuta bem, meu. Foda-se, eu admiro gajos assim, pá, simples. Gajos simples, tás a ver, que correm e não se queixam que tá calor, ou frio, ou o caralho. É isso, amigo, amigo, amigo, ó amigo ouve, tás a ouvir amigo, é isso que eu gosto. E mais! É isso.

Choramos juntos hoje?


Rui Costa

Mails, gentis e perplexos.

in A Origem das Espécies.

Na íntegra: O Público noticia que há correntes de mails contra a Ministra da Educação. Deve haver. Recebi alguns deles mas ri com aquele que apelava para que se protestasse junto do Presidente da República porque a situação é tal que até houve «um economista» que escreveu uma crónica indecente na Notícias Magazine (JN & DN, ao domingo): «Colegas, temos deixado que nos enxovalhem e ficamos calados. [...] O senhor que assina a carta do JN devia ser processado. Creio que, neste momento isto toca as raias do abuso.» Fui ver (como no poema do Augusto Gil). Tratava-se do texto de Manuel Ribeiro «economista», que toda a gente sabe que é «página de humor» na NM (aliás, Manuel Ribeiro nem existe). Portanto, Blog dos Marretas e Inimigo Público, cuidado.
Comentário: tenho recebido dezenas de e-mails de ataque cerrado à ministra da Educação. São textos de opinião, cuidadosamente seleccionados, são cartoons, são cartas abertas, petições, material bélico da mais alta qualidade. À medida que os vou recebendo, o eco das palavras da ministra começa a substancializar-se dentro de mim: a culpa é dos professores, a culpa é dos professores, a culpa é dos professores… E eu, que acho que a culpa é só dos maus, tendo a convencer-me que alguns dos bons também têm a sua responsabilidade. Principalmente quando embarcam em furores destrutivos sem qualquer tipo de fundamentação lógica que se vislumbre. Estão indignados? Ainda bem. Mas eu não me lembro, já dos tempos de aluno, de ministro da Educação que não indignasse os professores. Nos tempos da PGA houve mesmo um debate inesquecível, moderado por Joaquim Letria, com um Vasco Pulido Valente a espumar raiva por tudo quanto era poro. Passados estes anos, a indignação permanece. Eu prefiro indignar-me contra o estado geral do ensino a indignar-me contra uma ministra que quer retocar esse estado geral. Mas neste país sucede sempre o mais previsível: os colegas indignam-se contra a ministra. Decalcando David Luz, se os professores tecem fortes críticas ao ministro da Educação (pronto, pronto, à ministra), então deve ser porque ela está a fazer bem o seu trabalho. Deixem lá a ministra em paz. Como diz a minha mãe, sejam amiguinhos uns dos outros. Não se agridam. Falem. A falar é que a gente se entende. Afinal, onde é que a ministra é assim tão péssima? Em dizer que a culpa do estado a que isto chegou é dos professores? Queriam que a ministra dissesse o quê? Que os professores são óptimos? Se a ministra fosse mentirosa seria mais competente? (TPC: reler o parágrafo sobre a mentira útil em A República, de Platão)
Henrique Manuel Bento Fialho
(professor profissionalizado)

5.6.06

a simpatia faz milagres

GASTAR PALAVRAS

Four Tet

Kieran Hebden, guitarrista dos Fridge, banda britânica de post-rock, é o nome por trás dos Four Tet. Neste projecto Hebden aplica-se na manipulação electrónica, que é como quem diz: pega num computador e faz música. A música electrónica deve estar para a Música como os weblogs estão para a Literatura. Ou talvez não. O que me agrada nas novas tecnologias é o seu potencial criativo, o poderem estar ao serviço do espírito «do it yourself». Estive ontem na Feira do Livro de Lisboa a dizer umas coisas sobre o livro de um amigo que, de certa maneira, podem relacionar-se com isto. Esse meu amigo começou por publicar pequenas histórias em edição de autor. Além de imaginar as histórias, além de as escrever, ele paginava os textos, colava as páginas, dobrava as cartolinas, fazia as encadernações. Havia um valor adicional nessas edições, o valor de alguém que se entrega à palavra "de alma e corpo". Livro sério é aquele que é feito com seriedade, disse. Ponto final. Acontece que esse meu amigo, depois de tentar a sua sorte de várias maneiras, conseguiu finalmente ver algumas das suas histórias editadas em livro com o carimbo de uma editora. Trata-se de uma editora recente, pequenina, mas, segundo me apercebo, com muita vontade de fazer coisas boas. O livro chama-se Gastar Palavras. Reúne contos anteriormente publicados em fascículos, folhas dobradas e agrafadas que andaram de mão em mão num extraordinário bar de Leiria que dá pelo nome de Alinhavar. Passem por lá e comprovem. O Paulo teve a simpatia de me dedicar o livro. Eu tive a simpatia de o referir por aqui. Mas o livro, que venceu este ano o Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco 2005, um galardão instituído pela Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão e pela Associação Portuguesa de Escritores (APE), não tem aparecido onde mais devia aparecer. A imprensa especializada teima em ignorá-lo. Os críticos literários deste país teimam em ignorá-lo. Gostava que os bloguistas que escrevem crítica literária nos suplementos literários, ou de alguma forma estão ligados à divulgação e promoção do livro, passassem os olhos pelo weblog do meu amigo. Podem encontrar lá alguns contos. Não encontrarão o livro. Presumo que o livro tenha sido enviado para as redacções. Mas as redacções preferem perder tempo e espaço com algumas inanidades, promovendo assim alguma da porcaria que se vai impingindo à sombra das coisas boas, exibindo mesmo, por vezes, o rosto dos autores desses objectos inclassificáveis. Outros autores ganharam o mesmo prémio que o meu amigo ganhou, todos eles merecendo atenção diferente: Mário de Carvalho, Maria Velho da Costa, Luísa Costa Gomes, José Eduardo Agualusa, António Mega Ferreira, Urbano Tavares Rodrigues e Manuel Jorge Marmelo, entre outros. Desta feita, houve igualmente autores que perderam, para o livro do meu amigo, este mesmo prémio: Manuel Alegre, Frederico Lourenço, Gonçalo M. Tavares, etc… Questiono-me se a atenção seria a mesma se tivesse sido um desses autores a ganhar o prémio. O Paulo Kellerman, o meu amigo, é de Leiria. Não tem amigos influentes em Lisboa. Não tem amigos influentes nas redacções. Não tem amigos influentes nas editoras. Não tem amigos influentes. Nem faz parte de minorias protegidas. É uma pessoa... quase normal. Tem-me a mim, o pobre coitado, que o mais que posso fazer é dedicar-lhe este post fraterno e uma canção dos Four Tet.

CANTILENA

às vezes eu penso, ou então não penso.
às vezes cresço por dentro e então digo:
de quem é esta terra mais pequena, aquele
espaço no cabelo mais pequeno tão quando
a tua mão tão na minha? apertá-la é um lugar
muito perto. e digo ainda: quem é a locomotiva
de silêncio? lá fora é dia e a noite é um moinho.
sim, a planta entende as tuas pernas porque canta
nelas. a mão bate na cara, a canção hoje canta!
se alguém me perguntar eu digo que a beleza
é uma garganta toda azul a escorregar no céu.
e falo numa máquina feia de segredar ao ouvido.
quero comer o mar
quero um silêncio assim durante quinhentos poemas


Rui Costa

Rui Costa nasceu no Porto em 1972. Estudou Direito em Coimbra e foi advogado durante seis anos, em Lisboa e Londres. Concluiu um mestrado em Saúde Pública em Leeds, Inglaterra. Foi um dos vencedores do Concurso Jovens Criadores/97, do Clube Português de Artes e Ideias. Em Maio de 2005 publicou A Nuvem Prateada das Pessoas Graves, livro vencedor do Prémio de Poesia Daniel Faria 2005.

A culpa é do mexilhão

Ainda mal tinha assentado praça, a Ministra da Educação já era alvo de todas e mais algumas críticas por parte dos sindicatos dos professores. Os professores queixam-se de perseguição ao mesmo tempo que fazem marcação cerrada à ministra. A ministra persegue os professores, os professores perseguem a ministra. Quem é o coelho nesta história, a gente nunca saberá muito bem. A grande discussão agora, pasme-se, é de quem é a culpa do estado a que chegou o ensino em Portugal. A ministra diz que é dos professores. Os professores dizem que é da ministra. Eu sempre achei que um dos maiores problemas deste país é a paranóia da culpa. Ninguém quer ser culpado, achando sempre que a culpa é dos outros. O tempo vai passando, os culpados não se acusam, tudo continua na mesma. Pois eu acho que a culpa é de um país de merda, com políticos de merda, ministros da educação merdosos, professores cagões, de merda, pais de merda, alunos de merda. A culpa é da merda em que este país se tornou. Dito isto, partamos para a limpeza. Vou ali vender uma aula, volto já.