31.8.06

A crescer

O Luís Ene tinha as Micro-Entrevistas. O Luís Carmelo tem as Mini-entrevistas. A seguir...

O amor fica para os pobres

Perguntei a cerca de 40 dos meus alunos qual das palavras preferiam para designar o acto sexual: fornicar ou foder. Foram unânimes em considerar foder preferível a fornicar. Um deles chegou mesmo a acrescentar: «Fornicar é porco. Os porcos é que fornicam.» Cobri a afirmação explicando-lhe que, por muito que lhe custasse aceitar, cabe aos homens fornicar e aos porcos cobrir. Com o tempo, certas palavras adquirem efeitos que não tinham; outras, devido à sua banalização, perdem o efeito que tiveram. Porque completamente banalizado, o termo foder perdeu parte do seu significado quando aplicado em literatura. Motherfucker para aqui, fuck you para acolá, são poucos os filmes e as canções "comerciais" que não botem um fuck lá pelo meio. E que dizer do "humor à portuguesa"?A dificuldade reside precisamente no facto de o termo foder, bem mais aprazível que fornicar, estar de tal forma esvaziado de conteúdo imagético que cheira a mofo. Veja-se como após o sucesso de «O amor é fodido» não há pimba literário, ou escritor light, que não meta umas fodidelas no curso da narrativa. Agora a moda parecem ser as enrabadelas, talvez por parecer mais chocante a quem não tem mundo. Hoje, foder é mais do domínio de lixar a cabeça a alguém. «Estou fodido» significa «estou lixado». Ou, quando muito, o mais facilmente incongruente «foram-me ao cu». Ao contrário, fornicar é pinocar porco e feio. E já repararam como a expressão «fazer amor» se tornou tão... anacrónica? Ou como «fazer sexo» remete para uma espécie de actividade fabril? Sendo assim, eu diria que o artesão faz sexo, o homem vulgar fode e as putas fornicam. O amor fica para os pobres.

A GARRAFA

A Garrafa de Vinho não havia sido aberta. Talvez quisesse ser aberta, talvez não pudesse arriscar o desígnio. Se desejas muito uma coisa deves renunciar ao mundo. Durante muito tempo afastou-se das conversas, os dedos que viriam no encalço da rolha. Podia respirar o novo dia, abandonar esse afecto. Podia ser aberta. Continuar a sorver escuridão. Porque era escuro o fundo da parede. Uma garrafa sozinha é um gato que ama companhia. Vais enxotá-lo, bem sei. Ninguém a via. Só o fundo roxo da madeira. Era uma garrafa estúpida, vamos deixá-la entregue ao seu próprio sofrimento.

Rui Costa

Agente Gonçalves remisturado por TAV 69

4
Agente Gonçalves – Talvez seja um completo.
Assaltante – Diz-se complexo.

5
Assaltante – Há contra-estimulantes?
Agente Gonçalves – Estão aqui precisamente quatro.
Assaltante – Isto tudo excita-me.

6
O palerma que prenderam no hotel
brio e diligência
tinha funções mais alargadas
(limpa cabeças para gravador de imagens)
do que a hipótese
é melhor um palerma com bom coração
ou o Agente Gonçalves?
sem nenhuma dúvida
(ele vai já ter convosco)
que o Agente Gonçalves está sobrecarregado
pode morrer muita gente
e, pior, não tem substituição imediata.

(continua)

1, 2, 3

Nuno Moura

30.8.06

Cinema

Há momentos em que as cenas sucedendo-se não importam para nada, os planos a simularem um olhar autoritário e as sequências invertendo o sentido da realidade são apenas pretextos para sair de casa.

Há momentos em que o importante não é a fotografia projectada à velocidade dos olhos, nem o som das palavras ditas em silêncio e disposicionais. As palavras são sempre um mero pretexto para sairmos de casa.

Há momentos em que o mais importante não é a mulher da frente ajeitando o cabelo, o homem ao lado evitando a tosse, outro disfarçando a distracção de um telemóvel ligado ou ainda alguém atrás encolhendo-se no nosso conforto.

Há momentos em que a única imagem verdadeiramente importante é a da nossa sombra forçando-se numa contenção de lágrimas, como se fosse ridículo o medo que o fluxo dos olhos emana. Como se fosse um pretexto para não sairmos de casa.

Agente Gonçalves remisturado por TAV 69

1
Agente Gonçalves mostra a ferida que tem na cabeça
na cabeça do Agente Gonçalves existe uma prancha de surf
conduzida pelo Senhor Palomar
o Senhor Palomar sai na crista
o Senhor Palomar deixa o Agente Gonçalves
sem surf, o Agente Gonçalves é sticbuhl.

2
Identificação pela íris
empurrado para o interior
Agente Gonçalves, amarrado
vê nascer a obra de um grafita
nas paredes brancas do museu de Serralves.

3
O Papa-Anjos dorme nas costas
do Agente Gonçalves
às vezes acorda-o durante a noite
puxa-o até à rua
dá-lhe estalos com a parte de dentro
da mão fechada
arrasta-o durante toda a parede
deitam-se.

(continua)

Nuno Moura

Morte

Onde foi o corpo encontrado?
Quem encontrou o corpo morto?
Estava morto o corpo morto quando foi encontrado?
Como foi o corpo morto encontrado?

Quem era o corpo morto?

Quem era o pai ou filha ou irmão
Ou tio ou irmã ou mãe ou filho
Do corpo morto e abandonado?

Estava morto o corpo quando foi abandonado?
O corpo foi abandonado?
Por quem foi ele abandonado?

Estava o corpo morto nu ou vestido para viagem?

O que te fez declarar morto o corpo morto?
Declaraste morto o corpo morto?
Conhecias bem o corpo morto?
Como soubeste que o corpo morto estava morto?

Será que lavaste o corpo morto
Será que lhe fechaste ambos os olhos
Será que enterraste o corpo
Será que o deixaste abandonado
Será que beijaste o corpo morto


Tradução de Pedro Marques e Francisco Frazão.

Harold Pinter
Harold Pinter nasceu em Londres no dia 10 de Outubro de 1930. Começou por ser actor (com o nome David Baron) e em 1957 escreveu a sua primeira peça, The Room. Escreveu também para rádio, televisão e cinema, tendo recebido diversos prémios e distinções, entre os quais o Prémio Nobel da Literatura em 2005. Publicou os seus primeiros poemas em 1950, antes de ter sido aceite na Central School of Speech and Drama. Das suas colectâneas de poesia, destacam-se Poems and Prose 1949 – 1977, The Disappeared and Other Poems e War. »

29.8.06

PLUTÃO

Jornal do Estado de São Civil

Plutão ficou a saber esta semana que é um planeta anão. Eu, por este andar, também vou precisar de uns milhões de anos para saber quem sou.

Jornal sem vogais (Hmbf jornal)

Plutão ficou hoje a saber que é um planeta anão. Ao fim da tarde estava emocionado mas feliz, não é todos os dias que se põe fim a uma crise de identidade que dura há milhões de anos.

miNguante Jornal

Plutão é um planeta-anão. Que vergonha, Plutão.

http://www.hi5porcas.blogspot.com Jornal

Plutão é uma porca. Pequenina, é certo, mas ainda assim uma grandessíssima porca.



Rui Costa

Comentem, comentem, que a mãezinha gosta.

Rui Costa

28.8.06

NOJO

nojo
Estou triste e seco, tenho as mamas entupidas como se ninguém mais nunca, nunca mais fosse mamar nelas. Isto afecta o meu pensamento, quando alguém se sente mal pensa coisas que não pensa quando está bem, mas o contrário também é verdadeiro. A verdade é que sou uma mulher estúpida, porque nem sequer sou mulher, e sou um homem com coisas esquisitas na cabeça, porque digo isto. Sei que isto que escrevo não é bom de ler, mas hoje nada é bom. Hoje é um dia mau e nos dias maus devia ser possível morrer. Tenho um ego demasiado grande para morrer, parece-me, e portanto resta-me fazer sofrer alguém, já que não consigo dormir. Mas se alguém quiser tentar, matar-me, era aí que eu ia, por favor não pense muito. Sei muitas coisas mas nenhuma agora me parece importante. Há doenças terríveis, morre muita gente. A televisão dá cabo da nossa paciência. Nunca escrevi nada tão nojento. Façam isto em memória dela, digam-lhe que gosto mesmo das flores que trazia na cabeça.
Rui Costa

26.8.06

Reentré

O que me atraiu à blogolândia foi a festa da palavra, o jogo do debate, a diversão, a partilha. Quando cheguei, falava-se muito d’ A Coluna Infame e do Blogue de Esquerda. Alguns amigos diziam-me, com aquele ar de entusiasmo pelo sangue que nunca apreciei: «aquilo ainda vai dar porrada». Jamais percebi porquê, pois os meus weblogs de eleição, logo à chegada, foram outros, de gente que não conhecia de lado algum: avatares de um desejo, de Bruno Sena Martins, A Natureza do Mal, do Luís e da Sofia, Almocreve das Petas, de um enigmático masson, azul cobalto., da não menos enigmática m., A Memória Inventada, de Vasco M. Barreto, ou os saudosos Reflexos de Azul Electrico e Campo de Afectos, respectivamente do filósofo José Bragança de Miranda e do poeta Carlos Alberto Machado (duas excepções à regra). Também se falava muito do Abrupto e, não tanto, do Aviz, weblogs de gente cuja credibilidade era reconhecida noutros meios e, de certa maneira, acabava por se estender ao universo dos weblogs. Algumas das pessoas que escreviam nesses e noutros sítios, eu já as lia nos jornais, nas revistas, nos livros. Gente vinda d’ O Independente, do Diário de Notícias e seus agregados, mais tarde do Público, etc. Mas a grande surpresa para mim foi vir a encontrar uma série de nomes que me habituara a ler no malogrado , projecto de Miguel Portas que coleccionei e li devotamente. Foram os casos de Daniel Oliveira (Barnabé), Nuno Ramos de Almeida (Muro Sem Vergonha), Rui Tavares (primeiro no Cristovao-de-Moura, em debate com Paulo Varela Gomes, depois no Barnabé) ou Ivan Nunes (A Praia). De lá para cá, o fenómeno dos weblogs mudou substancialmente. Muita gente foi chegando, outros foram partindo. Cheguem ou partam, muitas dessas pessoas continuam a escrever nos jornais, participam em programas de televisão, dão entrevistas, servem inclusivamente para notas de rodapé nas páginas sensacionalistas da imprensa cor-de-pantera. Os seus percursos vão sendo feitos com a naturalidade da carreira que sobe e desce os montes até chegar ao seu lugar. Continuarei a lê-los, a escutá-los, com o mesmo gosto de sempre mas sem nenhuma religiosidade. Com o tempo, os weblogs têm vindo a enfermar de uma certa importanticidade com a qual convivo pessimamente. A culpa, claro está, é de todos e de ninguém. Uns chamam-lhe visibilidade, outros chamam-lhe legibilidade. Para mim é, nada mais nada menos, do que resultado da debilidade que tanto se acusa a Portugal e aos portugueses (esses que, por vezes, parecem ser todos os demais além de nós). Somos um país pequeno, isto anda tudo ligado. Os weblogs vieram permitir comunidades informais de leitores com uma enorme facilidade de intercomunicação. Como em Portugal somos para aí uns 300 a ler, não vale a pena esperar mais dos weblogs do que se pode esperar da sociedade. Somos uma sociedade burocrática, tristemente burocrática. (O burocrático pode aqui ser entendido, pelo bom entendedor, em sentido metafórico.) O resto será sempre o exibicionismo do costume, as patranhas da vaidade, as lérias da ambição, com o elogio e o reconhecimento à espreita no enfiamento dessa morte que a todos espera: esquecimento. Por isso, só por isso, permanecerei por cá. Insone o suficiente para me aguentar em mais uma directa na festa da palavra, no jogo do debate, na diversão, na partilha.
Adenda: Esqueci-me de mencionar, sem perdão, mais dois weblogs que visitei desde o início e aos quais devo muitas horas de leitura bem passadas: Desejo Casar e Janela Indiscreta.

25.8.06

alguém mexeu na sequência do caos
e o enfileirou diante dos nossos olhos
como uma história meiga de crianças
Fernando Dinis

Nunca mais regressaste a casa desde agosto.
O teu lugar à mesa ficou vazio. Eu passei a coleccionar
os nomes de coisas distantes, sentei-me a desenhar
sistemas de coordenadas, soletrei os hemisférios
das palavras, regressei às zonas epidérmicas do toque,
à fome anatómica dos gestos, às regiões endémicas
dos sismos, à solidão unívoca das margens dos rios,
ao silêncio lento das magnólias. Trouxe o domingo
para dentro de casa e guardei-o junto ao parto
em que me deste à luz.

Digo: Os dias são todos de morrer.
Nenhuma das memórias que tenho de ti
sabe negar essa evidência.

José Rui Teixeira

José Rui Teixeira nasceu no Porto em 1974. É licenciado em Teologia pela Universidade Católica Portuguesa e mestre em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. É professor do Colégio Luso-Francês, teólogo do Centro Catecumenal da Igreja do Porto e editor da Cosmorama. É membro do Centro de Estudos do Pensamento Português da Universidade Católica, onde trabalha na dissertação de doutoramento em Filosofia. Representado em várias revistas e antologias, publicou os seguintes livros de poesia: Vestígios (2000), Quando o verão acabar (2002), Para Morrer (2004), Melopeia (2004), O fogo e outros utensílios da luz (2005), Assim na terra (2005). É autor do weblog Equinócio de Outono.

24.8.06

Até pra não pensar é preciso técnica.
Rui Costa

DÁDÁ É PELA VITÓRIA PRÓPRIA DE CADA UM!!!
Raul Hausmann

Karawane

jolifanto bambla ô falli bambla
grossiga m’pfa habla horem
égiga goramen
higo bloiko russula huju
hollaka hollala
anlogo bung
blago bung
blago bung
bosso fataka
u uu u
schampa wulla wussa ólobo
hej tatta gôrem
eschige zumbada
wulubu ssubudu uluw ssubudu
tumba ba – umf
kusagauma
ba – umf

Hugo Ball

Hugo Ball nasceu no dia 22 de Fevereiro de 1886 em Pirmasens, Alemanha. Co-fundador do movimento DaDa de Zurique, começou por trabalhar como director de palco na Max Reinhardt School of Dramatic Art. Foi também colaborador do jornal Revolution, publicado por F. S. Bachmair. Após a I Grande Guerra, emigrou com Emmy Hennings, sua mulher, para a Suiça, onde criou, em Fevereiro de 1916, o Cabaret Voltaire numa rua de Zurique. Aí conheceu, entre outros, Hans Arp e Tristan Tzara. É por esta altura que surge o movimento DaDa, no contexto do qual compôs os seus poemas fonéticos. É ainda autor de um diário, A Fuga Para Fora do Tempo, onde documenta as suas experiências enquanto membro do movimento DaDa. Faleceu no dia 14 de Setembro de 1927.

Do desperdício


Acabei de rever Leaving Las Vegas (1995), de Mike Figgis, no canal Hollywood. Depois deste filme, só me lembro de ter voltado a ver Elisabeth Shue num thriller manhoso de John Polson, intitulado Hide and Seek (2005), onde Robert de Niro e Dakota Fanning faziam as honras da casa. Que desperdício.

22.8.06

descer fundo
- e quando digo descer fundo –
é estar no limite do teu corpo
feito unha saliente na carne
espada luminosa na veia
vibração interina de desejo
descer fundo
é ser signo e fonte, lamela
de sombra, janela recortada
no azul longínquo,
alimento escasso na febre.
descer fundo é ser o teu nome
imenso dentro de mim.

Fernando Dinis

20.8.06

DA METÁFORA COMO CHARRUA

O votivo eco da chuva nas mudas
searas do verão onde percebemos,
até onde o olhar alcança, o movimento
dissonante de dois rapazes espantando
pardais, o último rastilho da inocência.
Eis o imperturbável fôlego da metáfora
devassando os diáfanos campos da mente,
hoje, quando o candente minério das coisas
se converte noutra possibilidade. A evasiva
liberdade do entardecer o desejado antídoto
para a natureza do espírito alienado.

Paulo Teixiera
Paulo Teixeira nasceu em Lourenço Marques, actual Maputo (Moçambique) em 1962. Licenciou-se em Geografia e Planeamento Regional pela Universidade Nova de Lisboa. Como poeta, pertence a uma geração revelada durante a década de 80, afirmando-se rapidamente como uma das suas vozes mais importantes. Em 1983 foi-lhe atribuído o Prémio Revelação de Poesia da APE pelo livro Epos (1987). Publicou, entre outros, os livros As Imaginações da Verdade (1985), Conhecimento do Apocalipse (1988), Túmulo de Heróis Antigos (1999) e Orbe (2005).

17.8.06

Eu hoje acordei assim...


Antes de entrar na adolescência propriamente dita, as paredes do meu quarto estavam forradas com posters dos Dire Straits e da Madonna. Isto foi antes de ter lido O Papalagui e de ter percebido que uma coisa era a Índia outra coisa eram os índios e outra ainda os cowboys. Quando descobri os The Doors, substituí os posters da Madonna e dos Dire Straits por uma grande bandeira de pano com a Janis Joplin a fumar um charro. Daí à tradicional imagem do Che Guevara foi um palmo. No entanto, a febre comunista passou-me mais rapidamente do que uma gripe dos três dias. Há tempos ri-me com a atitude de um jovem editor, num dos weblogs de reverência, lembrando os crimes horrendos perpetrados pelo revolucionário argentino. A razão da comédia residia no facto do mesmo jovem editor estar prestes a publicar um livro onde se cantava: «a foto do Che e a boina, o olhar, a estrela e volto a acreditar que a revolução impossível é mesmo possível». (A. Pedro Ribeiro) Com o tempo, fui aprendendo a simpatizar com uma seita muito escassa de líderes. Mahatma Gandhi à cabeça e pouco mais. Dispenso ideologias que não sejam pela paz e contra a guerra, que imponham a muitos a vontade de poucos, que obriguem os desarmados a uma vida de servidão e estúpido sacrifício. A ter que aderir a uma causa, aderirei sempre à da liberdade, da autonomia, da independência, da paz. Espanto-me como certas pessoas se chocam com as confissões de Günter Grass pouco tempo depois de, com a maior das ligeirezas, terem advogado o direito à destruição, à invasão, à justiça do olho por olho, etc. Para quem não tem fome, a miséria dos outros há-de ser sempre uma questão abstracta. À esquerda e à direita, todas as extremas são absurdamente suínas. Assim como a extrema ao centro me parece arreia para burros. Em suma, desgostam-me tanto as extremas como o extremismo com que se enxota para as extremas as opiniões adversas. Quando o rosto do Che Guevara estava pendurado numa das paredes do meu quarto, sempre que não tinha argumentos para contradizer quem comigo discutia o que quer que fosse lá vinha a acusação do costume: isso é o que pensavam os nazis. Recentemente, estas puerilidades retóricas foram adaptadas à idade adulta em conceitos como os de «anti-semita» e de «anti-americano». Fiquei a saber que sempre fui coisas que jamais imaginaria poder vir a ser. Da «extrema-esquerda» e «infanticida» já sabia que era, por razão de outras acaloradas discussões. Entretanto fiquei a saber outras coisas acerca de mim mesmo pela tecla de quem não me conhece de lado algum. No fundo por uma razão tão simples: recuso-me a pensar pela cabeça das ideologias, prefiro pensar pela minha.

?

Houve uma guerra. Morreram pessoas, destruíram-se casas, alimentaram-se ódios e reforçaram-se terroristas. Espero que tenha valido a pena.

16.8.06

AS COISAS QUE NÃO VEMOS

Não há remédio. Um tipo chega das férias, feliz e renovado, dá uma volta pelo mundo e logo esmorece. A Carla diz que a política estraga as pessoas, um amigo confessa-me que para onde quer que se volte só vê «facadas nas costas com um riso nos dentes», o “tom” dos weblogs de reverência cheira a sangue derramado. O Nuno, em nova toada melancómica, diz que tudo é ressentimento. O ressentimento, segundo informam as páginas amarelas da idade, dorme na mesma cama com a inveja em promíscua "ménage à trois" com a puta da vaidade. Vêm-me à memória versos de Nick Cave: «people just ain’t no good». Não sei se das pessoas, se do mundo, se dos outros, se de nós mesmos, se das más sementes, a verdade é que muitas vezes a culpa com que olhamos a vida parece querer virá-la do avesso. Fico-me pelos livros, pelas canções, pelos filmes, pela bola jogada em campos pelados, pelas praias onde os pescadores não vistam fatos de mergulho. Estou farto de gente que só tem certezas, a quem nada espanta e tudo contorna com a sabedoria da frase feita, do remate perfeito, da citação de pacotilha. Estou farto de gente para quem tudo é guerrilha, polémica, escaramuça. Na vacuidade dos debates, estrangeirismo-aqui-silabada-acolá, somos todos génios da palavra. Tudo será apenas isso se nada fizermos para que seja outra coisa. O primeiro álbum de Nick Cave & The Bad Seeds que adquiri tinha umas meninas angélicas, vestidas de branco, em torno de um piano de cauda. Abria com uma canção intitulada «Foi na Cruz». Por essa altura adquiri também um romance de Nick Cave, publicado em Portugal pela Editorial Estampa, com um título estranho: «E o Burro viu o Anjo…» Seremos nós burros à procura de um anjo que se veja? Fecho os olhos. Vejo mil burros cavalgando sobre o dentro da minha cabeça. Não vejo um único anjo. «You can see it everywhere you look / People just ain’t no good». Fecho os olhos. Vêm-me à memória palavras do romance de Nick Cave: «A clientela de Deus é pequena e seleccionada. O Diabo é que tem a pá.» Alguém que me explique uma coisa: qual o preço a pagar pelas coisas boas que não vemos? Quando foi a última vez que vimos um anjo, que o vimos de olhos fechados, com olhos de ver? Num verso de Rilke, talvez. Pouco mais. Às vezes é preciso arrumar a casa, limpar o pó das estantes, mudar de acento, espanejar as paredes, sacudir as almofadas. Às vezes é preciso desinfestar nos cantos mais insuspeitos a possibilidade de uma invasão. Talvez uma canção ajude.

O conceito

Todos os anos, pela época balnear, há um conceito que se impõe na blogolândia lusa. Quando aqui aportei, há três anos, a medalha de ouro foi para «canícula». Este ano, a par de «desproporcionalidade», o conceito de «revisionismo histórico» parece-me em excelente posição para arrancar o primeiro lugar do pódio. Da «canícula» ao «revisionismo histórico» vai um pequeno passo para um blogger, mas um grande passo para a blogolândia. Constata-se a intelectualização do meio. Na arena, os forcados dão lugar aos cavaleiros.

Bloco de apontamentos # 41

MJLF, Um coração desassossegado, técnica mista s/papel, 21x35cm, 1995

O gato Plácido continua a tentar conquistar a Lua com o seu canto grave à janela; a Lua com o nariz no vidro fica sempre com um ar de contentamento descontente, não confia em gatos vadios, nem vai naquelas cantigas facilmente; ela sabe o que é ser uma siamesa de luxo, uma gata burguesa. Aquilo é uma serenata das antigas e o Plácido anda um bocado esfarrapado por causa da vida que leva, anda nas gatas e fica de gatas à janela. Ser gato vadio é difícil, a sobrevivência é lixada. O Plácido é um predador que caça pássaros e ratos e luta pelo seu território com unhas e dentes.

Maria João