24.9.06

Elif Shafak

Uma romancista turca, que desconheço, foi a tribunal sob acusação de insultos ao seu país. Levantou-se para aí uma onda, felizmente algo mansa, sobre o caso. Que as cabeças bem pensantes não se indignavam, que a liberdade de expressão já não importa, que isto, que aquilo. Chega entretanto a notícia de que Elif Shafak, assim se chama a romancista, foi ilibada em poucos minutos num tribunal de Istambul. Parece que as cabeças bem pensantes fizeram bem em esperar pelos factos para que a indignação pudesse fazer sentido, sob pena de, qualquer dia, a cada arroto que se ouça lá dos fundos das arábias ter que ser escrito um post sobre o assunto. Há de facto gente muito interessada em acicatar ânimos, gente para quem tudo tem que ter dois pólos, gente que não logra ver para lá dos emblemas, gente que se confunde com os próprios emblemas. Ninguém nega, ninguém pode negar, que no mundo dito ocidental há uma convivência com a liberdade de expressão que ainda não existe em muitos países de predominância islâmica. Essa liberdade de expressão é garantida, sobretudo, pela separação, mais ou menos evidente, dos poderes político e religioso. Por isso irrita tanto ver um Sócrates benzendo-se ao lado de padres que inauguram escolas do Estado. E era bom que não esquecêssemos, por exemplo, o que um sketch sobre a Última Ceia ou o Evangelho Segundo Jesus Cristo, de Saramago, provocaram ainda há não muito tempo na nossa sociedade. Gente estúpida, de vistas curtas, há em todo o lado, de todas as raças, cores e feitios. Era bom que não esquecêssemos, igualmente, as centenas de atentados contra clínicas de aborto levados a cabo por católicos fanáticos ou a forma como a Páscoa é celebrada por cristãos mais acérrimos. Era bom que não esquecêssemos muita coisa. Tal como convém sempre lembrar que uma capa como a do Inimigo Público de ontem, anunciando um Papa convertido ao islamismo, dificilmente seria bem aceite em muitos países islâmicos se invertêssemos ali alguns pormenores. Vivemos numa época em que o mais difícil é não ser tolhido pelo absurdo do radicalismo. Talvez daqui a uns anos venhamos a ter não um, não dois, mas muitos Grass arrependidos.