29.1.07

Poetas, homossexuais e vagabundos

Leopoldo María Panero

Quero apenas concentrar-me na frase, arrancá-la do contexto, descolá-la do texto e pensá-la isoladamente. A frase é de António Ladeira, encontrei-a num ensaio intitulado Subjectividade e Masculinidade em Herberto Helder e António Ramos Rosa. » Diz assim: «Os poetas, tais como os homossexuais e os vagabundos, são seres que vivem tipicamente (ou que, sobretudo, viviam no início do século passado) à margem de um determinado sistema económico, capitalista e burguês, profundamente incompatível com as vocações poéticas – num sentido (afinal) ainda romântico.» Aquela comparação, assim feita, deixa dúvidas acerca do que o autor pretende dizer. «Os poetas, tais como os homossexuais e os vagabundos», quer dizer exactamente o quê? Refere-se o autor aos poetas que também eram homossexuais e vagabundos? Pensa o autor em poetas, homossexuais e vagabundos em separado? Estará a comparar os poetas, os homossexuais e os vagabundos na sua relação com o sistema económico, capitalista e burguês? Suponho ser esta última alternativa a que mais se aproxima da intenção do autor. Assim sendo, não vejo em que é que os vagabundos, esses sim sempre à margem ou marginalizados do e pelo capitalismo, possam ser comparáveis aos poetas e aos homossexuais. Também me custa falar dos homossexuais como sendo um grupo social facilmente tipificável, pelo menos como parecem ser os grupos dos poetas e dos vagabundos. Mas pensando nos poetas, a estranheza vem logo de serem poucos os que, no início do século passado, podem ser colocados «à margem de um determinado sistema económico, capitalista e burguês, profundamente incompatível com as vocações poéticas». Não tenho grandes dúvidas quanto à "incompatibilidade" enunciada, ainda que reserve sempre alguma margem para aqueles que, dentro do sistema e em favor do sistema, vão produzindo ou produziram grandes obras poéticas. Mas o que constato é um século repleto de poetas diplomatas, poetas académicos, poetas juristas, poetas médicos, poetas jornalistas, poetas estadistas, etc., tudo actividades muito consentâneas e mesmo subsidiárias do tal «sistema económico, capitalista e burguês». Ser-se poeta, e é-se poeta porque se produz(em) versos, nunca foi sinónimo de marginalidade, ainda que facilmente reconheçamos nos poetas marginais, naqueles que resistem às tentações do conforto burguês e dos mecanismos produtivos do capitalismo, naqueles que ousam resistir à consolação, mais ou menos efémera, da fama e do proveito em vida, uma atitude mais concordante com a própria natureza da poesia, que é uma natureza inconformista, desafiadora e desviante. Não obstante, resistamos nós à tentação de aureolar quem se evidencia pela recusa e pela negação de qualquer tipo de auréola. Não são os poetas marginais mais ou menos poetas só por serem marginais, não somos nós mais ou menos credíveis por lhes dedicarmos muito do nosso tempo, nunca a poesia foi mais poesia por ser poética. O que pretendo dizer é que poesia e burguesismo não são forçosamente incompatíveis e que, deixemo-nos de mitologias ingénuas, muita apregoada marginalidade não passa de uma forma de burguesismo encapotado. O ideal será arriscar na avaliação de uma obra sem qualquer tipo de toldo biográfico ou qualquer sombra do seu autor. Se tal for possível, teremos, creio, algumas surpresas, pelo menos tantas quantas tem um professor que corrige exames sem os poder associar ao rosto dos seus alunos. Termino com três versos de Leopoldo María Panero, dos poucos poetas vivos que ainda é congruente citar quando se fala de viver à margem: «yo que todo lo prostituí, aún puedo / prostituir mi muerte y hacer / de mi cadáver el último poema».

4 Comments:

At 1:22 da manhã, Anonymous Anónimo said...

há sempre uma raça de decadentes e malditos sem cura como Sade, Lautréamont, Rimbaud, Breton, Blake, Nietzsche, Jim Morrison, Luiz Pacheco, Cesariny,sem falar nos magos e nos xamãs.

 
At 1:55 da manhã, Blogger Vitor_Vicente said...

A resistência, ou para ser mais ensaísta a desobediência poética, é sobretudo um acto espiritual e nao necessariamente uma infracçao ao código civil. A questao é que o civil e o moral tendem a condundir-se e aí é que o burguês torce o nariz e o poeta torce o rabo...

 
At 1:58 da manhã, Blogger Vitor_Vicente said...

Do que eu discordo é que os homossexuais vivam à margem do bom e do burguês. Hoje em dia os gays tornaram-se "establishment". Caro António Ladeira, que anacronismo!

 
At 12:22 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Muito bem, Henrique. Outra explicação para esse estapafúrdio argumento de António Ladeira é esta: o homem é um romântico!

Pois é Ribeiro, eles andaram e andam por aí, só que, como observa o Henrique de forma lapidar, "não obstante, resistamos nós à tentação de aureolar quem se evidencia pela recusa e pela negação de qualquer tipo de auréola. Não são os poetas marginais mais ou menos poetas só por serem marginais (...)".

 

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