14.2.07

Perguntar ofende? #4

Em 1917, um urinol intitulado “Fontaine”, assinado de R. Mutt foi enviado para o Iº salão dos independentes em Nova Iorque. Richard Mutt não era o seu autor, mas sim o dono da empresa que manufacturava urinóis; o autor do misterioso gesto publicou enquanto decorria a exposição, o seguinte artigo no jornal “The blind man of May”: Dizem que qualquer artista pagando seis dólares pode expor. Mr. Richard Mutt enviou uma “Fontaine”. Sem discussão este objecto desapareceu e nunca foi exposto. Quais as razões para recusar a “Fontaine” do Mr. Mutt:
1 - Uns afirmaram que era imoral, vulgar.
2 – Outros, que era um plágio, um evidente pedaço de canalização.
Nem a “Fontaine” do Mr Mutt é imoral, isso é absurdo, tanto quanto uma banheira é imoral. É um acessório que todos os dias se pode ver, numa montra de canalizações. Tenha o Mr. Mutt feito a “Fontaine” com as suas mãos ou não, não tem importância. Ele escolheu-o. Ele enviou um vulgar objecto útil, colocou-o de modo a que o seu significado usual desaparecesse, debaixo de um novo titulo e ponto de vista – criou um novo pensamento para esse objecto. Como canalização é um absurdo. As únicas obras de arte que a América nos deu são as canalizações e as pontes.
(in AAVV, “Art in Theory”, Blackwell Publishers, UK&USA 1992, p-248)
O artigo era acompanhado de uma fotografia de “Fontaine”, da autoria do conhecido fotógrafo Alfred Stieglitz. O autor do gesto foi Marcel Duchamp, artista afamado na altura devido a “Nu descendo as escadas”, pintura que provocou escândalo em 1913, no Armony Show, devido a ser uma representação do movimento, da mecanização do corpo humano, em oposição à representação instituída do nu como belo clássico. Duchamp era membro fundador da Sociedade de Artistas Independentes e fazia parte do Júri da exposição; ele afirmou em entrevista a Pierre Cabanne, em 1966 que “Fontaine” não foi recusada da exposição, porque nem sequer tinha passado pela apreciação do júri. A “Fontaine” era um objecto industrial que não se integrava na família de objectos que se candidataram a esta exposição e foi suprimido, não porque colocava questões morais, como foi expresso no artigo do “The Blind Man”, mas porque não era uma pintura ou escultura, por isso foi simplesmente colocado de parte. Então que tipo de objecto artístico era “Fontaine”? Duchamp apelidou-os ready-made - objectos que o gesto de escolher de um artista converte em obras de arte; ele não fez muitos, segundo Octávio Paz, Duchamp exaltou o “gesto, sem cair nunca, como tantos artistas modernos, na gesticulação do gesto. Em alguns casos os ready-made são puros, isto é, passam sem modificações do estado de objectos usuais a anti-obras de arte. Outras vezes sofrem rectificações e emendas geralmente de ordem irónica com intenção de impedir a confusão entre eles e os objectos artísticos”. ( in “Aparência Desnuda: la obra de Marcel Duchamp”, Alianza Editorial, Madrid, 1989, p-29)
O ready-made em Duchamp não foi um gesto insistente, mecanizado, foi sim crítica activa em relação à obra de arte fundamentada em adjectivos; porque a principal questão da arte antes do ready-made era “o que é belo?”, devido a estar mergulhada no domínio do juízo de gosto. Duchamp considerava o gosto como um hábito ou repetição de algo já aceite. Com o caso Richard Mutt, a arte deslocou-se desta questão e o problema da natureza da arte passou para o primeiro plano; “o que é a arte?” tornou-se a questão central no séc. xx, presente através do alargamento das fronteiras das várias expressões artísticas, com a abertura de novas possibilidades no que é o artístico, sem necessariamente estar ligado à questão do belo ou da estética. São diversos os autores que defendem que “Fontaine” em si mesma não deve ser apreciada, que se deve ter em conta sim o gesto de Duchamp, não apenas Octávio Paz. Esta ideia foi fundamentada na impossibilidade de se apreciar certos objectos, no qual inclui “Fontaine”, mas talvez não existam objectos sem qualidades a apreciar, por isso tudo pode ser candidato à apreciação. No entanto, Duchamp procurava a indiferença visual quando escolhia os objectos para os seus ready-made. Segundo o próprio: “É muito difícil escolher um objecto porque depois de quinze dias começa-se a gostar dele ou a detestá-lo. É preciso chegar a qualquer coisa de uma indiferença que não se tenha nenhuma emoção estética” (in “Engenheiro do Tempo Perdido: entrevista com Pierre Cabanne”, Assírio &Alvim, Lisboa 1990, p-70)
Será que é possível a indiferença visual, a total ausência de bom ou mau gosto na escolha de um objecto? O gesto de Duchamp tinha esta intenção inerente. Não creio que a indiferença visual fosse algo que fizesse parte das propriedades dos objectos que escolheu, até porque como ele se refere no The Blind Man, as únicas obras de arte que a América tinham dado ao mundo eram as pontes e as canalizações. Ele talvez se tenha referido à indiferença visual em relação à tradição do gosto, do modo com esta é normativa ou canónica; mas, o que era belo para Duchamp? O mundo novo e a sua tecnologia? Será que o seu gesto era apenas para questionarmos o que é o gosto? O que é a arte para além do bom e do mau gosto? O gosto funciona entre o instinto e a moda, o estilo e a receita para os objectos artísticos. Duchamp não gesticulou ready-mades, talvez por isso sejam obras que só fazem sentido serem de Duchamp, mas isso não aconteceu. O ready-made foi gesticulado, posteriormente, por muitos artistas, sobretudo na arte pop. O gesto banalizou-se. Virou-se o feitiço contra o feiticeiro? Tornou-se o ready-made depois um padrão de gosto ou uma moda? E hoje em dia, quando olhamos os ready-made, não os achamos muito belos? Os ready-made ainda nos questionam o que é a arte? O que é que nos questiona o que é a arte hoje em dia?

Maria João

2 Comments:

At 8:01 da tarde, Blogger Vítor Leal Barros said...

bem, foste ao fundo da questão... antes de dizer alguma coisa queria trancrever isto:

"A arte moderna dissolveu a tal ponto as normas estéticas que um campo artístico aberto a todos os níveis, a todas as formas de expressão, pôde por fim emergir. A vanguarda facilitou e desculpabilizou as tentativas e diligências artísticas de todos, lavrou o campo onde eclodiria uma expressão artística de massa." (pág. 117)
A Era do Vazio (Relógio d'Água), Gilles Lipovetsky

continuando o raciocínio, hoje qualquer coisa pode ser arte, desde que devidamente conceptualizada (e a ausência de conceito é já, por si, um conceito) e intelectualizada, porque foi nesse domínio que os modernos nos colocaram. "O que é que nos questiona o que é a arte hoje em dia?" uma tentaiva de resposta à tua pergunta, muito pessoal e intuitiva seria: o acto de questionar... e nesse ponto creio que arte e ciência nunca estiveram tão próximas... documentar é já uma forma de arte, por exemplo, estou a lembrar-me da susan hiller...

mas é difícil dar resposta a essas perguntas que colocas e eu não me arrisco muito mais (hehe)

beijo

 
At 8:24 da tarde, Blogger MJLF said...

pois é, Vítor, será que qualquer coisa pode ser arte? acho que vai ser o tema do próximo post, obrigada pela dica.
Maria João

 

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