6.3.07

QUANTO MAIS MORTO MAIS COERENTE



Continuamos a viver dobrados ao peso de tanta coerência.

Um autor ou artista coerente é um artista morto.

Ter estilo – forma de coerência - é persistir na falta de imaginação. Porque ter estilo é circular - infinitas vezes - dentro de um conjunto de técnicas que se domina (ou julga dominar)

Voz poética. “Fulano já encontrou a sua voz poética”. Qual voz poética? Acaso uma pessoa – qualquer pessoa – tem a mesma voz do princípio ao fim da vida? Acaso existe uma voz-modelo no mundo platónico de que os senhores pardacentos tanto gostam? De entre todas as vozes que tens ou podes ter, porquê escolher UMA? Haverá uma voz que nos simbolize/represente/seja melhor do que todas as outras juntas?

Não estou a dizer que sejam desprezíveis ou menos valiosos os esforços de quem se concentra num tema ou conjunto de temas ou de técnicas. Um bom exemplo de coerência com interesse máximo é herberto hélder, que escreve sempre o mesmo poema (por isso chamou ao conjunto da sua obra “Ou o poema contínuo”). herberto hélder investiga sempre – experimenta - , intensifica-se na busca de uma linguagem onde as metáforas, de tanto o serem – deixam de ser metáforas e são nomeações de origem, primordiais como os primeiros gemidos crentes – numa linguagem nova, destruídos os sentidos convencionais pela recombinação a que a máquina lírica submete os restos de paisagem.

Quer dizer, embora a coerência não me interesse de forma estruturante enquanto pessoa e autor (o meu segundo livro de poesia será bastante diferente do primeiro, o terceiro ainda mais diferente, o quarto não tem quase nada a ver com nenhum dos anteriores, e se sei isto é porque já estão escritos), admiro esforços “coerentes” como o do poeta citado. O que me chateia, e acho pobre e castrador, é a elevação da coerência a parâmetro de avaliação artística, estética e mesmo ética (as pessoas incoerentes assustam) constante e obrigatório, como se a coerência fosse não apenas a coisa mais natural do mundo mas também uma característica insubstituível dos artistas (e pessoas) normais, válidos e exigentes.

É evidente que o preconceito da coerência não vem do nada. Tem origens fundas no pensamento judaico-cristão que molda a civilização ocidental (o deus único, a ideia de tempo linear), no platonismo (o mundo das ideias-modelo, a permanente imitação do paraíso perdido) - velhinho de milhares de anos mas que está para durar - e noutros factores que tendem a ser subprodutos daqueles dois.

No caso de Portugal o contexto é favorável aos paladinos da “coerência”. Os portugueses, como Salazar bem percebeu, são um povo com dificuldade a conduzir a vontade – é muito mais fácil quando se tem um modelo que suscite a nossa adequação, ainda que se trate daquilo que já fizemos antes -, que acreditam no último minuto salvador e na esperteza saloia, são desenrascados mas precisam de um líder forte em quem delegar a decisão sobre as suas vidas, que não se governam nem se deixam governar – a menos que o ditador faça acompanhar os seus abusos da vozinha de beata assustada a braços com o iodo e a humi(l)dade.

Rui Costa

11 Comments:

At 11:54 da manhã, Blogger hmbf said...

Em quase absoluta concordância. Só não gosto dessa embirração com o Platão. Acho até que o leste mal. Não há autor mais cheio de contradições (e até de elogios da oposição) do que Platão, o que, provavelmente, vem da influência de autores como Empédocles. Penso eu de que… Aliás, a oposição inteligível-sensível é muito interessante e alvo de leituras díspares (todas elas, julgo eu, legítimas). É também autor de registos diversos. Mas ainda antes disso, veja-se o grande livro, o livro dos livros, – a Bíblia Sagrada – onde a voz de Deus assumiu todos os registos possíveis e imaginários. Se até Deus tem assim tantas vozes, quem somos nós, reles humanos, para as não ter? :) Ainda assim, há um "si mesmo"... Ó se há, e ele vive nessa busca constante, nessa experimentação, nessa heteronomia heteronómica que reside no imo de cada um de nós.

 
At 12:15 da tarde, Anonymous Anónimo said...

A procura da voz poética leva-nos a novos caminhos, mas também aos caminhos que tentamos a todo o custo evitar. E nessas procuras, muitas vezes, escrevem-se coisas que não se sentem, ou com as quais não nos identificamos. É possível que assim, e excluindo os exercícios, se caia na tentação de nos apropriarmos de uma suposta voz, afinal de um mundo onde nos sintamos mais confortáveis.
Mas entendo Rui e estou mesmo de acordo.

 
At 1:06 da tarde, Blogger MJLF said...

A coerencia é muito irritante, mas existe porque vende, nas artes vende bastante e não é só em Portugal - é mais facil apostar e promover a coerencia, algo previsivel em vez da experimentação. A experimentação leva mais tempo a ser aceite, não é tão facil, quem escolhe esse caminho já sabe o que lhe espera, são opções. E um artista só é artista quando morto, enquanto está vivo, o seu trabalho chateia, incomoda muita gente, questiona, provoca insegurança no que está instituido, já se sabe que é assim, se bem que no mundo em que vivemos, rápidamente tudo se pode instituir, tudo se pode tornar exemplo, tudo é absorvido pelo sistema, a experimentação rápidamente se torna moda ou tendencia, é vista e aceite desse modo. Em Portugal isso sente-se mais porque é um país pequeno, periférico e pobre, para além de ser a nossa cultura, aquela que conhecemos melhor e mais depressa nos envolvemos emocionalmente. Quanto ao Platão, está cheio de incoerencias, subscrevo o que o Henrique disse. Lembro-me agora do diálogo Parménides, em que Socrates questiona se existe uma ideia de merda e ele diz que não - grande ruptura, não existe ideia de merda, deve ser muita materia. A cultura judaico-cristã apropriou-se e intrepretou os clássicos gregos, mas atenção, a hermeneutica é sempre uma disciplina fodida.
Maria João

 
At 1:28 da tarde, Blogger MJLF said...

Perdão, Socrates é que é questionado e afirma que não existe uma ideia para a merda!
Estás a ver a hermeneutica a funcionar?
Maria João

 
At 2:01 da tarde, Anonymous Anónimo said...

A coerência permite um certo sentimento de segurança ontológica. Perceber que os condutores continuam a conduzir pela direita. Regressar a casa e encontrar as coisas nos mesmos sítios. Ler um livro do autor X e descobrir que não é assim tão diferente do anterior. Inclusive, ao fim de uma série de livros – coerentes - do mesmo autor, quase que até se pode prescindir de ler os últimos. Para algumas pessoas, a grande vantagem dos autores coerentes deve estar no facto de lhes permitir que mantenham as suas leituras dos mesmos coerentes... Sempre dá menos trabalho e chateia menos. Segurança. O pior é quando a humidade se acumula e só se dá pelo bolor quando já parece demasiado tarde para o combater.

 
At 2:27 da tarde, Blogger Luis Eme said...

A palavra coerência presta-se para tudo... até para um tratado sobre artes e letras...

A coerência tem a ver com gostos, e embora seja discutível, nem sempre se discute.
Se há um fulano (ou fulana), e existem muitos por aí, que só usam cuecas pretas, há aqui coerência com a cor, com o gosto, com o hábito...

A coerência ao nível dos valores (que podem ser olhados com judaicos, cristãos ou o que quer que seja), de todos nós, é um traço que não muda em cada um de nós. A não ser que sejamos uns troca-tintas, que andamos por aqui com o objectivo de tramar os próximos...

Não sei se os livros de poesia do Rui Costa serão tão diferentes uns dos outros, como ele nos quer fazer querer... e se isso acontece, se calhar teve de travar uma luta enorme contra a tal "coerência".

Acho que se faz muita confusão com esta palavra. Ás vezes chama-se coerência a "carneiragem" e a outras "óperas bufas"...

Procurei não ser muito coerente. Espero ter conseguido!

 
At 3:31 da tarde, Blogger Lourenço Bray said...

Este comentário foi removido pelo autor.

 
At 3:32 da tarde, Blogger Lourenço Bray said...

A única coisa coerente é o homem por detrás do escritor.
Se as coisas forem boas e genuínas, existe sempre coerência, mesmo que sejam diferentes porque o autor muda. Há sempre um ponto em comum. Nós mudamos muito ao longo da vida ou em muito pouco tempo e mesmo assim há uma sensibilidade que vem de nós desde crianças e que se mantém. Muitas vezes é genética e nem a podemos alterar.

Se um autor cria "incoerências" esforçando-se para fazer livros diferentes dos outros, então acho que entra no domínio dos exercícios superficiais e é natural que seja acusado de "incoerência". Escreveu um livro que outro escritor poderia ter escrito. Para mim, incoerência é isso, é forçar as coisas para fugir de si mesmo e ser diferente, e acabar sendo nada. Um mau escritor/poeta é sempre incoerente consigo próprio. Quando se fala em "encontrar a voz", eu creio que é isso, é descobrir uma forma da escrita se colar ao "eu", por mais irregular que seja o "eu".

E concordo com os comentários que dizem que os leitores gostam de saber que não serão surpreendidos ao adquirir um livro de determinado autor. Mas por outro lado, só cria essa imagem quem realmente já tem uma certa obra feita e já conquistou os leitores em primeiro lugar. Creio até que os escritores não o fazem de propósito e que uma grande dificuldade é conseguir evitar essa repetição, para acabar a vida num crescendo de qualidade e não em decadência ou rotina.

 
At 4:32 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Atitude, ter atitude! Pois… Ter atitude perante a vida! Pois, pois…
Será? Qual? Existe só uma? Qual?
Não sei o que e ter atitude.
Não gosto desta frase, desta palavra!
Ter atitude e uma afirmação demagógica.
Sei o que sinto e conheço o que sei, às vezes,
e tenho as mais variadas atitudes perante!
Agora atitude? Tens que ter? O que é isso?
Um imperativo categórico, uma pressão constante?
Não valemos um caralho nesta merda de vida,
mas sem atitude nem um caralho valemos!

Ter atitude é um convencimento ingénuo.
Os nossos heróis têm atitude, mas são representações, sempre.
Seja o Kafka, o Tom Waits, ou o Fernando Pessoa, olha que três.
Aliás o Fernando, que era Pessoa, até se dava ao luxo de ter a atitude de representar
várias atitudes com diferentes pessoas que afinal eram uma só, ou talvez não.
Confusos? Eu não.
Que grande Pessoa foi este Fernando, como o entendo!
Os actores têm atitude, o Al’Pacino, até os mais lindinhos Leonardos e afins,
mas são representações foda-se, e nós babamo-nos a pensar que é possível ser assim.

Ter atitude é uma sombra irreal que afaga os fracos.
Tens que ter uma atitude positiva! Tens que ter? O que é isso?
Um gajo, que é uma pessoa, tem uma vida fodida, não dá uma para a caixa,
que é o mesmo que dizer, não dá uma para a puta da vida.
A puta da vida, essa cabrona filha da mãe retribui da mesma forma, sempre.
E nós sorrimos como cordeirinhos a essa ditadora bastarda,
e dizemos, orgulhosamente enganados e fornicados, tenho uma atitude positiva!
Foda-se a atitude, foda-se o positivo!
Eu quero é ser feliz, pelo menos às vezes merda!

Ter atitude é uma prepotência imposta aos sentimentos,
ainda por cima arrogante, cínica e falsa.
Irrita-me o caralho da noção!
Não tenho atitude!
Não quero ter atitude!
Não gosto de atitude!
Cago-me para a atitude!
Nisto tudo estou como o outro, aquele que tem óculos em vez de olhos
e canta, com grande atitude, o extraordinário refrão...
“E eu e tu o que é que temos que fazer? TALVEZ FODER, TALVEZ FODER!”
Grande Pedro, isto é ser positivo!
E logo duas vezes!
joséfonseca

 
At 9:39 da tarde, Anonymous Anónimo said...

hmbf: eu acho que o nosso próprio código genético muda ao longo da vida.

etanol: um gajo como o Christo, que arranja um “conceito” (o de embrulhar) e depois passa a vida a embrulhar até morrer – se calhar é pelo guito, é.

Fernando Dinis: fiquei a pensar no que tento evitar, e acho que muito pouca coisa.

r.: a segurança tem um preço demasiado alto para quem não se acostuma à infelicidade.

luis eme: eu não sou contra a coerência (ou todas as formas dela); sou contra a ideia de que a coerência é melhor do que a incoerência.

José Fonseca: melhor que uma atitude, só várias…exactamente como as fodas.

Rui Costa

 
At 11:48 da tarde, Blogger MJLF said...

O Christo é um grande negócio: ele é pago para embrulhar e depois vende pedaços de pano ou plástico dos embrulhos como souvenires - não tenho nada contra, até acho piada aos eventos e respectivos souvenires. Mas acho que lá no fundo, no fundo, ele acredita no que faz, aquilo é uma grande trabalheira, só pode ser feito com muita paixão e arte.
Maria João

 

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