15.4.07

UM FARRAPO DE IDENTIDADE

Quando é que esta lua se descasca dos meus poemas?!
Esta zona de penumbra que vai da escola inglesa
À minha voz de barata?
A formiga empoleirada no grão de areia
Pouco se apercebe do meu titânico dilema de artista
E só tem olhos para o pé que levanto.
A abelha na sua errância doce peganhenta, se me avista
Dispara uma tangente zumbindo o seu escárnio.
A madrugadora andorinha, no seu voo seco,
Mal dispensa um olhar instantâneo às minhas penas.
O varredor dá de ombros, atira o fardo concreto
Para o camião dos salários e dos preços em subida;
O aprendiz da fábrica fecha o macacão
E aguarda a Chamada – sirene da fábrica;
O carteiro pedala a sua ronda; o soldado
Beija a namorada e corre a cumprir ordens.
Todos parecem conhecer seus eus
Mas eu como um louco insisto em decifrar
As marcas num farrapo de papel em branco
As marcas que vão ser o poema por detrás deste poema.
Tradução de José Pinto de Sá.

Dambudzo Marechera

Dambudzo Marechera nasceu a 4 de Junho de 1952 em Vengere, o maior subúrbio negro de Rusape, uma cidade da Rodésia do Sul (actual Zimbabué). A mãe era criada numa família de colonos e o pai, prematuramente desaparecido, teve uma vida acidentada, marcada pelo alcoolismo e pela prisão. Dambudzo ficou gago depois de ter sido forçado a olhar o cadáver desfigurado do pai, gaguez que apenas desaparecia quando declamava os seus poemas em público. Com a morte do pai, a mãe e as irmãs tiveram que se prostituir para sustentar a família. Enquanto tal, o poeta entregava-se às leituras, estudava. Ao mesmo tempo, começou a escrever – influenciado por autores como D. H. Lawrence, Joyce, Kurt Vonnegut ou Bukowsky… Cada vez mais embrenhado nas questões políticas do seu tempo, conseguiu uma bolsa para estudar Literatura Inglesa em Oxford. Aí viveu em permanente conflito com os professores e com os colegas, assumindo uma atitude anarquista, entregando-se aos vícios do álcool, da erva e do LSD. Acabou por ser expulso de Oxford, na sequência de uma tentativa de incendiar a universidade. Seguiram-se anos da mais paupérrima vagabundagem, apenas interrompidos em 1978 com a publicação de um volume de contos intitulado The House of Hunger. Segue-se uma vida repleta em escândalos diversos, o regresso à pátria libertada em 1982, a boémia, Mindblast, seu único livro de poemas publicado em vida. Morreu de sida em 1987, aos 35 anos. (A partir da revista LER, n.º 47)