10.6.07

INTERFACE


Dantes não me aconteciam coisas destas. Acordava descansado do sono, olhos abertos para o dia, saía de casa com todos os rumos mapeados nas certezas dos esboços desenhados antes de adormecer. Agora, assim que me levanto, sinto nas pernas uma dificuldade de articulação dos movimentos. Custa-me andar, pôr um pé à frente do outro, custa-me coordenar um músculo que seja na direcção dos objectivos que foram ficando pelo caminho. Não respiro pior, verdade seja também que não respiro melhor. Mas olho os ponteiros do relógio e invejo-lhes aquela dinâmica absoluta, a lógica dos movimentos, a coordenação, aquela cadência inabalável dos segundos que passam pelos minutos que passam pelas horas que passam. Gostava que as minhas pernas fossem como os ponteiros do relógio, dessem uma volta ao seu percurso de sempre e reiniciassem, como se nada tivesse acontecido, mais uma volta ao de sempre percurso. O problema são os buracos pelo caminho, os obstáculos, as barreiras arquitectónicas. O problema são as próprias pernas, que tropeçam umas nas outras como veias entrelaçadas, impedindo o sangue de chegar aos seus portos. Agora que me sento aqui a olhar as pernas do tempo, penso quão belos poderiam ser os caminhos não houvessem sobre eles pés calejados de pressa, varizes, fungos. O que dá cabo das pernas são as unhas dos pés.