14.6.07

VIÚVO

Eu vi as mentes mais brilhantes da minha geração destruídas pela usura, arrastando-se aos pés do quotidiano resignado e conformista da reacção, vi-as sucumbirem diante da cruz plástica dos ditadores da ambiguidade, carentes de visibilidade, de sucesso televisivo, de revelações, vi todas essas mentes prostradas diante da sombra burocrática dos doutores, dos misteres, dos júris, agrilhoadas ao poder dos elogios, dos favores, dos aplausos enluvados do sistema, tão oscilantes sob as águas turvas do passado, ridiculamente civilizadas, submissas, repetindo os gestos ancestrais da família, fazendo eco de uma alienação consentida, conforme o solo seguro da sobrevivência, vi todas essas mentes fenecendo nos ecrãs da verborreia, uniformizadas, incandescentes, perdidas no labirinto da fome, maquinalmente reproduzidas no abrigo dos pais, actrizes de uma tradição disseminada pela impressão digital da moeda corrente, que indigência, que arrivismo, as consumiu como alimento maquinal da religião económica, tão indiferentes à luminária dos enredos, amamentadas pelo coice da imagem, maquilhadas, escravas dessa metáfora que é a base sobre as borbulhas, sobre os pontos negros, sobre as rugas do tempo, dietéticas, light, vi-as tossicando referências caladas, seios teóricos, heróis de uma utopia amordaçada, ciclicamente reproduzidas na parcialidade dos discursos, certas de tudo, sem antimundos, petrificadas, eu vi essas mentes brilhantes citando poemas de trazer na carteira, poemas-epígrafe de permutações comerciais, poemas-intróito de decretos, minutas, declarações oficiosas, tão estoiradas por dentro da agonia falante, contraídas no delírio alucinante do trabalho, da produção, do consumo, vi-as singrando em páginas bafientas de poeira consumível, sem sangue, exangues, nascidas já de peito à terra, de nariz caído pelo chão, reclamadas nos guichés dos ginásios onde alternam com o psiquiatra, devolvidas à fantasmagoria perversa das agregações, nostálgicas, tristes, melancólicas, desistidas, transferidas no calor de um amor sem chama, desapaixonadas, óbvias e repetidas, melancolicamente rendidas à artificialidade dos esquemas, eu vi os intelectos perfeitos da minha geração rendidos à artificialidade dos esquemas, percorrendo os caminhos já por seus antepassados percorridos, de ombros encolhidos e orelhas moucas, de sabedoria engavetada na gravata, engravatada no canudo, cérebros vibrando com jogos inúteis, supérfluos, de encapelamento homologado, soluços contidos, controlados, abjecta e respeitosamente evitados, prudentemente exercidos, eu vi esses cérebros tão prudentes, tão ponderados, tão taquigraficamente cautelosos, dispondo sobre o sono as armadilhas do caos.