16.7.07

SER OU NÃO SER ROMANCE


Eduardo Pitta diz que a Maria Gabriela Llansol não é romancista. Não se pode dizer que é uma observação errada mas pode dizer-se que…depende! (que começo afónico). Mas depende, realmente, do que se considere romance. Pode dizer-se também, como já o fez Eduardo Prado Coelho, que a escrita de Llansol não é literatura. Mas isto depende do que se considere ser literatura. Observações do tipo da de Eduardo Pitta ou de Eduardo Prado Coelho demonstram, acho eu, a constatação por parte de quem as profere de que algo de bem distinto se passa no trabalho desta ou doutras pessoas que desenvolvem o mesmo tipo de trabalho-escrita. Não consigo definir romance, mas o senso comum aponta para a presença de elementos como: enredo, personagens, acção, princípio-meio-fim, mínimo de lógica, sentido, mensagem, e coisas que tais. Mas aqui já se poderia notar: definir romance, ou definir literatura, ainda que apenas por alusão a tópicos mais ou menos sobrepostos com a desculpa de ser senso comum, é: matá-los. Mas nunca definir é matar a definição, ou seja, somos presos por ter cão e presos por não ter. Nem tudo é mau na definição: a definição delimita. Delimitar é reflectir sobre os contornos das coisas (de+ablativo, no latim, acerca de, acerca dos limites). Mas definir é também limitar, ou seja, impedir que uma coisa seja, para além de ser o que é, outra coisa. E nós não queremos que nos impeçam de ser outras coisas, pois não? Digamos que a definição tem (ou pode ter) intuitos pedagógicos. Servir para sentar é da definição de cadeira (o significado é dado pelo uso, e a cadeira é portanto o que se “define” como sendo aquilo que o uso que dela fazemos nos vai indicando o que ela possa ser enquanto algo que se usa hoje de uma maneira, amanhã de outra, etc.), mas para que serve o romance? Ora, serve para perceber. Serve para comunicar. E éramos obrigados a perguntar: mas o que é perceber? E o que é comunicar? Percebe-se que isto não tem fim, porque nada tem um significado absoluto que não seja ao mesmo tempo individual (e o que é absoluto? É aquilo que não pode ser de outra maneira. Quando? Hoje? Mas sabes como é que pode ser daqui a um mês? E o absoluto individual não pode ser falso para a parte do universo que não somos – pimenta no cu dos outros no nosso é refresco -?).
Voltando ao princípio, a escrita de Llansol não se percebe da mesma maneira que a escrita de Agustina. Porque a escrita de Llansol não tem personagens, tem figuras. Porque a escrita de Llansol não tem clímax, fim, desenlace, tem cenas-fulgor. Porque não serve para descrever realidade, serve para…é como ela diz (e não diz):

“Antes de mais uma forma de escrita, uma espécie de literatura não ficcional. No seu universo de escrita habitual – o texto clássico do romance -, aceita-se como normal que a acção dê consistência ao que existe. O personagem existe porque faz coisas. Aceita-se igualmente que dê sentido ao que está feito. Já se é um pouco reticente quanto à imaginação. Crê-se que não tem vitalidade suficiente para determinar um modo de existência.[…] O meu texto não é compulsivo. Quem o escreve não projecta uma acção, nem oferece identificação. “Quem” emerge dessa fonte de ser que referi, ou seja, a figura, cuida constantemente de si, enquanto ser inadiável, mas sem qualquer violência, numa gravidade sem limites. […] No universo da acção romanesca, só nascem os personagens armados de violência de ser. No universo da escrita, as figuras “mostram-se” e pedem que sejam recebidas – são hóspedes, hóspedes de rara presença, formas de companhia. Não há nisto ficção alguma.”

(“Onde vais, drama-poesia”, Relógio d’água, 2000)

Afirmações do tipo “isto é um romance” ou “isto não é um romance” têm que ser entendidas na função concreta de que são incumbidas. No caso dos críticos em causa revelam mais ou só, parece-me, uma vontade de distinguir um autor do que de encerrar um género literário na sua esquadria canónica.

Rui

5 Comments:

At 9:44 da tarde, Blogger R. said...

Este post é uma taça de cerejas. :)

 
At 2:04 da tarde, Blogger marta (doavesso) said...

gostei muito deste post.

 
At 5:09 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Antes de tudo, bom post.
No fundo Llansol e Eduardo Pitta estão de acordo, onde Pita diz que os textos de Llansol não são romance, Lansol diz que o seu romance abandonou a ficção, e também ela distingue e separa o seu tipo de romance do clássico romance de acção, isto é, ficcional. Logo o que para Llansol é romance de acção é para Eduardo Pitta o romance to court. Isto não quer dizer que ambos vivam em sintonia, mas estando em campos opostos, têm ambos os mesmos preconceitos. Pitta se calhar por questões mais intimas, pessoais, biográficas, do gueto sexual (espero que se perceba que aqui veio ao de cima a minha veia humorística), caiu na tentação de reproduzir o recalcado no campo literário e neste caso no romance, levando a cabo uma espécie de demarcação do que é e não é romance e naturalmente excluindo os falsos romancistas do país do romance, lançando-os para o gueto ou para uma terra de ninguém, o que até é bom. Muito da boa literatura vive nessa terra de ninguém. Llansol pelos típicos preconceitos de quem julga a literatura e o seu tipo de trabalho literário uma espécie de epifania, e de acesso privilegiado ao ser, ao segredo; envolvendo a escrita, o texto, numa espécie de celebração litúrgica, e nesse sentido colocando o seu tipo de trabalho textual muito acima do miserável romance de acção, vil e profano. Não percebe que também o pensamento vive da acção, de um enredo conceptual, que também ele se movimenta para um desenlace, e o que são as figuras senão espectros, duplos de duplos. Que o difícil num romance menos ficcional não é misturar-se com um certo gaguejar filosófico, que quase sempre dá maus resultados, mas destruir, esmagar as ideias, a esfera conceptual na vida própria do corpo ficcional, que a filosofia seja destruída e desapareça na máquina literária (não importa se poesia se romance, e por aí fora), e nem Llansol escapa ao ficcional. Não foi por acaso que Deleuze acabou por se referir a personagens conceptuais. Dar cabo da ficção é eleger a verdade, como se houvesse verdade, como se a verdade não fosse a maior, a mais brutal mentira. E só assim os textos de Llansol podem ser inseridos no âmbito da literatura, senão seriam textos de outra índole, como a religiosa, textos sagrados.

 
At 11:00 da tarde, Anonymous Anónimo said...

r.: gosto disso, gosto.

marta: inté (como diz o anfitrião).

j.urbano: o teu comentário, muito certo, sugeriu-me outro mini-post (agradecido).

Rui Costa

 
At 9:44 da tarde, Anonymous Anónimo said...

As questões do romance ou da literatura prendem-se à própria vida. São conceitos que não poderão definir o autor. O romance não existe - o seu surgimento parte do leitor, é este que o constrói, que o desmonta. As questão das denominações não devem preocupar o autor, deve ser o leitor a encontrá-las. As questões da literatura não devem ser conceptualizadas (penso); arrumar um ou outro autor numa determinada galeria limitá-lo a uma determinada esfera, num estudo (crítico) demasiado pernicioso (penso, e isto é muito subjectivo).

Rui Pedro G.

 

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