23.8.07

BOEMINHA EM TEMPOS DE CÓLERA

Lisboa ainda existe, o difícil é encontrá-la. Parto daqui já tarde, com duas intenções na carteira: ver amigo com quem devo acabar as bainhas de projecto atrasado, dar uma volta pelas livrarias. Termino numa esplanada ventosa, mas com uma irrepreensível vista para o Castelo de São Jorge, a comer um bife mal passado, acompanhado de um tinto argentino com o qual danço o tango, em goles lentos, sem grande dificuldade. A conversa é boa e animada, apesar da agitação nas ruas. Não foi fácil encontrar um lugar mais sossegado, tantos são os turistas que, por esta época, se vêem à luz alfacinha. Durante a deambulação observo um, têmpera nórdica, a urinar no beco de uma obra. A mulher olha-o e ri-se muito. Ele, terminado o serviço, responde-lhe com gargalhadas estridentes. Mijar na rua, em plena cidade, para aquele nórdico, deve ser a aventura de uma vida. Chegam a Portugal e transformam-se em portugueses com uma facilidade dos diabos, o que, no caso, até não é difícil de justificar dada a inexistência de casas de banho públicas onde um homem possa mudar a água aos tremoços. Ainda pela noite dentro, tento visitar lugar de boa memória. Fechado. Atravesso a rua de um Bairro Alto repleto de velhas mercearias e antigas leitarias transformadas em lojas que devem ser o último grito da moda. Não percebo porquê. Muita cor, muita droga nas ruas, sobretudo coca, e pouca vontade de ficar. A sugestão do meu amigo é o Maxime, onde nos aguardam velhos fados na pronúncia castiça de taxistas, reformados, sonhadores, estrelas eternamente adiadas. Compreendo aquela pronúncia dos «viestes» e dos «vistes», do «sentíri» e do «amári», regalo-me com alguns fados bem balanceados, o estilo antiquado da clientela, o ambiente decadente, como as estrelas, de algumas personagens. Fico até com um fado na memória, sobre uma guitarra velhinha que já ninguém quer. Tal guitarra, tal fado. Felicito o intérprete pela interpretação e pergunto-lhe sobre o autor da letra, ao que me responde, após várias hesitações e muitas dúvidas, com um nome que nada me diz: Carlos Conde. Até consigo apaixonar-me por uma fadista, na casa dos cinquentas, que canta como quem apregoa peixe na lota. Só não consigo encaixar a imperial a €2,50 e a conta que se anuncia no parque.

2 Comments:

At 1:51 da manhã, Anonymous Anónimo said...

O Carlos Conde é um dos grandes letristas/poetas do fado. Deve ter escrito umas boas centenas e era uma personagem invulgar.
Um dia falaremos sobre isto, de preferência com umas cervejolas de permeio...

P.S. Recebi a tua sms mas só a li já de manhã. Foi pena. Gostava de ter estado lá.

 
At 7:58 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Desde que não sejam a 2,50 a unidade.

 

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