11.9.07

QUANDO AS TORRES CAÍRAM

Da nossa janela víamos as torres
com as suas faixas e blocos de luz
brilhando contra o pôr do sol esbatido,
víamo-las reluzindo a qualquer hora e vivas
como se os espíritos dentro delas ficassem toda a noite
calculando lucros e perdas, víamo-las alcançar
o topo ao primeiro amarelo
do sol nascente, habituámo-nos tanto a elas
que muitas vezes não as víamos, e agora,
não os vendo, nós vemo-las.


O banqueiro está a falar para Londres.
Humberto entrega sanduíches de pequeno-almoço.
O comerciante já trabalha ao telefone.
O carteiro começou a separar o correio.
...povres et riches
Sages et folz, prestres et laiz
Nobles, villains, larges et chiches
Petiz et grans et beaulx et laiz…

O avião rugiu com vileza na Quinta Avenida,
elevado ao Arco, alguém disse, agitando os “dog walkers”
no Washington Square Park, voltou-se para a Torre Norte,
embateu surdamente, libertou um enorme jorro brilhante
de fogo sombrio, e desapareceu, deixando um buraco
do tamanho e da forma que um avião de brincar faria
se tivesse passado inofensivamente e voasse agora,
do lado oposto, de regresso ao reino da imaginação.


Alguns de roupa rasgada, alguns exangues,
alguns coxeando como crianças numa “three-legged race”,
alguns quase arrastando-se,
alguns incólumes em asseados vestidos e fatos,
caminhando silenciosamente pelas avenidas,
todos empoeirados de uma brancura fantasmagórica,
excepto os olhos, vermelhos de coçados como os de uma vidente,
que consegue ver os mortos debaixo da terra.

Alguns morreram a telefonar para casa dizendo que estavam bem.
Alguns morreram após uma hora a aprender que iam morrer.
Alguns morreram tão abruptamente que só deram pela morte já dentro dela.
Alguns partiram janelas e inclinaram-se para fora e esperaram por socorro.
Alguns asfixiaram.
Alguns arderam, com as faces capturadas pelo fogo.
Alguns caíram, deixando a gravidade apressá-los na agonia.
Alguns saltaram de mãos dadas, a elasticidade nos seus derradeiros gestos de amor fez com que o tempo deixasse – quem me dera poder dizê-lo – as suas quedas verticais debaixo do céu acontecerem mais levemente.


Na janela alta, onde amiúde parava
para escapar a um pesadelo, encontro
o único, olho vigilante
que ilumina toda a noite os levantamentos
e a joeira de corpos, de restos de corpos,
qualquer coisa que não seja nada,
numa busca sempre em andamento
algures, agora em Nova Iorque e em Cabul.


Numa esquina ela segura um retrato -
de um homem sorrindo. Poucos caminham
no ar cinzento de hoje. Desculpa desculpa desculpa.
Estremece. Imaginemos aquele ressalto imprudente pela rua abaixo…
Ou que acolá aquele cabelo negro é purpúreo…
And yet, suppose some evening I forgot
The fare and transfer, yet got by that way
Without recall, - lost yet poised in traffic.
Then I might find your eyes…
Podia acontecer. Desculpa desculpa boa sorte obrigado.
Deste lado é “amnésia” – esqueceu-se do caminho para casa -;
do outro, “invisibilidade” – nunca completamente regressado.
Custa ver tão claramente na bruma metálica,
ou através da suposta lâmina da realidade
atirada sobre o nosso mundo, que no limite nenhuma criatura nascida
pode extinguir o seu regresso, e nenhum amor pode ser despedaçado.


As torres ardem e caem, ardem e caem –
num alvo remoto, como chaminés vomitando oleosos restos de terra.
Schwarze Milch der Früe wir trinken sie abends
wir trinken sie mittags und morgens wir trinken sie nachts
wir trinken und trinken
Não é tanto uma comparação como um corolário,
não uma semelhança mas uma linhagem comum
na história de mortes violentas durante o século XX -
pretos no Sul castrados e enforcados nas árvores,
soldados avançando sobre a lama a 90,000 mortos por milha,
comboio após comboio em direcção a leste com os vagões abarrotados de Judeus e de Ciganos para serem escravizados e gaseados,
testemunhando o assassínio de vinte, trinta, quarenta milhões dos seus,
explosões atómicas limpando cidades à face da terra, o mesmo com bombas incendiárias,
a morte marcha, mortos de fome, assassinatos, desaparecimentos,
países inteiros transformados em cascalho, campos de minas, sepulturas em massa.
Vendo as torres vomitar estes presságios, que o último século foi aqui despejado, para que nós o destruamos, sabemos
que são os nossos futuros, que é o nosso próprio leite negro atravessando o céu: wir
schaufeln ein Grab in den Lüften da liegt man nicht eng

Explosões de combustível, alumínio incinerado, aço a fumegar, mármore volatilizado, granito rebentado, paredes falsas pulverizadas, plástico fundido, betão esmagado, mercúrio gasificado, cinzas, vapor
vaporizado – adornam as ruas da nossa ilha arregimentadas em números e letras,
aspirados das grandes pontes de Brooklyn ao mar que está à espera:
austero, doloroso, pestilento, empireumático,
ar demasiado sujo para ser respirado, mas nós respiramo-lo,
demasiado terrível de respirar para quem procura
os seus entes queridos, mas eles respiraram-no e nós respiramo-lo.

Traz a fotografia da mulher pendurada
ao pescoço. Não levanta o olhar.
Pára no passeio que tem as lajes
colocadas no século de Whitman, valetas há muito
limadas pelo ferro das rodas numa dissipada harmonia:
memórias conscientes invejando as pedras.
Nie staja sie, sa,
Nic nad to, myslalem,
zbrzydziwszy sobie
wszystko co staje sie.

E eu sentei-me junto às águas do Hudson,
ao pé do North Cove Yacht Harbor, e pensei
no que terão sofrido os que estavam nos andares mais altos: sabendo
que arderiam vivos, e então, ardendo vivos.
Poderá haver na morte um mecanismo
tão mutilador da existência, que ninguém,
nem mesmo os mortos, alguma vez dominará?
E depois observei atrás de mim, em letras de ferro soldadas
nos marcos do correio, palavras de Walt Whitman
escritas quando a América mergulhou em guerra consigo mesma:
City of the world!...
Proud and passiontade city – mettlesome, mad, extravagant city!
Palavras de um tempo de ilusões. E depois lembrei-me
de mais palavras suas após a guerra e a morte de Lincoln:
I saw the debris and debris of all the slain soldiers of the war,
But I saw they were not as was thought,
They themselves were fully at rest – they suffer’d not,
The living remain’d and suffer’d, the mother suffer’d,
And the wife and the child and the musing comrade suffer’d

Nas nossas mentes os blocos de vidro
cedem repetidamente sobre si próprios,
pousam ruidosamente, andar a andar, sobre si próprios.
Florescem do avesso, explodem
para baixo e para fora, ondeando
pelas ruas, engolindo a fuga.

Enquanto cai cada torre concentra
em si própria, como que transformando-se
muito lentamente num buraco negro

infinitesimamente pequeno: massa
sem espaço, onde cada luz,
cada vida, apagada, descansa dentro de nós.

Versão possível de HMBF.

Galway Kinnell

Galway Kinnell nasceu em 1927 em Providence, Rhode island. Estudou na Universidade de Rochester, vindo a exercer a docência em várias universidades e colégios. Estreou-se na poesia em 1960, com What a Kingdom It Was. Activista contra a Guerra do Vietname, foi também membro do Congresso pela Igualdade Racial. Publicou várias traduções. Viveu em França, no Irão, em Espanha e na Austrália. É professor na Universidade de Nova Iorque. Esta tradução, inglória mas bem intencionada, teve por base a versão do poema incluída, por Lorrie Goldensohn, numa antologia intitulada American War Poetry (Columbia University, 2006). É provável que uma confrontação com o original denuncie a inaptidão do tradutor, cujo objectivo foi apenas o de captar o tom geral do poema.