24.10.07

MONÓLOGO DO POETA EDITOR


- Nunca saberei por que fui meter-me nesta alhada,
neste quase ofício quase nem
- pois nem escolas o ensinam nem títulos o amparam –
em que um poeta jamais se faz rico ou prospera.

Nunca saberei por que bulas o destino
me tocou de ser parteiro:
tantos filhos alheios
que eu gostava de ter visto belos e espertos
e às vezes eram parvos, e às vezes eram feios.

Tocou-me descobrir, contratar, corrigir,
prefaciar, escrever badanas, resumir, recensear,
informar, apresentar, difundir, colocar,
e também financiar,
e às vezes acertar e às vezes perder o pé,
desfrutar e sofrer,
e o meu ordenado foi curto e o meu trabalho longo,
e se bem ganhasse amigos,
centupliquei também meus inimigos.

Milhares de incompreendidos génios apontaram
o meu erro por não os editar
ou a minha avessa intenção
por não os amparar com os meus grandes braços
- soubessem eles como são pequenos! –

De originais de gaveta, limpos às vezes, outras
de mazelas cheios,
fiz milhares de clónicos brinquedos atraentes,
tentadores, bonitos, sugestivos
livros para pôr no mundo em busca de uns olhos
compreensivos, leitores.
Os sonhos solitários saíram à rua
e encontraram amigos:
fui eu que lhes juntei as mãos.

Li, voltei a ler e dei a ler
centenas de milhar de tatuadas folhas
e tocou-me intuir quais poderiam
ou teriam que gostar à demais gente,
quais, talvez merecedoras, não o conseguiram,
e quais nem deviam pensar nisso.

Publiquei tantos espertos que o povo soberano
disse o caraças
- carne de saldo, oferta do Sotheby’s -,
mas também outros que, merecendo vivas,
foram dinamitados, silenciados, apagados
ergo feitos em cisco
por quem diante de imbecis baixou as calças
e quanto defecou o mouro o deu por ouro.

Dei à luz grandes figuras – e também gente baixa.
Vendi a quatro pesetas
duros dos bons,
letras de ouro de lei ao desbarato.
Ofereci margaridas a damas e zagais
e pérolas aos porcos,
e se às vezes por lebre servi gato
espero que a lembrança fique dos meus acertos,
esqueçam-me já os falhanços.

Desfrutei como ninguém lendo noite alta
inéditos ignotos
que realmente diziam outras coisas
ou as do costume, mas de diferente maneira,
e pensando que não tardaria
a serem um bem público estes secretos tesouros.

Burocratas obtusos ao mando de viciados
no vício inquebrantável
meteram o focinho nos meus originais
e uns foram riscados e outros foram zurzidos,
e mais de um argumento se viu matizado,
e mais de um Diogo suplantou algum digo.

Às obras dos demais, mais do que à minha,
dediquei tempo, empenho, sabedorias.
E tal como o velho cego preferia gabar-se
dos livros um dia lidos
do que dos frutos de suas mãos,
a mim também recordem-me
mais pelos que editei e não pelos que escrevi,
embora estes os tratasse com as minhas melhores artes
e a alguma pessoa agradaram.

Já sei que é lei da vida comerem-se os figos
sem perguntar quem plantou a figueira.
Não importa, este é o meu ofício, escolhi-o livremente
e, chatices à parte, eu com os livros gozo
pensando-os, fazendo-os, lendo-os depois,
enamorando-me
do que sonham as suas palavras.

E eu creio que, de facto, no princípio
havia a palavra
e que, muito depois, pacientes homens
de indefinido ofício inventaram maneira
de levá-la aos demais
para que agisse,
e eu fui um deles
e isso é tudo.


Tradução de Fernando Assis Pacheco.

Jesús Munárriz

Jesús Munárriz nasceu em San Sebastián em 1940. Poeta, tradutor, ensaísta e editor, reside em Madrid desde os 17 anos. Estudou arquitectura, mas licenciou-se em Filologia Germânica. Foi um dos fundadores da editorial Ciencia Nueva, co-director da colecção de poesia Saco roto da editorial Helios, director de publicações da editorial Siglo XXI e fundador e director das Ediciones Hiperión. Traduziu para espanhol, entre outros, Hölderlin, Rilke, Celan, Aragon, Wilde, Shakespeare, Cesário Verde e Pessoa. A sua obra poética começou a ser publicada em 1975, com Viajes y estancias. De aquel amor me quedan estos versos. (in Hífen 9)