26.1.08

UM POEMA DA ALMA SEGUIDO DE UM POEMA DO CORPO

(1)

UM PRATO DE PEIXE OUTRO DE CARNE


É de tarde e você comeu frugalmente. Sardinhas assadas
Do dia anterior. Para escorregar melhor, uma caneca
De “Castillo de Salobreña”, sem álcool, “base de mosto de uvas
De vino y manzana”. Lavou as mãos? Não lavou. Não tem
Problema – a higiene é como as manhãs de Junho (fica bem quando
Está e bem quando não
Está – uma frase
Que não é nem carne nem peixe). Mas dizia
Eu que é preciso juntar, pois é disso
Que se trata: um salmão fresquíssimo, dois
Ovos de avestruz, um cheirinho de louro e outro
De aguardente, um molho de hortelã e duas
Codornizes. Abra o peixe, frite a carne, urine
Entrementes um pouco de lado se acaso pensar
No tal poeta que também é médico: aproveite para
Se vingar dando um ou outro
Violentíssimo traque como vírgulas, no interior da panela
Da escrita. Considere, sorrindo, que a alimentação
Tende para o sujo, para o torpe, para o inefável
Se a sua voz é cheia como o Verão
Que findou há doze anos: esse verão de 94
Que nunca lhe sairá da memória.
Coza a carne, corte o peixe, polvilhe com pimenta
Deixe alourar tudo misturado. Grite. Grite mais. Ria desabaladamente.
Cague nas suas desilusões. Jure que vai desmaiar. Faça de conta que vê um rio
Que viu um rio
Que esteve em cidades quotidianas mas que o assustaram mortalmente.

Assim eu cozinhava. Assim eu vi –
Mas vi mesmo, vi convictamente
Papoilas na noitinha nascente ao pé de um muro derrubado –
E assim eu comia, tal como dobava linho
Aquela mulher velha da fotografia
Ou o outro entre móveis simples de pinho
Ou de castanho
Olhados, perdidos, olhados.

Hoje devoro torradas
Não muito a fundo. Debicando um pouco
Pois tremem as chamas das velas e quando se adormece

Respira-se como se não mais houvesse presságios nem minutos.


(2)

ANUNCIAÇÃO

As mulheres do vento parado como um planeta extinto
as mulheres doentes as mulheres que cantam com surpresa
o seu vestido estranho como uma renda como uma absurda mancha
as mulheres do meu dia como um peso de cores distintas

entre mim e o céu

Entram pela minha boca e censuram-me docemente

Aqui, diz uma, puseste o horror de um velho instante
ali, diz outra, não deixaste repousar os devaneios
Há uma que paira, como se me fitasse a direito, com as mãos
junto da testa, perto dos olhos, os lábios palpitando
estremecendo como uma pétala sobre a água
Mulheres de negro, afagando pastas de couro em lojas improváveis
escrevendo em papéis antigos fórmulas de gentileza
Mulheres que a diabetes assolou como praga medieval
mulheres de pernas como lírios rosados
andando ao longo duma estrada francesa
as árvores coloridas formando uma cortina imprecisa

Job de rosto erguido amargo senhor das angústias
a sua face trémula tão igual à do Senhor na noite de suor e remorsos
a sua mulher por detrás, arrepanhando as vestes

Dizei-me mulheres onde com que luz a vossa fotografia se encarquilhou
na madeira queimada das velhas casas onde medrava a guerra
Vós sois o sustento dos pontos cardeais

Lembro-me de ti, Marion, o rosto rodando como um guindaste
e o fumo que soltavas com um meneio elegante da mão esquerda
o fumo espalhado no parque abandonado
os olhos tranquilos frios
A rua solitariamente sob a noite de Junho
e o cão o velho cão dos bosques que trotava muito devagar

A vossa figura palpitante, mulheres, irisada obscura
à lux frouxa da manhã e o frio subindo até às portas como um animal a morrer.

Nicolau Saião

in “O armário de Midas”