18.2.08

CASA DE LOUCOS

Goya

Ainda não entrei na casa, até porque nunca cheguei a sair. Para entrar numa casa é preciso estar fora da casa. Pode alguém entrar numa casa nunca tendo saído de casa? Tudo aponta para que, dentro em breve, entre na casa. Dizem que é uma casa iluminada com tectos de vidro, dizem que lá dentro todos os homens andam nus e todas as mulheres os acompanham na nudez, dizem que ninguém sente vergonha por isso. Esta casa assemelha-se, neste ponto, ao paraíso. A casa dos loucos assemelha-se ao paraíso, no paraíso o homem e a mulher também andavam nus e não sentiam vergonha por isso. Neste momento encontro-me só, estou deveras parado na minha solidão. Fui abandonado dentro deste casulo, conheço todos os seus compartimentos, falta-me o ar de tanto os conhecer. Há anos que vejo sempre os mesmos compartimentos, amedrontam-me todas as noites, todos os dias, todas as horas, como destinos exactos embaraçados no fastio das horas. Lembro-me que havia um destino exacto à nascença: uma dívida saldada com a morte. E penso: nascer é sermos colocados nesta prisão, a vida uma luta, uma fuga ensaiada, uma permanente tentativa de fuga, o louco o fugitivo, o fugitivo que conseguiu escapar aos muros, às paredes, aos guardas da prisão e entrou na casa iluminada onde ninguém sente vergonha por andar nu. Mas depois penso também nos olhos desmaiados dos loucos, nos dentes cariados dos loucos, nos dedos queimados dos loucos, sinto as cabeças latejantes dos loucos dentro da minha cabeça, sinto essa dor como um silêncio isolado na barriga do ruído. Detenho-me nas palavras, preciso deter-me nas palavras. Que é isso de um silêncio isolado na barriga do ruído? Não sabem. Eu explico, eu explico todo o sentido das afirmações inexplicáveis, fui dotado desse dom de dar razão ao irracional. Eu explico. Um silêncio isolado na barriga do ruído é uma mancha de tinta numa tela desnudada, é um som único, um acorde fora de pauta, é uma variante parasita, é o Deus nos acuda da liberdade. Da janela inexistente deste lugar onde vivo fechado, avisto a dormência dos dias, os partos descobertos dos adolescentes desencaminhados, plantas resplandecentes, como insectos desfeitos contra as lanternas dos veículos, como uma chuva que tudo arrasa, destrói, arruína, destroça, um caminho imprudentemente desviado. Vejo estrelas cadentes, sombras vigorosas, mulheres que vociferam contra os maridos, os alicerces de toda uma cultura desmoronando-se aos pés das exigências domésticas, quotidianas, comuns. Porque é preciso pagar as contas, atrasar o relógio biológico, responder às horas do estômago, porque é fundamental matar a sede de estar vivo, ainda que às portas de uma casa cuja luz nos cega ou, porventura, nos ilumine irremediavelmente. Precisamos de uma luz sem remédios.

1 Comments:

At 11:25 da manhã, Blogger Em Bicos de Pés said...

Invejo-lhe esse dom.

 

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