21.2.08

PRECARIEDADE


A política no meio dos interesses da imaginação é o mesmo que um tiro a meio de um concerto. Um ruído dilacerante, sem ser enérgico. Não combina com o som de qualquer instrumento.
Stendhal

Não consigo sentir outra coisa senão piedade. Pobre Julien, nascido excepcional na rasa província, tão cheio de sonhos e ambições. Gorado hipócrita entre hipócritas, escravo de uma imaginação para lá do concebível, apaixonado cínico de pernas trémulas e pés resvaladiços. Pobre Julien, atropelado logo à partida pelo sangue que teve em sorte. E partiu lá da sua província para a cidade, cortejando o poder, armadilhado de cautelas e de prudência, mas ignorante da única fé dos poderosos: a humilhação. Estava escrito no destino de Julien, como escrito está no destino de todos os arrivistas, que o seu lugar, mesmo que não tivesse sido traído pelo coração, seria sempre o lugar dos desterrados. A vaidadezinha dos homens mal nascidos tem dentes frágeis, raramente chega para o orgulho altaneiro dos poderosos. Facilmente se torna ridícula, contraproducente, censurável, pois facilmente cede às intrigas e às urdiduras que matizam as relações entre ilustres. Mas não só entre ilustres. Mal de todos os homens é a mentira, a idiotice, a grosseria, a soberba, mal de todos os homens que invejem o lugar alheio, a posição, o estatuo que não lhes calhou na rifa. Que isto de conquistar estatutos é uma treta: mesmo chegando-se incólume ao zénite, será no zénite que todas as nódoas serão apontadas. Pobre Julien, receando a desconsideração dos que mais invejava ao mesmo tempo que lhes tinha ódio. Vivia o desgraçado nesta contradição, tornando-se o que mais odiava, também ele armadilhado de manhas, mas debilitado pelo remorso. Aparência, tudo é aparência neste mundo sombrio, a luz é aparente, a sombra é aparente, e tudo é ciúme, calúnia, inveja, a província, a urbe, tudo é ambição, mudam os modos, permanece a inépcia da virtude, tudo é esse lugar que se deixou na infância, esse lugar ingénuo, malandro mas ingénuo, inofensivo, tudo é esse lugar perdido, à medida que crescemos no sentido da «asfixia moral». Pobre Julien, tão precário. Como precário é hoje o trabalho da grande maioria, e precárias são as tarefas, os efeitos, as consequências, a função, como precário é hoje o resultado do trabalho, o serviço prestado e o pagamento, como precária é a prestação, a honra, a palavra, como precária é inclusive a paixão, e apenas precária não é a hipocrisia porque para essa há sempre um recibo verde a sorrir de gratidão. Julien, andamos a pagar o imposto das tuas tolices, da tua fuga, desse amor desprotegido que te traiu, andamos todos a pagar a honradez do teu gesto final. Tivesses tu sido um galgo do imperador e não o rafeiro das ruas encardidas, tivesses ti rasurado o amor da consciência ou a consciência do amor, tivesses tu gozado a aparência de uma sátira, a cortesia mistificada dos nobres, tivesses tu declarado apenas o orgulho enfadonho dos humildes, o carácter inabalável dos mortos, tivesses tu decidido voltar à terra prometida, não para amar mas para destruir, e seríamos todos apenas um suicídio desencorajado. Assim, resta-nos sermos uma morte absolvida e continuarmos a perpetrar os mesmos crimes, o mesmo desprezo por nós próprios e pelos demais, o mesmo infortúnio. De nada nos valerá que queiramos morrer, carregaremos para sempre essa vontade absolvida pela absoluta inoperância do desejo. Agir, agir… mas como, se a toda a hora sentimos o embaraço da acção?

4 Comments:

At 5:44 da tarde, Anonymous Anónimo said...

vai tudo melhorar, agora que o Fidel castro renunciou, a culpa era toda dele.

 
At 6:26 da tarde, Blogger Logros said...

Tem graça, que no célebre e extinto "Maio de 68", em Paris, proclamava-se:
"A IMAGINAÇÃO AO PODER!"

E quanto a tiros e ruídos dissonantes, incorporados subitamente em concertos, estou farta de os ouvir em recitais e CD(s) de Música Contemporânea.

Creio que mesmo o romântico Tchaickovsky tem ums tiros de canhão - reproduzidos pela percussão, na orquestração,numa peça, salvo erro, -aqui no Porto vieram mesmo canhões a sério, no Concerto comemorativo do 1.º de Maio de 1974 - chamada "Abertura 1820".
Lembro-me agora de uma sonata de Beethoven, em que um dos andamentos é dedicada "À morte de um herói", onde são reproduzidos no piano os tiros dum fuzilamento.
Isto para já não falar de tantos tiros, que comparecem no repertório operático.

A genialidade do autor de "O Vermelho e o Negro", está, nesta citação, ferida pelo tempo, pelo menos.

Boa tarde.
I.

 
At 11:51 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Não vai melhorar nada por o fidel ter renunciado.
A culpa não era toda dele, o fidel se culpas teve foi apenas de ter escravizado um povo que já tinha passado das boas sob o baptista e, com aquelas barbas de pseudo revolucionário estalinóide, vir em discursos de 7 horas tentar vender banha da cobra aos esquerdóides de boca aberta e olhos em alvo.
Não tinha culpa nenhuma de nada, era apenas um canalha hipócrita misturado com um chefe de guardas de calabouço.

che guebara

 
At 11:36 da manhã, Anonymous Anónimo said...

ESPERANZA

 

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