31.3.08

A VER:

Esta série de vídeos disponibilizados no frenesi. No primeiro, Vítor Silva Tavares dá conta de um fenómeno incrível: os números de devolução da revista &etc. excederam os números da tiragem. Recorde absoluto: a revista conseguiu ter um saldo negativo, não só não vendeu um único exemplar como os exemplares devolvidos foram muito mais do que os exemplares distribuídos.

ILUSÃO DE ÓPTICA

É impressão minha ou o Hugo Chávez (versão dietética e neoblanc) está no Prós & Contras? Adenda: Afinal é o João Sebastião:

A RESISTÊNCIA DOS MATERIAIS

[Fnac]


Rui Costa

LABIRINTO #15


MJLF, Tec-Tec, Técnica mista s/ papel, 42x30cm, projecto realizado para suposse that 2008.


Maria João

Nancy Vieira - Peca Sem Dor




*Selecção de Jorge Aguiar Oliveira

INÉDITOS DE JORGE AGUIAR OLIVEIRA #28c

UM RESTO A CONTA-GOTAS

(CONTINUAÇÃO)



são quatro e quarto e o fumo do cigarro
fugindo pela janela

até ele foge de mim como aquela
ranhosa da frente de bandeira
nacional à varanda que não alugou
o anexo ao caboverdiano por ser preto

preto é o gato do ourives que é mais
bem tratado que muitos imigrantes
neste quintal a ficar cada vez mais
de castanholas e sevilhanas

a rata da mulher da frente se a tem
é branca como a pele da sua maldade
que é um diamante eterno

bocejei à passagem das quatro e meia
levanto-me da febre da flor de lótus
e vou urinar às portas de Berlim
vejo traineiras e arrastões
da nossa frota pesqueira perdida
vendida a esta Europa traficante

puxo o autoclismo e fecho os olhos
para não ver o mar
sem peixe algum algum dia

uma tempestade se ergue
das funduras da minha cabeça
tudo por que me bati na vida se afunda
nestes dias sem amor e sem chão

que o tempo barra
os destroços da minha história
e desta terra que foi um país
e eu um agasalho para o teu coração

são quase quatro e cinquenta e não paro
de contar as passadas do tempo a fugir
e há um resto duma sombra mutilada
a voar na outra margem

é demoníaca esta espera
pelos primeiros raios da aurora

é um tempo perdido
como perdido é o tempo da espera
pela morte a tocar saxofone à porta
dos quartos emprestados onde durmo
sem morada e sem o beijo dos deuses

nunca mais voltarei a casa

perdi-a quando os corvos te levaram
e porque nunca mais te verei
nunca mais terei casa
a casa

nem junto daquela lua onde nasceu
um lírio no céu nessa noite
em que se evaporou a janela
do abrigo em meu peito

quando ontem procurei a linha do horizonte
e a encontrei morta percebi já estar
a caminho do abismo do invisível

crio barulhos à minha volta
para não ouvir as gargalhadas da solidão
paro

e volto à janela com o corpo
duma esferográfica e olho através dela
o Cristo-rei ao longe aponto acerto
a mira do desejo e disparo a bazuca
com o olhar demolidor

agora já não mora lá
o causador de vómitos para outros

antes de mim e para mim

bateram as cinco e entre as mãos
amparo o meu coração tombado
na guerra dum dia mal afortunado

outro cigarro e recordo
as escamas caídas nos campos
de batalha dos abraços dos falsos

vou à janela tirar a roupa da roldana
e não há roldana nem roupas

somente uma nuvem enamorada
pelo grito do abutre a naufragar
no fumo do meu cigarro


(CONTINUA)


Jorge Aguiar Oliveira

29.3.08

VEJAM BEM:

Via Adufe, via A Origem das Espécies: «Numa das reuniões do conselho executivo, a professora Adozinda Cruz confirmou que autorizou os alunos a manterem os telemóveis ligados, permitindo-lhes que ouvissem música. Patrícia terá extravasado a ordem atendendo uma chamada da mãe.» Mais conversa para quê? Promovam a professora e expulsem a aluna.

O caso do holandês rastejante

In A Terceira Noite.

Rui Bebiano é uma das vozes da blogolândia lusa que mais gosto de ler. O post para o qual chamo a vossa atenção é sobre Fitna, um vídeo ranhoso que um deputado holandês achou por bem fazer. O tema do vídeo ranhoso é o Islão, ou, melhor dizendo, esse lado obscuro do Islão que tem alimentado fundamentalistas de toda a espécie com consequências nefastas de todos conhecidas. Não discutirei o vídeo, apenas me parece um elemento de propaganda tão fanático, parcial, arrogante e preconceituoso quanto o discurso dos crentes de Alá ali representados. A minha tese nestas matérias é voluntariamente simplista. Sendo ateu, julgo que o mal não está nesta ou naquela religião mas nas religiões em si. Não julgo que o mal esteja nos homens, mas sim na forma como se pretendem organizar e reunir reduzindo-se, enquanto indivíduos, a criaturas de um ser improvável: Deus. Como também não quero parecer fanático, concedo que Deus, existindo, seja muito bonzinho e pacificador, inspirador de almas puras, angélicas, santas, amigas do seu amigo. Deus, a existir, há-de sentir nojo desses fanáticos que se julgam seus representantes, sempre uma minoria com enorme influência sobre largas franjas da população. Não há propriamente uma solução para estes problemas. Teríamos que deixar de ser humanos, teríamos que deixar de ser sensíveis, teríamos que deixar de ter medo, emoções, como naquele filme algo ridículo com a Nicole Kidman, não sei se viram, o The Invasion. Só deixando de ser humanos, deixaríamos de conferir a Deus a ordem das nossas vidas, o pulso do nosso destino, pois Deus e as religiões, enquanto modos de estruturar a fé nesse desconhecido, é intrinsecamente humano. Isto tudo para dizer que, quanto a mim, o mal está na forma como os seres humanos prescindem de si próprios em nome de uma crença, em nome de uma missão fundamentada em crenças deveras improváveis, em nome de modos de vida que se pretendem impor a outros modos de vida. Há pessoas que preferem acreditar no paraíso a acreditarem que estão vivas. Que podemos nós fazer contra isso? Nada. O melhor é mesmo deixá-las acreditar no paraíso, seja ele composto por vastas praias luzidias, um silêncio pacificador ou muitas virgens malucas à disposição dos desejos de cada um. O que não podemos deixar, e isso já é uma questão de indivíduo para individuo, pelo que o melhor seria dizer o que não posso deixar, esperando que outros, como eu, digam o mesmo, é que alguém me imponha a sua fé, a sua perspectiva sobre o mundo, as suas crenças e os seus deuses como sendo os únicos possíveis, legítimos, aceitáveis. Às vezes também me passa pela cabeça que o melhor seria dar cabo da vida de todos os fanáticos, sejam eles islamistas, católicos, judeus, comunistas, etc. Dava-se cabo dessa gente toda e o mundo seria muito melhor. Mas este pensamento é uma contradição em si mesmo, pois ele faz de mim um fanático anti-fanáticos. Este pensamento decreta a minha sentença de morte. Faz de mim um outro que não eu, faz de mim um estranho em mim, como no filme de Neil Jordan, The Brave One, com a Jodie Foster. Não tem qualquer sentido, justificação, lógica, coerência ser contra fanatismos denotando um estúpido fanatismo. Venham então as minis, os beedies e sejamos todos muito felizes nas graças da mãe natureza. Foi ela que nos fez, há-de ser ela a levar-nos. Todo este palavreio inconsequente não pretende comentar o post de Rui Bebiano para o qual chamo a vossa atenção, pretende apenas introduzi-lo. Deixo, no entanto, um excerto com negritos meticulosamente seleccionados por mim. Espero que Rui Bebiano não me leve a mal a ousadia, ela tem na sua origem uma boa intenção: fazer-nos pensar como, por vezes, nós próprios, sem querermos e nem sequer nos apercebermos, enfermamos dos defeitos que detestamos nos outros. Corrijo: o problema não é necessariamente nosso, mas da forma como articulamos as palavras quando falamos de assuntos tão dificilmente abordáveis. Ora vejam:

Mergulhados há séculos na insciência, na miséria e na submissão - que Enzensberger considera ter sido agravada quando da recusa da revolução cultural determinada, na Europa, pela invenção da tipografia -, afastados de um debate aberto sobre o mundo contemporâneo, a sua diversidade e as suas oportunidades, dependentes de tecnologias que são forçados a comprar, eles têm sido presa fácil dos tiranos e dos exaltados, para os quais a missão apenas estará concluída quando a sua concepção paranóica e medieval do mundo vingar sobre o planeta.
É certo que o radicalismo islâmico não pode ser identificado com o Islão no seu todo, e que é dirigido por minorias que apenas se representam a si mesmas. Mas é já um fenómeno de massas, e em crescimento - basta olhar para a dimensão das manifestações de rua que assumem as suas palavras de ordem - em relação ao qual é preciso definir uma intervenção que não deve apoiar-se na errada noção de que os seus responsáveis são uma ínfima minoria e que existe uma opinião moderada que acabará por isolá-los. Uma intervenção que passa pela defesa intransigente dos valores de tolerância, liberdade e laicidade que o mundo de matriz iluminista – hoje crescentemente miscigenada com diferentes influências, é certo e é bom – deve preservar e partilhar, no diálogo com o outro, enquanto conquistas que lhe permitiram um dia começar a superar o estado de barbárie.

Impõem-se, então, algumas dúvidas: os responsáveis pelo radicalismo islâmico são ou não minorias? Como é que se pode dialogar com o outro defendendo intransigentemente uma das perspectivas em diálogo? Esses que há séculos estão mergulhados na insciência têm sido presa fácil de quem: dos tiranos que se impõem ou foram impostos entre eles, dos tiranos do lado de cá, dos oportunistas que, nada fazendo contra “a insciência dos outros”, aproveitam-se dela em benefício próprio? E, já agora, olhemos um pouco para nós próprios. Que exemplo temos nós a dar a esses que, afastados de um diálogo aberto sobre o mundo, há muito nos vêem a dialogar sobre esse mesmo mundo de um modo fechado, ou seja, intransigente?

Brian Eno - By This River*


* Selecção de Jorge Aguiar Oliveira

Um poema* de Eugénio de Andrade e uma foto de Andrea Modica



Shelley sem anjos e sem pureza



Shelley sem anjos e sem pureza,
aqui estou à tua espera nesta praça,
onde não há pombos mansos mas tristeza
e uma fonte por onde a água já não passa.

Das árvores não te falo pois estão nuas;
das casas não vale a pena porque estão
gastas pelo relógio e pelas luas
e pelos olhos de quem espera em vão.

De mim podia falar-te, mas não sei
que dizer-te desta história de maneira
que te pareça natural a minha voz.

Só sei que passo aqui a tarde inteira
tecendo estes versos e a noite
que te há-de trazer e nos há-de de deixar sós.



*Selecção de Jorge Aguiar Oliveira

28.3.08

INÉDITOS DE JORGE AGUIAR OLIVEIRA #28b

UM RESTO A CONTA-GOTAS

(CONTINUAÇÃO)


por uns segundos passei pelas brasas
engomando sonhos teus e acordei
com os cabelos mergulhados na cinza
das beatas no cinzeiro charco
onde bóiam paus de fósforos e

o sumário da minha vida
é a morte

como desejo não acordar mais
neste aglomerado de dias sem cura

é-me igual ao litro que venha a doença
da esperança de máscara ferida
se morrem os meus braços sem os teus

recito uma lágrima dum sonho
e sigo pelas ruas da cidade
de passos com destino padrasto
e tudo e todos parecem estar em saldo

aos pés da espuma feita colchão danço
agora o tango sozinho
e esta graciosidade como a vida
não é rota para viagem sem par

tropeço em restos de papelões
escondendo nos passeios da cidade corpos
apodrecendo abandonados pelo destino
e pelos miseráveis governantes
indiferentes à espinha de fome
e aos ossos do desespero de seres
que mesmo nunca tendo lido
a morte a crédito de Céline
são homens e mulheres alguns
nunca se conheceram crianças
no espelho desabrigado de beleza

sem Spartacus nem sopa os pobres
já nem cabeça têm para se revoltarem
ou cuspirem o bolor
que o tutano da sua vida ganha

sem terra sem rua sem mesmo um nada
não podem mijar no urinol do Duchamp
porque só conhecem a sombra
da árvore no taipal da obra e
o biombo automóvel onde

ao redor ratazanas reconhecem
o cheiro do desamparo a arder
e em breve mais um corpo caído no ruído
do alcatrão urbano prato forte
por ninguém terem nem despedidas
para o recordar algum tempo mais

a revolta gaga dos sem trabalho
e sem versos enferrujando
na perpétua armadilha
de saberem e terem a vida a crédito
para tal basta possuírem o impossível

um minuto para pagar um dia

um raio de sol bailando num rosto
uma palavra com raiz criando pontes
entre o cérebro e o coração
e à mão um pão e um corpo

numa ruela da Cova da Moura
as balas arrumam fardas nos guarda-fatos
ao som de mornas cheirosas a torresmos

um machado racha-me a cabeça ao meio
e a minha língua saltita na mesa
lambendo os pingos de sangue e a cinza
dos meus cigarros que lembram corpos
caídos ao longe num resto de rua no Iraque
depois de um carro armadilhado ter explodido
junto a uma paragem de autocarro
onde já ninguém se lembra da imagem

um vaso com flores à porta de casa

e vão pelos ares comboios alianças e livros
de cheques salpicados com o sangue
dos pedaços de carne voando
no espaço aéreo das pombas
num estilo Furia dell Baus

são os primeiros sinais do espectáculo
de novo trazido à cena
em nova encenação islâmica

o resto da minha vida anda
numa bola de sabão perdida numa galáxia
numa bala à deriva no Cazaquistão
num fio da corda dum enforcado no Irão
na lâmina mortal dum motim
numa cadeia em São Paulo e em letras
de canções que sei de cor

e se deus me quiser castigar
então vai ter que penar
para o inferno não se pode mandar
o que já lá está


o máximo que desejo esta noite
é não me lembrar de ti
duma mesa posta sem comida
ou do relógio com os ponteiros parados
por não haver dinheiro para comprar pilhas
mas é impossível meu amor

quando chegaste com a cicatriz do sonho
e a alma remendada além dos corantes
e conservantes para o tingimento
das roupas dos ricos cuspiste
não me toques puta europa

o outro teu colega têxtil enlouqueceu
ao aproximar a vela acesa da menina
da direita queimou as pestanas
e o olho explodiu no desemprego

e hoje ser agricultor estilo portuga
é desfilar de enxada às costas
num supermercado e comprar o agrião
e o nabo embalado
enquanto outros rufam tambores
para preservar o lince e a urtiga
e nenhum barulho para preservar
a ideia de que nada se pode preservar
eternamente



(CONTINUA)


Jorge Aguiar Oliveira

AS NOSSAS ESCOLAS



A violência que prolifera pelas nossas escolas, tornando-as autênticos ringues onde professores medem força com perigosos adolescentes, tem feito as delícias de alguma imprensa, nomeadamente aquela mais sequiosa de casos, polémicas, sensacionalismos. Lembram-se de Bowling for Columbine? De um certo modo cínico, está lá tudo com alguns anos de antecipação. Já sei: o realizador não é de fiar. Não lhe demos ouvidos, nem olhos, nem atenção. Pura e simplesmente não é de fiar. Mas há algumas questões levantadas por Michael Moore que nós também devemos colocar. Por exemplo: de onde vem tanto medo repentino? Subitamente, acordámos para este problema. Será este problema hoje mais grave do que era há 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10 anos? Duvido. A questão que se coloca hoje é a mesma de sempre: a tremenda hipocrisia do "sistema" ao lidar com os problemas da educação. Vejam bem o ridículo: não tivesse um grupo de adolescentes burgessos filmado uma aluna histérica aos encontrões com uma professora out of control, e nada teria acontecido. A professora não teria apresentado queixa, aquilo ficava por ali, siga para bingo, amanhã é outro dia. Tendo a peleja sido gravada, tudo muda de figura. Temos caso. Perante o filme, os nossos olhos configuram a realidade de um modo radicalmente diverso. Assistir àquele filme é um horror, assistir àquele filme repetidamente é uma tortura. Quem gosta de ser torturado? Ninguém. Avancemos então contra os protagonistas. Façam-se mais leis, estenda-se o leque de proibições tão em voga ultimamente, instaurem-se uniformes obrigatórios nas escolas, se preciso for fechem as portas das escolas, esses antros de vício e de maldade, regressemos à época da reguada, das orelhas de burro e dos castigos máximos, exemplares, militares. E já agora, enquanto adultos normais, saudáveis, controlados, devidamente integrados, socialmente aceitáveis, comecemos por dar o exemplo:

27.3.08

Björk, "Who Is It" *

* Selecção de Jorge Aguiar Oliveira

501 GANESH BEEDIES

Entre a Islândia e a Índia ficam apenas alguns maços de beedies. Chamo os lábios à erva, queimo a língua, aqueço os dedos, os pulmões queixam-se das alergias, as alergias andam muito excitadas. Estão sempre com queixas, os pulmões. Quando andava pelas índias, praticante de yôga, queixavam-se menos. Mas saíam-me mais caros. Depois comprei um CD do mestre DeRose, sentei-me numa sala devidamente despojada, queimei os incensos e, com uma mini escondida entre as pernas, fui entoando mantras ao ritmo das queixas dos pulmões. Não fosse a mini, garanto-vos, tinha dado em doido. E as alergias também. A mini e os beedies, que, assim como assado, são do melhor que há entre a Índia e a Islândia, salvaram-me do frio nórdico. Tudo graças aos meus amigos indianos que acreditam em santos, santos com cabeleiras disco e poderes inimagináveis. Por exemplo, santos que transformam pequenos pedaços de madeira em pepitas de ouro, santos que transformam pitas shoarmas em big macs. Ou, usando de uns certos pós, santos que nos fazem ver a verdade. Penso muito nestes santos e concluo que até eu, mesmo na Islândia, consigo chegar à verdade fazendo uso de certos pós. Não podemos, no entanto, ser tão cépticos. (Quem te avisa teu amigo é. Não sejas céptico.) Os santos existem. Entre a Islândia e a Índia há deles a pontapés. Vivem de verdades ocultas que, reveladas, parecem-nos banalidades evidentes. Parecer não é ser. Os santos têm isso a favor deles, merecem o nosso beneplácito. Parecer não é ser. Uma coisa pode parecer uma banalidade evidente, mas não é. Porque parecer não é ser. Tu podes parecer um santo, mas não és. Parecer não é ser. Ser implica algo mais, como, por exemplo, ter ido ao Egipto. Já fui ao Egipto, posso dizer que sou. Nunca ter ido à Islândia ou á Índia faz de mim apenas alguém muito comum, pois a maioria das pessoas no mundo nunca foram à Islândia ou à Índia nem são santas. Mesmo parecendo que são. Sou, portanto, uma pessoa vulgar. Mas sou-o com certas particularidades. Por exemplo, quando estou triste bastam-me beedies e minis. Sento-me defronte à televisão a observar adolescentes controlados e adultos histéricos, homens com idade para ter juízo completamente fora de si e jovens com idade para ter experiências completamente dentro de si. Entre o dentro e o fora de si vai toda uma filosofia DeRose. Sócrates também se explicava a partir de três domínios interligados: o domínio do autoconhecimento, o domínio da autoconsciência e o domínio do autodomínio. São domínios deveras essenciais na vida de um homem que se queira entre a Índia e a Islândia, são domínios que nada têm que ver com a engenharia civil que agora se pratica, uma engenharia de construtores corruptos, sacos azuis, mercados offshore, fugas ao fisco, ficções científicas. Penso nos santos. Quem cobrará impostos aos santos? Já alguma vez terá passado pela vossa cabeça que a nossa infelicidade possa ser o imposto que os santos pagam pelos serviços que nos prestam? Vejamos: oramos aos santos, fazemos promessas, pagamos com todo o tipo de sacrifícios, fartam-se de ganhar com isso, depois têm que declarar rendimentos, estão tão apegados a nós que a nossa infelicidade será o imposto que pagarão pelos rendimentos auferidos. A nossa infelicidade é a infelicidade dos nossos santos protectores. Daí que se aposentem mais cedo do que a maioria de nós. Daí que muito mais cedo do que a maioria de nós possam receber avultadas reformas pela redobrada tristeza com que contribuíram para a segurança social do mundo. Sem os santos, o mundo seria muito menos socialmente seguro. Sem os santos e sem os beedies e sem guerras preventivas. Se o mundo fica entre a Islândia e a Índia, garanto-vos que será entre a Islândia e a Índia que os santos mais consolidarão as suas finanças. Eles são muito nossos amigos, como os animais. Os santos são autênticos animais. Nós é que, por vezes, esquecemo-nos deles. Vamos às touradas, comemos rosbife, vestimos casacos de pele, calçamos botas de cano alto. Oremos. Em nome dos pais, dos filhos e dos espíritos santos.

Um poema* de António Cabrita e uma foto de Kate Breakey



DELHI
(Grande Mesquita)

Não te emociona o silêncio, os seus detalhes,
o arabesco dos arcos de acesso ao mihrab,
o colorido dos turbantes, que apontam Meca;
sequer a Caligrafia onde aquele que há mil anos
cuida do gado vem rememorar o Nome.

Corsário cativo das rotas do sangue
nunca subirás lestamente as escadas
que conduzem aos Pés do Mestre.

E contudo, à revelia do teu ânimo
dissoluto, o gato de Rumi salta
entre uma e outra veia e sussurra:
«reabre o coração e verás as grainhas
do vácuo, mil olhos cravejados de Céu».


*Selecção de Jorge Aguiar Oliveira

26.3.08

BIG ODE NO PORTO

dia 29, às 22:30, no Gato Vadio

AVISO À NAVEGAÇÃO

A dezassete do último mês de Janeiro, escrevi ao Henrique Fialho pedindo-lhe guarida para os meus poemas inéditos no Insónia. A sua resposta foi generosa como se constata. Desde então, três poemas por semana têm vindo a partilhar a sua própria luz, num caudal de desejo, onde a foz é um livro.

A partir de hoje, os poemas já editados bem como os próximos, serão arrumados de acordo com a construção momentânea do livro. O mesmo sustenta um titulo de gratidão: Insónia em Segunda Mão.

Até ao final (?) tudo está em aberto. Tanto para introduzir alterações na escrita, no aniquilamento público de poemas, ou até mesmo, na tomada de decisão pela não edição do livro. Logo se verá.

Aproveito para agradecer a todos os que têm expressado opinião sobre os meus escritos e dizer-lhes que não me salvando desta malfadada tristeza que carrego, são no entanto suaves festas no rosto de minha alma.


Lisboa, 26 Março de 2008. Portugal.

Jorge Aguiar Oliveira

INÉDITOS DE JORGE AGUIAR OLIVEIRA #28a

UM RESTO A CONTA-GOTAS

(CONTINUAÇÃO)


alimento a besta olhando-me ao espelho
lavando as ramelas do olhar
de algum perdão à deriva por aqui

trazer a vingança dentro de nós é pior que matar
o corpo contra o tempo do destino
a que chamavas a chaga do infinito

e tudo o que desejei para esta vida
ela mo deu ela mo tirou

duas e cinquenta e oito e abro outro ritz

entre o cinzeiro e um mata-borrão a meu lado
um molho de livros linhas de palavras
repletas de imitações de sangue
lágrimas mijos e esperma
ladroagens domésticas com cio
de bandidos pequenos a mentir
chafurdando na dor alheia

uns tantos a rabiscarem poemas
para caírem no goto da Opus Dei do amante
dos editores de regime e dos jornalistas
cometas vendidos ao recibo verde

vira-te rapaz abre a braguilha
e mostra-lhes o mangalho para taparem os olhos
chamarem-te ordinário com um olho
a espreitar entre os dedos

a senhora dança? e você mama?
este é um tempo de poemas de plástico
onde o p do poema sem côdea saltou
para o panrico e a escrita da moda
a um euro e de lápis que já foi azul
reinam nas latrinas dos intendentes literários

o senhor lambe aqui ou quer acolá?

o cego com o corpo cheio de chagas
sobe a escada a pedir esmola e adivinha
nunca leu o Pessanha mas eu lembro
na esplanada da Benard
havia uma gazela de permanente ruiva
bebendo chá de pacote levava no pacote e
pagava e nunca leu o Eugénio

não sei se o primeiro-ministro bebe leite
se algum dia bebeu do pacote mas aposto
que nunca leu um poema teu ou do Baião

um chuto numa bola de futebol dá um voto
o citar dum verso dá a perca de um tanto

se queres ser famoso rapaz
e apareceres na televisão vai até ao Parque
das Nações bate uma pivia aos berros
sem antes mandares um fax
para as redacções dos canais televisivos
sem nunca ouve bem nunca recites um poema
também o único que conheces
deve ser a letra do hino do teu clube
que é uma nação de boçais ignorantes
sem esquecer a tua professora de linguística
e literaturas que dos poetas
das últimas três décadas leu um
de que gostou encolheu os ombros
trocando o nome do dito por um astrólogo

é verdade a Amália era ponta-de-lança
e o Baia ganhou o nobel da literatura

vá minhas amigas levantem-lhe a saia
e mostrem-lhe a piça
para este país em dívida com as letras
pagar agora juros sobre juros de letras
e um verso lhit e fashion

lá fomos nós cantando e rindo ao fundo de novo
enquanto aquele orienta a vida o outro
orienta-se da vida com a sua mulher
entre carros abrindo as pernas e a boca
a troco duma nota
enquanto ele em casa fode a filha e
a irmã em tempos a cunhada
e o sobrinho do mesmo sangue

sangue do seu sangue

nada de mal nesse homem colectivo
e vibrante na pose de perna aberta
colar de cabedal com um búzio ao pescoço
trazendo a razão da vida ser tão curta
saboreia os prazeres sem um coto da moral
copulando galinhas cães
a burra sem sonho algum como ele
entre o fel do medo e a mordedura da morte
um vácuo de solidão serpenteia em alba
onde o tudo é alma do pó
uma mentira um nada

três e vinte e tresanda a filtro queimado

ligar a memória do último dia da nossa vida
como quem liga um rádio abandonado
na esperança de ouvir
a canção mais venenosa

e a sua picadela no coração
nos faça adormecer
num murmúrio moribundo nas traseiras
das lágrimas estreladas

sem ti não consigo olhar a lua


(CONTINUA)


Jorge Aguiar Oliveira

LABIRINTO #14


MJLF, Da cidade II, aguarela s/papel, 21x30cm, 2008.


Maria João

25.3.08

SE BEM PERCEBI

Leio este post no Almocreve das Petas e fico a pensar se a ideia é esta: a actual ministra da educação, Maria de Lurdes Rodrigues, deve demitir-se. Porquê? A ter em conta a citação de Bento de Jesus Caraça, por causa de um problema que tem mais de 60 anos. Pelo menos o texto citado é de 1946. Ora, sendo assim, defendo que se demita já, por antecipação, o próximo ministro da educação. Seja ele quem for, venha de onde vier, chegue quando chegar.

CHAMA-ME BURRO #2

Nas organizações que cultivam o rigor, o ‘empirismo-vampirista’ já foi enterrado no cemitério da improvisação e de uma bacoca mesmidade.
Rui Santos, via António Figueira

teoria lírica (6. DESPORTO)

1. Correr é mais importante do que estar sentado no sofá, a menos que me jures que o sofá se desloca a uma velocidade que permita comparar-te aos maridos das minhas amigas.

2. Disseste não haver comportamento mais previsível do que o daquele que quer chegar à meta antes do outro; ou saltar mais alto. Que na verdade me apaixonei pela tua indiferença à vitória. Que nesse tempo encontrava charme em quem abdica.

3. Esse sofá tem a inclinação das tuas costas, como um filtro ao ser tocado por cristal ou paciência. O verde está mais gasto mas os teus olhos ajustam o diafragma para claridade igual.

4. Parecias o mais alto, as mãos de neve que nunca importam à direcção do crente. Foi quando a roda começou a desenhar-se à tua volta.

5. Refazer as notícias dos jornais ou as viagens impossíveis. Entrar Clarissa, a de olhos iguais, e não te apetecer olhar nesse momento. Todos os teus actos de contenção afinal a súmula da coragem, O poema que queimava tudo à sua volta.

6. Resistir a todas as lesões, todos os treinos, sem doping nenhum. O movimento do teu braço em direcção à cabeça. A mínima oscilação de um planeta perante a estrela que lhe suporta o eixo.

7. E a elegância de estar a morrer. E um corpo que não te lembrasse disso.


Rui Costa

Quatro mil americanos mortos no Iraque: e os anti-americanistas primários ainda estão contra a guerra?

P.S.: Ao cuidado de JPP.

OUTROS TEMPOS, OUTROS DELINQUENTES




EXMO. SR. VITAL MOREIRA,

Por destino ou acasos insondáveis, calhou-nos sermos portugueses. Sabemos bem, vossa excelência melhor que eu, por experiência adquirida e inata inteligência, que esperar castigos ou punições exemplares neste país é o mesmo que nada. Note-se como, em assuntos de gravidade indiscutivelmente superior, essa exemplaridade é consecutivamente esquecida. Penso, a título de exemplo, na forma como passados sete anos sobre a queda da ponte de Entre-os-Rios as responsabilidades continuam por ser atribuídas. Pedir castigos disciplinares exemplares neste país é, pois então, o mesmo que pedir nada. Basta pedir um castigo disciplinar, sempre temos a esperança de que seja aplicado e evitamos a redundância dos termos. Os castigos disciplinares são, pela sua própria natureza, exemplares. Ou haverá casos em que os castigos disciplinares devem ser mais ou menos exemplares? Penso que não, assim como também estou crente de que, como já referi anteriormente, situações como aquela a que se refere no seu texto são inadmissíveis. Na globalidade estaremos de acordo, sendo excepções esse pormenor da exemplaridade do castigo e a sua excitação no final do texto. Não sei se entendi correctamente, mas quer fazer-nos crer de que o mostrado naquele vídeo é uma cena de «delinquência juvenil»? Delinquência juvenil? O que eu vi foi uma adolescente histérica, fora de si, dirigindo-se deseducadamente a uma professora. Chamar-lhe delinquente também me parece um pouco histérico, ainda mais quando a agredida nem sequer apresentou queixa da agressora. Com uma diferença. Numa adolescente isso é compreensível. Num homem adulto, sensato e precavido, não.

24.3.08

O VÍDEO #2

Depois de muito ter lido e ouvido sobre o caso do vídeo divulgado no Expresso, onde se vê uma aluna “brutalizando” uma professora na Escola Carolina Michaëlis, quero clarificar alguns pontos que ficaram por clarificar no post anterior:

1. A minha manifestação de solidariedade para com a professora Adonzinda Cruz é independente de qualquer julgamento acerca dos méritos ou deméritos da mesma na forma como encarou a situação. Em nenhuma circunstância podemos admitir que um professor seja tratado daquela forma por um aluno. Ponto final. Penso que isto não merece qualquer discussão;

2. O facto daquela situação ter sido gravada, as circunstâncias que permitiram que tal acontecesse, é, já por si, algo que nunca deveria acontecer. O uso dos telemóveis dentro de uma sala de aula é inadmissível. Impedi-lo deve ficar estipulado num conjunto de regras estabelecidas por toda a comunidade escolar;

3. Para muitos adolescentes, o telemóvel é hoje um objecto de afirmação da personalidade. Devo dizer que em vários questionários que fiz aos meus alunos e formandos, uma das perguntas era sobre um objecto que considerassem muito importante na vida deles. A esmagadora maioria respondia o telemóvel. A histeria da aluna, apesar de inaceitável, é compreensível à luz destes novos paradigmas;

4. Aquela situação não configura um caso de violência escolar. É uma situação de indisciplina, obviamente, que, por isso mesmo, deve ser punida. Desde logo, na avaliação da aluna. Refiro isto porque este aspecto é negligenciado amiúde. A avaliação de um aluno deve ter em conta múltiplos aspectos, não deve resultar de uma média aritmética onde apenas contam as notas dos testes (o que, diga-se, acontece quase sempre);

5. Situações de indisciplina não são de agora. É absolutamente ridículo relacionar aquele caso com alegadas tentativas de desprestigiar a classe docente, assim como fazer dele uma consequência directa das reformas que têm sido levadas a cabo pelo actual Ministério da Educação. Referi casos de indisciplina vividos quando eu era aluno. Outros já fizeram o mesmo: aqui, aqui e aqui;

6. A indisciplina nas escolas nunca tem um único culpado. Ela resulta de múltiplos factores, onde estão implicados alunos, pais, professores, várias instituições… Não é a culpa que deve ser discutida, mas sim a forma como se lida com a indisciplina. Naquele caso em concreto, tudo me parece muito estranho. Mais estranho que a professora não tenha apresentado queixa da aluna. Digamos que esta flexibilidade só terá uma consequência: mais desrespeito;

7. O respeito não é um dado adquirido, conquista-se. Como? Dando o exemplo é um bom caminho. Se queremos ser respeitados, devemos, antes de mais, dar-nos ao respeito. Lembro-me agora de situações de indisciplina, não dos alunos, mas dos próprios professores. E pergunto: pode, por exemplo, um professor que utiliza o telemóvel no decorrer das aulas exigir a um aluno que não o utilize? Pode. Mas será muito mais difícil ver a sua exigência respeitada;

8. Evitando abstracções em demasia, regresso à Escola Carolina Michaëlis. Aqueles telemóveis não podiam estar ligados. É uma regra básica: estipular, logo na primeira aula, que os telemóveis devem ser desligados quando se entra numa sala de aula. É como ir ao cinema. A professora nunca deveria ter descido ao nível da aluna, caindo no ridículo de medir forças com a mesma. Abria a porta e pedia à aluna que saísse, pedia ajuda a um auxiliar, qualquer coisa menos o que sucedeu. Tendo acontecido o que aconteceu, o Conselho Executivo deveria ter sido imediatamente avisado. E, seguidamente, os encarregados de educação. O resto é conversa;

9. Quando estas situações acontecem lá vem o argumento reaccionário de que «isto hoje é tudo uma bandalheira». Já nos encarregámos de dizer que “a bandalheira” não é de hoje, que a indisciplina e, nos piores casos, a violência escolares são típicas das sociedades abertas e democráticas (talvez na China não seja assim). É o preço a pagar por uma escola também ela aberta e democrática. Haverá colégios privados com características diferentes. As escolas públicas não podem ser senão democráticas. O que pretendem? Escolas ditatoriais em regimes democráticos? Seria uma contradição do sistema. O que me parece fundamental é que a democracia não descambe no laxismo, na ausência de autoridade, numa escola do desrespeito. Para que tal não aconteça, apenas se exige que todos cumpram competentemente as suas funções. Está claro que não foi isso que sucedeu: a professora não apresentou queixa no Conselho Executivo. E só depois de as imagens terem sido publicadas no YouTube é que o caso foi tornado público e aberto um inquérito.

INÉDITOS DE JORGE AGUIAR OLIVEIRA #28


UM RESTO A CONTA-GOTAS



pouco passa das duas

olho as duas e treze no relógio
e treze foi o malvado dia em que partiste

tossindo e escarrando sangue
entro na madrugada pelas traseiras
fumando desalmadamente

migalhas de badalos dos sinos
planam sobre o deserto dos quartos
imundos de corpos podres
em frente

os barcos continuam navalhando o rio

nesta janela da Rua dos Corvos em Alfama
sinto-me vigilante não sei de quê

furando com um prego um nome

o olhar já não se espanta por coisa alguma

há muito tempo coisa duma hora
estava sentado na gare de Santa Apolónia
e os comboios chegavam e partiam
com eléctricos vultos vagabundos
e inumanas feras que eu nem sei se eram
gente se visões tumulares

arrastam-se com roupas aparentemente limpas
escondendo a dor do vazio no estômago
e a ferida dignidade no queixo levantado

de olhar desfocado mas aberto ao caos
teso de palavras sem um rim um fígado
ou outro avir vendido para levar um pão
aos filhos
a doença do jogo
faz parte da história natural das bestas
filosóficas de hóstias cobertas de sangue
dos punhais duma indefinida direcção
desfigurando jovens terras
de bandeira ainda limpa

acendo outro cigarro
como um velho precisando da bengala
para chegar à noite quebrada

com o olhar quase morto e de alma perdida

deixo-me ficar indiferente ás descobertas
da ciência à arte inflamável
aos corpos mutilados
não sei quais
mas sei terem havido hoje porque
uma rotina de mil anos é uma rotina
de outros mil e tantos mais

um círculo de rosas bravas

vim há pouco da janela
e ao soprar o terço de poeira
lembrei-me da contaminação
do nosso abandono
partilhada por tantos miseráveis

como aquele verme escondido
na escuridão da noite onde habita
o rochedo incendiado da sua vida
com o peso da consciência
de quem virou as costas
quando a morte filou o braço
e me arrastou de joelhos ao altar

poderíamos ter dado o laço sem nada fazer
para impedir a desgraça
talvez abrisse uma garrafa de champanhe
à porta do hospital à saúde da notícia

por mim pode ficar no buraco
para sempre abraçado ao resto dos dias
ou a meio do carreiro dos azarados
marmeleiros que iam dar ás encruzilhadas
das nossas conversas diluídas
no cais da amizade
a minha face a minha dor
a minha rapariga
foi uma cadela deixada a um tipo
desaparecido entre as brumas da mentira

apago outro cigarro e mudo-me
para o muro vazio da Aldina Duarte

chegar à conclusão que andámos
eu e tu meu amor
rodeados de cínicas sanguessugas
e não demos conta dá-me ganas
de esmigalhar a cabeça entre o cais
e o casco do cargueiro ancorado ali em frente
enviando por correio os pedaços dos destroços
aos imbecis em envelopes cortantes

foda-se queimei os pêlos do bigode
ao reacender outro cigarro
no passar das duas e quarenta

trago o coração a boiar num mar de vingança
onde o sal conserva a fome doentia
animalesca trazida
pelos dias sem sonhos nem norte

alimento a besta olhando-me ao espelho
lavando as ramelas do olhar
de algum perdão à deriva por aqui

trazer a vingança dentro de nós é pior que matar
o corpo contra o tempo do destino
a que chamavas a chaga do infinito

e tudo o que desejei para esta vida
ela mo deu ela mo tirou

duas e cinquenta e oito e abro outro ritz

entre o cinzeiro e um mata-borrão a meu lado
um molho de livros linhas de palavras
repletas de imitações de sangue
lágrimas mijos e esperma
ladroagens domésticas com cio
de bandidos pequenos a mentir
chafurdando na dor alheia

uns tantos a rabiscarem poemas
para caírem no goto da Opus Dei do amante
dos editores de regime e dos jornalistas
cometas vendidos ao recibo verde

vira-te rapaz abre a braguilha
e mostra-lhes o mangalho para taparem os olhos
chamarem-te ordinário com um olho
a espreitar entre os dedos

a senhora dança? e você mama?
este é um tempo de poemas de plástico
onde o p do poema sem côdea saltou
para o panrico e a escrita da moda
a um euro e de lápis que já foi azul
reinam nas latrinas dos intendentes literários

o senhor lambe aqui ou quer acolá?

o cego com o corpo cheio de chagas
sobe a escada a pedir esmola e adivinha
nunca leu o Pessanha mas eu lembro
na esplanada da Benard
havia uma gazela de permanente ruiva
bebendo chá de pacote levava no pacote e
pagava e nunca leu o Eugénio

não sei se o primeiro-ministro bebe leite
se algum dia bebeu do pacote mas aposto
que nunca leu um poema teu ou do Baião

um chuto numa bola de futebol dá um voto
o citar dum verso dá a perca de um tanto

se queres ser famoso rapaz
e apareceres na televisão vai até ao Parque
das Nações bate uma pivia aos berros
sem antes mandares um fax
para as redacções dos canais televisivos
sem nunca ouve bem nunca recites um poema
também o único que conheces
deve ser a letra do hino do teu clube
que é uma nação de boçais ignorantes
sem esquecer a tua professora de linguística
e literaturas que dos poetas
das últimas três décadas leu um
de que gostou encolheu os ombros
trocando o nome do dito por um astrólogo

é verdade a Amália era ponta-de-lança
e o Baia ganhou o nobel da literatura

vá minhas amigas levantem-lhe a saia
e mostrem-lhe a piça
para este país em dívida com as letras
pagar agora juros sobre juros de letras
e um verso lhit e fashion

lá fomos nós cantando e rindo ao fundo de novo
enquanto aquele orienta a vida o outro
orienta-se da vida com a sua mulher
entre carros abrindo as pernas e a boca
a troco duma nota
enquanto ele em casa fode a filha e
a irmã em tempos a cunhada
e o sobrinho do mesmo sangue

sangue do seu sangue

nada de mal nesse homem colectivo
e vibrante na pose de perna aberta
colar de cabedal com um búzio ao pescoço
trazendo a razão da vida ser tão curta
saboreia os prazeres sem um coto da moral
copulando galinhas cães
a burra sem sonho algum como ele
entre o fel do medo e a mordedura da morte
um vácuo de solidão serpenteia em alba
onde o tudo é alma do pó
uma mentira um nada

três e vinte e tresanda a filtro queimado

ligar a memória do último dia da nossa vida
como quem liga um rádio abandonado
na esperança de ouvir
a canção mais venenosa

e a sua picadela no coração
nos faça adormecer
num murmúrio moribundo nas traseiras
das lágrimas estreladas

sem ti não consigo olhar a lua

por uns segundos passei pelas brasas
engomando sonhos teus e acordei
com os cabelos mergulhados na cinza
das beatas no cinzeiro charco
onde bóiam paus de fósforos e

o sumário da minha vida
é a morte

como desejo não acordar mais
neste aglomerado de dias sem cura

é-me igual ao litro que venha a doença
da esperança de máscara ferida
se morrem os meus braços sem os teus

recito uma lágrima dum sonho
e sigo pelas ruas da cidade
de passos com destino padrasto
e tudo e todos parecem estar em saldo

aos pés da espuma feita colchão danço
agora o tango sozinho
e esta graciosidade como a vida
não é rota para viagem sem par

tropeço em restos de papelões
escondendo nos passeios da cidade corpos
apodrecendo abandonados pelo destino
e pelos miseráveis governantes
indiferentes à espinha de fome
e aos ossos do desespero de seres
que mesmo nunca tendo lido
a morte a crédito de Céline
são homens e mulheres alguns
nunca se conheceram crianças
no espelho desabrigado de beleza

sem Spartacus nem sopa os pobres
já nem cabeça têm para se revoltarem
ou cuspirem o bolor
que o tutano da sua vida ganha

sem terra sem rua sem mesmo um nada
não podem mijar no urinol do Duchamp
porque só conhecem a sombra
da árvore no taipal da obra e
o biombo automóvel onde

ao redor ratazanas reconhecem
o cheiro do desamparo a arder
e em breve mais um corpo caído no ruído
do alcatrão urbano prato forte
por ninguém terem nem despedidas
para o recordar algum tempo mais

a revolta gaga dos sem trabalho
e sem versos enferrujando
na perpétua armadilha
de saberem e terem a vida a crédito
para tal basta possuírem o impossível

um minuto para pagar um dia

um raio de sol bailando num rosto
uma palavra com raiz criando pontes
entre o cérebro e o coração
e à mão um pão e um corpo

numa ruela da Cova da Moura
as balas arrumam fardas nos guarda-fatos
ao som de mornas cheirosas a torresmos

um machado racha-me a cabeça ao meio
e a minha língua saltita na mesa
lambendo os pingos de sangue e a cinza
dos meus cigarros que lembram corpos
caídos ao longe num resto de rua no Iraque
depois de um carro armadilhado ter explodido
junto a uma paragem de autocarro
onde já ninguém se lembra da imagem

um vaso com flores à porta de casa

e vão pelos ares comboios alianças e livros
de cheques salpicados com o sangue
dos pedaços de carne voando
no espaço aéreo das pombas
num estilo Furia dell Baus

são os primeiros sinais do espectáculo
de novo trazido à cena
em nova encenação islâmica

o resto da minha vida anda
numa bola de sabão perdida numa galáxia
numa bala à deriva no Casaquistão
num fio da corda dum enforcado no Irão
na lamina mortal dum motim
numa cadeia em São Paulo e em letras
de canções que sei de cor

e se deus me quiser castigar
então vai ter que penar
para o inferno não se pode mandar
o que já lá está


o máximo que desejo esta noite
é não me lembrar de ti
duma mesa posta sem comida
ou do relógio com os ponteiros parados
por não haver dinheiro para comprar pilhas
mas é impossível meu amor

quando chegaste com a cicatriz do sonho
e a alma remendada além dos corantes
e conservantes para o tingimento
das roupas dos ricos cuspiste
não me toques puta europa

o outro teu colega têxtil enlouqueceu
ao aproximar a vela acesa da menina
da direita queimou as pestanas
e o olho explodiu no desemprego

e hoje ser agricultor estilo portuga
é desfilar de enxada ás costas
num supermercado e comprar o agrião
e o nabo embalado
enquanto outros rufam tambores
para preservar o lince e a urtiga
e nenhum barulho para preservar
a ideia de que nada se pode preservar
eternamente

são quatro e quarto e o fumo do cigarro
fugindo pela janela

até ele foge de mim como aquela
ranhosa da frente de bandeira
nacional à varanda que não alugou
o anexo ao caboverdiano por ser preto

preto é o gato do ourives que é mais
bem tratado que muitos imigrantes
neste quintal a ficar cada vez mais
de castanholas e sevilhanas

a rata da mulher da frente se a tem
é branca como a pele da sua maldade
que é um diamante eterno

bocejei à passagem das quatro e meia
levanto-me da febre da flor de lótus
e vou urinar ás portas de Berlim
vejo traineiras e arrastões
da nossa frota pesqueira perdida
vendida a esta Europa traficante

puxo o autoclismo e fecho os olhos
para não ver o mar
sem peixe algum algum dia

uma tempestade se ergue
das funduras da minha cabeça
tudo por que me bati na vida se afunda
nestes dias sem amor e sem chão

que o tempo barra
os destroços da minha história
e desta terra que foi um país
e eu um agasalho para o teu coração

são quase quatro e cinquenta e não paro
de contar as passadas do tempo a fugir
e há um resto duma sombra mutilada
a voar na outra margem

é demoníaca esta espera
pelos primeiros raios da aurora

é um tempo perdido
como perdido é o tempo da espera
pela morte a tocar saxofone à porta
dos quartos emprestados onde durmo
sem morada e sem o beijo dos deuses

nunca mais voltarei a casa

perdi-a quando os corvos te levaram
e porque nunca mais te verei
nunca mais terei casa
a casa

nem junto daquela lua onde nasceu
um lírio no céu nessa noite
em que se evaporou a janela
do abrigo em meu peito

quando ontem procurei a linha do horizonte
e a encontrei morta percebi já estar
a caminho do abismo do invisível

crio barulhos à minha volta
para não ouvir as gargalhadas da solidão
paro

e volto à janela com o corpo
duma esferográfica e olho através dela
o Cristo-rei ao longe aponto acerto
a mira do desejo e disparo a bazuca
com o olhar demolidor

agora já não mora lá
o causador de vómitos para outros

antes de mim e para mim

bateram as cinco e entre as mãos
amparo o meu coração tombado
na guerra dum dia mal afortunado

outro cigarro e recordo
as escamas caídas nos campos
de batalha dos abraços dos falsos

vou à janela tirar a roupa da roldana
e não há roldana nem roupas

somente uma nuvem enamorada
pelo grito do abutre a naufragar
no fumo do meu cigarro

nunca mais chegam as seis horas
e trago à minha companhia Jay-Jay Johanson

um incêndio deflagrou nos bolsos
das suas calças cheias de restos de nódoas
de histórias ás vezes vazios
de dinheiro ou de papéis com números
de telefone para encontros sexuais
que dão algum troco para a bucha
mas não chega para afogar
o pavor de se ver branco no negro

o meu mundo foi-se embora
levando-me os paços
as viagens do desejo
a garganta dos contos perfeitos

este vazio contaminando
o trilho da dor percorrida
com a memória em debandada

estão os justos quase a esquecerem-se de ti

brisa triste esta

quando desenterrarem as tuas palavras
no vento
ajoelharão a chorar de arrependimento
por não terem aprendido
com a tua sábia humildade

venha depressa a morte prometida

atravesso o corredor às escuras
com as veias do silêncio secas de desejos
mesmo o de estar vivo

a minha mão a vegetar no meu braço

andam por aí à deriva os gestos do desejo
de abrir a porta da luz que dá acesso
ao carrossel dos mortos embalsamados
no centro do prado dos lírios negros

perdoa não ter conseguido proteger-te
dos demónios e dos monstros deste mundo
onde todas as noites morreram no negrume
da noite em que nasceu a tua morte

evaporo-me no fim das tardes
sem saber como irei suportar o acordar
no horror duma nova manhã
com morcegos voando
dentro da minha cabeça
e as veias enchendo-se de areias
restos de vermes em vidro cortante

agrafo dia a dia todas as recordações
que me vão assaltando como
uma dolorosa ferida de saudade
solidão que sei nunca irá sarar
porque ao deixar o deserto onde vivia
no dia em que voaste sobre mim
e me levaste nas tuas asas
a conhecer o perfume da felicidade
eu renasci sem limites

agora de que me serve cremar
as impressões digitais dos minutos
de amor que dão passagem
para o macabro paraíso cristão
se os pássaros ficaram todos embalsamados
ao tentarem perpassar o muro da vaidade

melhor estou eu sendo um resto imortal
na loucura de acreditar na reencarnação
de uma rã em alforreca e o teu olhar
estar agora no rosto não encontrado
porque trago o coração doente
a alma contaminando sem cura
a podridão da matéria
senão vê

rezo na cara do silêncio
e a voz cega-me
para além das acrobacias da melancolia
e do desenrolar inglório do novelo
das minhas contradições
porque as pontas dão um nó

transporto tantas perguntas inquietas
que o tráfego estoira com o raio
das recordações do tempo das alegrias

abre a porta da gaiola do meu pensamento
e fecha a boca de espanto
quando avistares o cosmos a voar
de asas brancas salpicadas de sangue

abre a porta esta noite porque desejo
beijar-te toda a noite para não me lembrar
que te perdi meu amor

olho por olho solidão por solidão

já lá vão as seis da matina e o pedreiro
a sandes de fiambre sem manteiga
e o galão já andam por aí

o compêndio da comédia incrimina
o sorriso da dor estrangulada
na luz do pavio dos círios acesos
brilhando nas escamas do rabo da sereia
defronte ao presidente batendo punhetas
enquanto a secretária lhe penetra o polegar
cu acima e estraga-se tanta comida
por aí nos pratos defronte aos passeios

morresse com fome hoje
como ontem como sempre
quem é ele quem sou eu
o meu retrato é uma distância dolorosa
uma labareda de gente a dar e receber

nem todos os romances têm uma fractura
frésias no colo ou declarações eternas
estorvando os passos
de a ninguém pertencer

tira a espinha cravada no pé senão
ainda sangras as sombras das pegadas
com tão pouco saber
a sombra vestida dum resto de luar
ecoando sobre o despertar da tempestade
das substâncias do desejo
para uma injecção letal

parou o olhar em contraponto à vida

um suicídio atrapalha o tráfego
do espírito público

ele era a Cleópatra seu amor a serpente
e não há maior víbora do que a Mãe
das mães de manto branco
espelhando a glória dos escravos

nunca mais bis esta noite nunca mais

promete-me voltares para casa
esta noite ás cavalitas
num desesperado grito meu

sobrevoando a cremação pestilenta
de toda a nossa carne morta
malcheirosa seja numa frigideira ou
numa ruela amaldiçoada
algures no Zaire

amanhã é dia de finados e eu vou
tirar crude numa dessas praias mortas
dum coração abandonado onde avisto
um resto duma forma de rosto
que na verdade era uma palavra de vidro
dum antigo namoro

esta manhã
os telhados estão repletos de estrelas mortas
e eu cego no labirinto do poema inacabado

morrendo com a tinta envenenada de destino

daqui a pouco serão sete horas
e irei engolir mais uma noite de amargura
enquanto passeio de mão dada com as hulheiras
e o arcanjo pálido que tem estado sentado
toda a noite no parapeito da janela
com vista para o reino do abismo

vou-me embora no verde do loureiro
para libertar a alma
na escada da brutal sabedoria

acolá um resto de luz violeta
e a recordação do teu doce olhar

violeta violetas

muitos vasos com violetas
e muitas velas acesas ao redor do divã
no quarto onde a um canto me sentava no cadeirão
acenava e sorria aí para cima
ficando horas a conversar contigo

no tapete onde dormitava a dor
como um marinheiro enlouquecido
na espera impossível pela chegada
do navio trazendo o seu amado
de terras do sonho para o alívio

ontem disseste para seguir em frente
e procurar
um companheiro para completar a viagem

a chorar prometi ir à procura
dum desgraçado que nunca será amado
verdadeiramente abraçado e beijado
porque tudo o que em mim era verdade e luz
se foi
no dia em que partiste

velas acesas e violetas para ti
até ao fim da nossa história

gravaste com a morte uma tatuagem
de dor para além do sempre
no resto do meu coração

repito o teu nome
todas as manhãs. Todas
as manhãs repito o teu nome.
O teu nome, repito
todas as manhãs. Assim,
talvez um dia enlouqueça
sem saber,
o que é andar por andar.

Depressa, dá-me a mão e leva-me
para junto de ti.




Lisboa, Agosto de 2004


Jorge Aguiar Oliveira

CHAMA-ME BURRO

Um dos grandes equívocos da “cultura” urbana vigente é pressuposta benignidade pedagógica da autorgação do livre arbítrio quase incondicional ao jovem adolescente, que por natureza é rebelde e transgressor.

22.3.08

LÁ FORA É ASSIM:

EM NOME DO PAI, DO FILHO E DO...


O jogo foi péssimo. Stop. O árbitro esteve à altura do jogo. Stop. O Paulo Bento é tosco. Stop. O Miguel Veloso foi à cabeleireira e devia ter lá ficado. Stop. Os jogadores do Sporting não ganham para os penáltis. Stop.

A SEMANA BRUTAL

A brutal semana que passou ficará brutalmente marcada por um bestial vídeo onde se mostra a brutalidade a que este país pode chegar quando as novas tecnologias nos mostram em bruto a bestialidade da vida: professoras brutalizadas por alunas histéricas, alunos brutos brutificados por professoras incompetentes, incompetências brutais brutalizando os olhos de quem viu, vê e verá, à sua volta, todo o tipo de selvajarias acontecerem ao vivo e ao morto na TV, no You Tube ou por aí além. Uma guerra selvagem comemorou cinco anos de fereza e um blogger bravio foi multado por ter brutificado o bom-nome dos palhaços e um outro ferino blogger foi brutalmente nomeado para dar conta das bravias salas da santa madre igreja do cinema em Portugal. País que rima com brutal, dê por onde der. Julgo que devemos solidarizar-nos com todos os embrutecidos deste mundo, incluindo, e desde logo, os brutos, pois como diria o terrível poeta, fosse vivo, é castigo do vício o próprio vício, tal como é castigo dos brutos a própria brutalidade. O post da semana não podia deixar escapar esta brava realidade. Por isso, o post da semana não é um dia do pai, não é um dia da primavera, não é um dia da poesia. É Uns têm, outros não (cataratas, claro).

Cito: Basta ver como a professora (a adulta e a profissional que tem de garantir o normal funcionamento das aulas) lida com o problema para perceber que estamos perante alguém sem preparação para cumprir as suas funções.
Comento: Se bem sei, trata-se de uma professora no topo da carreira. Percebermos agora que não tem preparação para cumprir as suas funções é, no mínimo, brutal.

Cito: Ser professor é difícil. Recebem-se na sala de aulas todos as falhas familiares, todas as falhas sociais, todas as falhas do sistema. E no fim, o mais provável é ser-se maltratado por quem falha em casa, por quem falha na sociedade, por quem falha no sistema. Mas é esta a profissão que se escolheu e todas as profissões têm partes difíceis.
Comento e pergunto: Nem todas. Mas quantos professores no activo terão, de facto, escolhido ser professores? Quantos não serão, digamos assim, resultado das falhas do sistema?

Cito: Um professor tem de saber o que ensina, tem de saber falar, tem de saber captar a atenção de uma plateia desatenta, tem de saber gerir a sua autoridade, tem de saber avaliar, tem de saber entusiasmar e ainda tem de gostar do que faz.
Acrescento: Um professor também tem de saber passar a ferro, dançar valsa, jogar boxe, domar felinos de grande porte, escolher pomadas consoante as feridas, fazer de palhaço nas horas vagas, afagar consciências, massajar frustrações. E, se tiver família: ser bom filho, bom pai ou boa mãe, conforme o género. Deve também, tanto quanto for necessário, saber preencher um caderno de recibos verdes.

21.3.08

A NEO-PENÉLOPE

Em entrevista recentemente publicada no Diário de Notícias, Ana Hatherly (n. 1929) afirma que «o poeta, como emblema do criador, persegue todos os símbolos, todos os vestígios, ou seja, toda a memória que corre no seu sangue, e para além do espelho inventa o inaudito». No seu livro mais recente, a esposa de Ulisses, enquanto símbolo de uma certa condição feminina, é perseguida e reinventada. Talvez mais que reinventada, seja esta fiel e extremosa esposa desconstruída: «Não tece a tela / Não fia o fio / Não espera / Por nenhum Ulisses» (p. 15). Hatherly, nome que ficará inevitavelmente na história da literatura portuguesa, mais que não seja pelo pioneirismo na exploração de linguagens poéticas menos comuns, da poesia experimental ao barroco, passando pelas formas poéticas enraizadas nas filosofia e cultura orientais, propõe-nos em A Neo-Penélope uma revisão dos códigos que ainda hoje delimitam o modo como a feminilidade é perspectivada. Três conjuntos de poemas compõem a obra: Poemas Femininos, Alice no País dos Anões, Epigramas e Sátiras. A ligá-los encontramos essa intenção de repensar o feminino, quer a partir de simbologias instituídas – do mito de Penélope à fantasia de Alice -, quer através de um olhar minuciosamente irónico e satírico sobre a actualidade. Talvez não seja descuidado, provavelmente contra vontade da autora, falarmos de um certo tipo de feminismo que sobressai nestes poemas, embora mais correcto seja falarmos antes de um olhar lúcido e consciente sobre a condição das mulheres ao longo dos tempos. Até porque mais do que reivindicarem uma aproximação entre os géneros, os poemas de A Neo-Penélope sublinham a especificidade de ser(-se) mulher: «A mulher é e não é / A campeã das gatas: / Pode encolher as unhas (ou não) / Mas o seu arco-íris da invenção / Exige mais do que / Um tapete de peluche / Para o ron-ron» (p. 13). O tom, geralmente irónico, permite à poetisa colocar-se no papel de uma Penélope que espera por algo que nos escapa. Não sabemos por quem espera ou por que espera, sabemos apenas que espera um outro, um TU ou, na sua forma mais paradoxal, um TU-EU, anunciados precisamente em maiúsculas. Este TU, dificilmente alcançável, impedido por uma espécie de reclusão interior, intimamente conflituosa e aparentemente insanável, surge-nos também como objecto amoroso. Deste modo, o amor é, no tempo e no espaço da neo-Penélope, uma força do desejo que o corpo indaga, uma aposta nem sempre ganha mas absolutamente fundamental. Leia-se, a título de exemplo, este perturbante Sem Amor: «Viver sem amor / É como não ter para onde ir / Em nenhum lugar / Encontrar casa ou mundo // É contemplar o não-acontecer / O lugar onde tudo já não é / Onde tudo se transforma / No recinto / De onde tudo se mudou // Sem amor andamos errantes / De nós mesmos desconhecidos // Descobrimos que nunca se tem ninguém / Além de nós próprios / E nem isso se tem» (p. 26). O que de algum modo é recusado é a subversão do papel do amor. O amor não implica uma entrega incondicional e passiva, ele não admite a atitude submissa que, para mal dos nossos pecados, foi desde sempre incutida na mulher que espera (ou deve esperar), na mulher que se entrega (porque é seu dever entregar-se), na mulher educada para prescindir de si própria em função do homem que ama. Ao longo da história da humanidade, o papel atribuído à mulher foi, quase sempre, o de uma inaceitável submissão. Por vezes, essa submissão aconteceu em nome do amor, como se o amor pudesse ser uma força que escraviza ao contrário de uma força que liberta. Urge subverter tais paradigmas, quebrar as regras já não num mundo de sonho, como sucede com Alice, mas na própria realidade. Alice é um pretexto, um protótipo do feminino que encerra uma invenção, uma felicidade onírica, improvável, a mulher que não existe num país inexistente, o país das maravilhas. Alice é o feminino projectado a partir das aspirações masculinas numa sociedade erigida sobre princípios arcaicamente machistas, Alice é, mais que uma mulher a sonhar, o sonho de um homem. Fecho com um poema:

SÁTIRA BARROCA I – O PRAZER DOS CASAIS

Os mesclados jogos esponsais
Lugar obrigatório de cristais
Decorrem de proximidades desiguais

Infamantes sombrias mas legais
As exigências intensas conjugais
Perluzem pelos preitos maritais

Repercussões: efeitos sociais
Repartição de legados essenciais
Injunções recalques preceituais
A família é o prazer dos casais

Ana Hatherly, A Neo-Penélope, &etc, Novembro de 2007.

INÉDITOS DE JORGE AGUIAR OLIVEIRA #27

REMÉDIO SPA



Aceitaste passar a noite no spa
de minha casa. Logo ao fechar a porta
começámos por um exercício de linguado
anti-stress. Na sala fui-te colocando seixos
pretos rolantes de Machico e Calheta
pelas tuas costas enquanto te contava
historietas de terapia excitante, antes
de te besuntar o corpo com pontche
e massajar-te com a língua.

Passámos ao quarto e pus uma música
relaxante. ...que te fodas com o bom senso...
e entre os lençóis cheirosos a essências
do meu corpo, desflorou uma efusão
paradisíaca com os teus odores.
Após a aromoterapia, suando gemidos
e sem precisar de trasladar o desterro
dei-te nova massagem com
o teu leite entre a urze do teu peito.
Relaxámos pela manhã, envoltos
nos meandros do spa cuisine.

Jorge Aguiar Oliveira

O VÍDEO

Antes de mais, impõe-se uma manifestação de solidariedade para com a professora. Sem mas, nem meios mas. O vídeo é brutal. Impõe-se também alguma serenidade, antes de, como é costume, apontar o dedo, atirar culpas, fazer juízos. Nestas matérias, nada há pior do que precipitarmo-nos no gozo que nos dá censurar o mundo à nossa volta. Esse gozo denota sempre uma insuportável vontade de nos “vitimizarmos”, de nos colocarmos no centro da boa vontade, no palco da santidade e das práticas virtuosas. Recordo-me dos meus tempos de estudante, recordo-me de ter a idade daqueles ridículos adolescentes, recordo-me de como também eu fui um adolescente ridículo e de como alguns professores sofreram com isso. Recordo-me, por exemplo, de um professor cuja careca servia várias vezes de território experimental do calduço. Recordo-me da malta saltar pelas janelas depois da chamada, do professor nada fazer contra isso, talvez temendo represálias. Recordo-me de, certo dia, toda a turma ter sido chamada ao Conselho Directivo por ter deixado uma sala de aula num estado lastimável. Mesas em cima de mesas, cadeiras por cima das mesas em cima das mesas, tudo revirado, caixote do lixo na secretária do professor, papéis por todo o lado. Tudo feito com a professora dentro da sala de aula. Sim, éramos uns energúmenos. Não vivíamos em Lisboa, nem no Porto. Vivíamos em Rio Maior, na Escola Secundária de Rio Maior. Se a culpa era dos nosso pais? Pobres coitados, matavam-se a trabalhar para que pudéssemos ter tudo. Faltávamos às aulas, íamos para as tascas beber até cairmos para o lado. Os pais? Os pais estavam sempre presentes, mas tudo isto só não lhes passava ao lado quando, chamados à escola, envergonhadamente nos aplicavam alguns castigos. Castigos que, rapidamente, nos encarregávamos de desprezar. Os pais, os pais… Não venham pois culpar os pais, a ministra, o ministério, a escola, os alunos ou o inventor dos telemóveis isoladamente. Repartam as culpas, antes de reivindicarem uma inocência que não têm. Porque no meu tempo, apesar de ainda não termos telemóveis, já era assim. E mesmo quando os pais não dão o exemplo, a culpa não pode ser apenas dos pais.
Adenda: O vídeo está aqui.
Adenda 2: Tudo isto é muito triste. Limito-me a sublinhar: "Era uma aula livre e a professora autorizou o uso do telemóvel e toda a gente os tinha em cima da mesa. Pedi a uma amiga para ouvir música no telemóvel mas o som estava baixinho", conta Patrícia. Ao passar pela mesa para entregar um teste, a professora viu o telemóvel e tirou-lho. O caso acabou quando a professora disse no Conselho Executivo que tinha havido um problema, não fez queixa mas a aluna ficou sem o telemóvel. António Leite, director-adjunto da Direcção Regional de Educação do Norte (DREN), disse ontem ao Expresso que a presidente do Conselho Executivo só tomou conhecimento do caso ontem quando a DREN contactou a escola depois de ter visto as imagens que estiveram no YouTube. A jovem está supreendida com a dimensão que o caso tomou e teme agora a suspensão ou a expulsão. Os pais da jovem só ontem tomaram conhecimento da situação. "Isto também é mau para os meus pais", diz a jovem que apenas tinha contado que a professora lhe tinha tirado o telemóvel.

UMA POSIÇÃO AGRADÁVEL


20.3.08

INSÓLITO

Ver-me citado numa crónica sobre o metro ligeiro de superfície (MLS) de Coimbra. Aqui.

Chalana torna o mundo claro e inteligível. Chalana dá-nos espaço para pensar. Obrigado, Chalana, por seres quem és.

AS MARGENS DO MURMÚRIO

O esquecimento amadurece no seio
das pupilas. Na forma aproximada de
poema, a voz funde-se precariamente
com a distância. Ainda as minuciosas
repetições dos traços, a cadência
do corpo, o instante opaco de silêncio.
Afasto-me de compreensões uníssonas,
do vago abandono das palavras
aberto no peito. Resto exacto da
crença, o ritmo ambíguo dos lábios
molda o regresso, em tragos
decifradores de curta duração.
Nalguns lugares repousa a raiz.


Carlos Alberto Braga
(detalhe de imagem respigada aqui)

Carlos Alberto Braga nasceu em 1959. Na sua bibliografia constam livros como As Margens do Murmúrio (1987), com prefácio de Egito Gonçalves, Deriva Litoral (1989) e As imperecíveis águas (1996), com prefácio de António Cândido Franco.

Micro #8

Estava a fumar um cigarro com uma amiga, em frente de um centro comercial no Saldanha, em alegre cavaqueira e aproximou-se um tipo de cor, com idade indefinida, a cambalear, gesticulando os braços, mas sem dizer nada. A minha amiga antes que ele abrisse a boca, despachou-o logo afirmando que já não tinha cigarros e eu confirmei que estávamos a fumar os últimos. Ele afastou-se com equilíbrio precário e a minha amiga comentou: foi sempre assim, comigo só vêm ter cães, crianças e deficientes mentais. Eu acrescento que os malucos na rua se metem todos comigo. Olhamos para ele, que já está distante, mas continua a gesticular os braços gritando:
- Má quem dissi queu qué cigarro? Qué mulhé pá casá! Tou a vê qualé a melhó, a di castanho ou saco larânja.
A minha amiga fica incomodada e eu com uma enorme vontade de rir, comento que o maluco é daltónico porque o meu saco é vermelho, acabamos o cigarro à pressa e ela diz logo que vamos sair por outra porta, não lhe apetece aturar aquilo. Quando apagamos o cigarro, ele grita:
- Já escólhi, qué a di saco larânja!

Maria João

19.3.08

INÉDITOS DE JORGE AGUIAR OLIVEIRA #26

FITA PRETA NO BRAÇO



Ocupa um dia da semana com as limpezas,
abafando assim o vazio dos minutos.

Transporta pequenos vasinhos com flores
de tecidos encerados para o passeio, sacudindo
em seguida os naperons de renda para os aranhiços
nunca criarem teias. Limpa os vidros da porta
do jazigo com páginas de jornais onde
a economia e a cultura se esvaiam num lixo,
depois da limpeza dos caixões
com a flanela embebida em óleo de cedro.

Do lado do rio repousa o pai, do lado
do shopping a mãe e o marido. Na prateleira
por baixo do pai, seu filho. De aspirador na mão,
limpa a alcatifa do chão do jazigo para depois
estender uma pequena toalha de linho,
abrir a marmita e merendar junto dos seus.

Fora estes, resta-lhe uma prima em Minas Gerais
de quem não sabe nada há décadas. Duas
ou três locutoras de televisão que são
como se fossem da família, a gatinha e uns
vasos adubados com borras de café na varanda.
Liga o rádio portátil, trinca a perna de frango
e olhando à sua volta, tropeça num suspiro.

A Segunda-feira é sempre um dia menos só.
A convivência com os ossos dá alegria.
Não dá para dançar, mas dá uma certa alegria,
um ar de paz, – um mar calmo, à Sebastião
da Gama, dizia. Mesmo embaciada é melhor
do que falar para as paredes e botões.
À segunda até dá para trautear velhos fados
ao limpar as molduras dos retratos.

No jazigo já não chora as saudades mas
a crua verdade da dor de estar tão-só.

Um dia ao fechar a porta reparou: os lírios
roxos colocados na jarra ainda há pouco,
começaram a murchar tão depressa
como o resto da sua vida.

Jorge Aguiar Oliveira

LABIRINTO #13

Gudula Thormaehlen Friedman, Das zeitlose Labyrinth, Klosterruine Disibodenberg Odernheim/Glan


Percorri este labirinto no verão passado. Situa-se junto às ruínas do mosteiro onde viveu grande parte da sua vida a compositora, poeta, cientista, artista, mística Hildegarde von Bingen.

Maria João

MARGINAIS #3

Agradeço muito ao João Camilo a continuidade que deu ao diálogo. Li com atenção os seus dois posts sobre esta matéria e revejo-me em muito do que afirma, discordando de alguns aspectos. Talvez a minha posição seja, então, a que o João Camilo já professou. Mas vamos por partes, para tentar simplificar o problema. Continuo a discordar da ideia segundo a qual «se a literatura fosse por natureza marginal não havia tantos escritores». Creio que não existem assim tantos escritores a escreverem literatura, pelo menos segundo os parâmetros que me servem de critério para destrinçar o que é literatura do que o não seja. Existe, sem dúvida, muita gente a escrever. Existe também, sem dúvida, muita gente que escreve e publica livros. Mas não me aprece que sejam assim tantos os que escrevem literatura. Já referi anteriormente que para mim a literatura é uma arte transgressora e, por isso mesmo, transformadora de um dos bens mais preciosos da humanidade: a linguagem. Quando falo de literatura falo de algo que está ao alcance de muito poucos, ou seja, a capacidade de transformar a linguagem, de acrescentar algo à língua em que se escreve, de romper com as normas, os cânones, as regras que permitem, num determinado tempo histórico, rotular com a maior das facilidades o trabalho deste ou daquele autor. Peço desculpa pela repetição, justificada apenas por julgar ser importante a clarificação deste ponto. Que para outros a literatura seja algo diferente, não só não me choca nada como até me agrada e me parece bastante saudável. No entanto, para mim, a literatura é precisamente a arte de escrever reinventando a língua. Caso contrário, ela reduz-se à mera prática da escrita. Arte nobre, por certo, mas não necessariamente literatura. Concordo que exista uma literatura marginalizada, o que não a torna, por si, literatura. Parto de premissas diferentes. Estar convicto de que a literatura é intrinsecamente marginal, no sentido de ser algo à margem das tais normas, cânones, regras, rótulos, etc (de notar que nada disto tem que ver com o facto de ser boa ou má, pois literatura haverá que, intrinsecamente marginal, seja insuportavelmente má), implica estar ciente de que entre as margens corre um tempo sempre em devir. O que faz da margem uma margem não é apenas a existência de um meio, mas antes a resistência aos paradigmas desse meio, a provocação de crises e de conflitos dentro desses mesmos paradigmas, intentando mesmo destruí-los, ou, se quisermos, desconstruí-los na base do único paradigma que considero verdadeiramente literário: o da capacidade de acrescentar algo à língua em que se escreve. Tal tarefa não estará certamente ao alcance de todos os que escrevem. Não confundir, porém, marginalizar um autor, um livro, uma obra, com ignorá-la. Para marginalizar é preciso ter um conhecimento da obra que nos permite colocá-la à margem de alguma coisa, provavelmente o meio. Sem esse conhecimento, limitamo-nos a ignorar a obra. Não creio que isso possa ser confundido com marginalizar. Os gostos e os códigos de cada um, escrevam histórias da literatura ou não, serão apenas critérios para seleccionar, de entre o que existe, aquilo que se quer conhecer e o que não nos importa ignorar, aquilo que se julga ser merecedor de memória e o que não faz mal deixar cair na penumbra. Concordo em absoluto com o João Camilo quando afirma ser esse processo natural: «a sociedade necessita de tranquilizar a dissidência esforçando-se por criar consensos. As divergências assustam-na: há risco de algazarra e confusão. Faz parte da vida em sociedade quererem aqueles que nela têm poder e direito à fala hierarquizar tudo o que nela acontece e estabelecer como "bom" o que corresponde aos valores e ambições dessa sociedade». Sucede apenas que eu não sinto que tenha de estar de acordo com esta natureza das coisas, por isso prefiro considerar literatura o que, num determinado tempo histórico, afronta este estado de coisas, confundindo, divergindo, criando algazarra. Talvez isso explique que eu nunca tenha recorrido a uma história da literatura para seleccionar as minhas leituras (sou militantemente anárquico nestas matérias), talvez por isso eu não seja grande leitor dos suplementos literários que propagam modas e tendências, talvez por isso eu prefira confiar, enquanto leitor, nas minhas mãos, na minha vontade e na minha cabeça (mais na de alguns criteriosos amigos) como único modo de chegar aos livros que pretendo ler, talvez por isso eu não possa falar sobre a grande maioria das obras que deliciam os críticos na actualidade. Não me imagino mais ou menos à margem por isso, mas acredito ingenuamente que tanto no amor como na morte não pode haver obrigação. Assim seja no que mais me aproxima do amor e da morte: a literatura.

18.3.08

Léo Ferré - La Solitude*


* Selecção de Jorge Aguiar Oliveira

ONTEM POR TIMOR, HOJE PELO TIBETE !

Concentração e Vigília em frente à Embaixada da República Popular da China, 4ª feira, 19 de Março, a partir das 18.30
(R. São Caetano, 2, Lisboa, à Lapa)
Está on-line uma Petição para que a Assembleia da República aprove, de acordo com os princípios fundamentais consagrados na Constituição da República Portuguesa, uma moção de censura à sistemática violação dos Direitos Humanos e das Liberdades Política e Religiosa no Tibete, por parte do Governo Chinês. Esta petição já excedeu numa semana as 1600 subscrições e, com a ajuda de todos, chegará às 4000, o que tornará obrigatória a sua discussão na Assembleia da República.

TEORIA LÍRICA (5. política)

1. Não vos peço o voto. Sou um político novo.

2. Vês esta cadeira vazia? É tua, senta-te à mesa. Vieste de longe e enquanto caminhavas eu próprio trouxe a tua cadeira preferida (dá música, é uma grande novidade; gostaríamos que a estimasses pois trata-se de uma cadeira realmente especial)

3. Não acredites ser possível estimar toda a gente; olhaste na ponta dos meus sapatos a flecha de aço. Repara, são redondos precisamente para que não te magoe. Mas diz-me: a tua avó continua a ter frieiras na infância?

4. Ah que inveja tenho da tua liberdade. Continuas a aliar como ninguém uma forte sensibilidade à loucura de uma criança que ultrapassou as asas. Falta-te um lado prático, como sabes, e para remediá-lo dispões-te a experimentar mesmo aquilo que te faz sofrer. Senta-te.

5. Também eu fui tinhoso: conheci os poetas e vi-os em seus círculos redondos a amamentar as crias. Procuravam os inferiores para se sentirem justos ao proporcionarem-lhes o que não merecem; publicavam-se livros muito pobres, não era, e o editor sorria, porque lhe é feito de fracos o céu.

6. Qualquer coisa é verdade se lhe diminuíres suficientemente o universo.

7. E tenho gente ligada umbilicalmente a mim. Tu vais ser lido no futuro, mas a tua biografia pertence-me (mais do que a ti). Detesta-me por isto se quiseres, mas senta-te à mesa. Trouxe esta cadeira para ti, é uma cadeira especial. Dá música; e tu sabes como eu me sinto bem com todas as tuas qualidades.

8. E no alto do mar rodou três vezes, rodou três vezes a chiar e disse:

- Senta-te.



Rui Costa

Um poema* de Paulo da Costa Domingos e uma foto de Jack Spencer


FIM
(DUAS VARIANTES)

Esqueci lágrimas de esmeril, míscaros o
gesto abrasivo
dedilhando fibras suspenso na folhagem.
Rocha rugia pelas ravinas de dentro e a linfa
dançou-me à margem do rio. Esqueci esqueci
superiores instantes de olaria e
cal. Amável.
Calo certo ódio retroactivo
por fazendas mal-cheirosas.


ou


Enxofre caixões tulha de adivinhação cáustica
«não selem, não selem já o galope volátil»
que o tempo se instalou nos ossos da desordem,
mentira útil o poder às tenças da pele.
Pérola d'acção
psicológica. Nunca esqueçam—
melhor se limpa o sangue
em águas
mornas.




* Selecção de Jorge Aguiar Oliveira

ESTA DEMOCRACIA DE PAPEL

In Daedalus:
Daniel Oliveira, no Expresso, chamou «palhaço» a Alberto João Jardim*. O jornalista foi condenado a pagar dois mil euros a Jardim por difamação. O presidente do Governo Regional da Madeira não se coíbe de dizer o que pensa dos jornalistas do continente: são uns «bastardos». Edite Estrela é uma «delinquente» e José Sócrates uma «barata mentirosa». Eu podia continuar mas acho que vocês já perceberam. Alberto João Jardim nunca foi julgado por difamação, a imunidade que o cargo lhe confere é deliciosa, conveniente. Eu acho que é obscena. Enfim, quando alguém que passa a vida a insultar os outros acaba por ganhar um processo de difamação em tribunal cai a máscara da decência à democracia mexicana, de plástico, que os «pais da liberdade» nos legaram.
*Se eu tivesse dois mil euros para malbaratar, escrevia aqui que o epíteto dispensado a Jardim lhe assenta na perfeição. Como não tenho, não escrevo nada.


Subscrevo integralmente as palavras de Francisco Curate e faço uma proposta: contribuirmos todos com moedinhas de 1 cêntimo para que o Daniel Oliveira possa pagar os 2000 euros num saco com moedinhas de 1 cêntimo a sua excelência o reverendíssimo e magnificente presidente do Governo Regional da Madeira. É quanto ele vale: um cêntimo de todos nós. E parabéns, mais uma vez, à democracia portuguesa.