17.4.08

Labirinto #22

quando o dia rompeu, continuámos o caminho, eu e ela. a
paisagem foi ficando mais clara. o céu, o horizonte, as
casas. dentre as casas, uma casa. uma casa larga, baixa,
branca, com três janelas. uma dentre as janelas. a
do meio. dentro dela uma sala. uma sala ainda na penumbra.
e na penumbra da sala dentro da janela, eu e ela, eu e
a minha memória, reconhecemos: eu e ela. ela sentada no
chão, e apoiada no cotovelo. eu sentado em frente dela.
ela sentada em frente de mim, apoiada nos olhos
dela. era quanto víamos do lugar em que estávamos, eu
e ela, eu e a minha memória. e se por um instante tínhamos
pensado ter chegado ao fim do caminho, eu e ela, eu e a
minha memória, logo verificámos, que era preciso
continuar, entrar dentro de mim e ela dentro dela, e eu dentro dela e
ela dentro de mim. e no céu reflectido no vidro da jan
ela passava, brusca e leve, entre mim e ela, entre as
minhas mãos e as mãos dela, uma nuvem brusca e leve,
entre as minhas mãos e as mãos dela, mas não sabíamos
se era uma nuvem que passava agora ou uma nuvem que
passara então, entre as minhas mãos e as mãos dela, uma
pequena nuvem, brusca e leve. e tudo o que se passava era
para lá do vidro dessa janela, num eco vindo de lá dessa
janela, entre mim e ela, como podíamos ver e ouvir, eu e
ela. havia portanto que avançar, que atravessar aquela
janela, para eu entrar em mim e ela entrar nela, e para
eu entrar nela e ela entrar em mim. assim atravessámos a
janela, eu e ela, e eu fui colocar-me dentro de mim
sentado diante dela, e ela foi-se colocar dentro dela,
sentada diante de mim. porém, por estranho que pareça,
trocávamo-nos com as mãos e não nos sentíamos, movíamos
a boca e não nos escutávamos, nem eu a ela nem ela a mim,
e assim foi algum tempo ainda e algum tempo ainda
continuou a ser. até que depois, quando o dia rompeu e
acordei do costumado sonho, senti que para alguma vez a
sentir, para alguma vez a escutar, e para alguma vez me
sentir, para alguma vez me escutar, tinha que recomeçar,
na noite seguinte tinha que recomeçar, tinha que recomeçar.

Alberto Pimenta, Ascensão de dez gostos à boca, Coimbra 1977.

Maria João