27.6.08

A EXPLICAÇÃO DOS PÁSSAROS

Parece haver quem não tenha apreciado, ou julgado de mau gosto, a inclusão na “série dos casais” (chamemos-lhe assim) da fotografia do ditador Adolf Hitler com a senhora dona Eva Braun. Hitler é sempre uma personagem melindrosa, tenho consciência desse facto. Por isso deixei um comentário a tentar explicar a minha opção, comentário esse que recupero com alguns acrescentos: a intenção não é meramente provocatória. Seria infantil se assim fosse, pelo menos tanto quanto pensar poder haver da minha parte uma tentativa de branqueamento do que quer que seja. A minha intenção também não é, como foi sugerido, dizer da “fotografia enquanto ferramenta de reprodução da SUPERFÍCIE da realidade”. Apenas me interessa o gesto, aquela fracção de segundo que documentou um gesto, um gesto bem real que pode nada dizer acerca da realidade mas revela, no limite, a presença de algo que é indisfarçável - dê-se a esse algo o nome que se quiser. No caso específico da fotografia do ditador, esse algo adquire contornos ásperos e inquietantes devido à história sangrenta que associamos àquele homem ali curvado perante uma mão feminina que se lhe entrega. Que aquele homem esteja curvado perante tal estímulo é o que mais me interessa naquela fotografia. Que o ditador se curve para beijar a mão da amada é o que me interessa. Mas podemos pensar igualmente noutras fotografias que tenho por aí deixado: podemos pensar nos miolos estourados de Kurt Cobain, no sofrimento íntimo de Sylvia Plath, nos atropelos criminosos da firma Bonnie & Clyde, na tragédia em que descambou a relação de Oscar Wilde com Lord Alfred Douglas, etc, etc, etc. O que me interessa em todos estes pares é o gesto captado pela fotografia, o momento específico de uma espécie de revelação que está, provavelmente, para lá da nossa capacidade de compreensão. E se a fotografia é, sem dúvida, (l)imitadora da nossa percepção sobre a realidade, também é, penso eu, reveladora de uma “energia vital criadora” à qual alguns gostam de chamar amor.

21 Comments:

At 5:27 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Repito o comentário, e desculpa se estou a ser chato:


Estás a esquecer-te de uma coisa. O homem na fotografia é um político, e um dos políticos do século xx que mais apostou na técninca antipolítica da propaganda. O que a fotografia documenta é um gesto sim, mas de propaganda, uma encenação, pois num político toda a imagem é encenação, e mais ainda no caso de um ditador, que contava entre os seus ministérios com um ministério da propaganda. Em resumo: esta imagem não é inocente, como tu (ingenuamente, desculpa) pareces acreditar.
jms

 
At 5:40 da tarde, Blogger hmbf said...

Não tens que pedir desculpa. E eu, mais uma vez, te agradeço o comentário. Também não está a ser chato e as questões que levantas são muito pertinentes. É óbvio que aquela, como outras, não serão fotografias inocentes, serão, ou não, encenações. Podemos dizer o mesmo de muitas destas fotografias. Por exemplo, a do John Lennon com a Yoko Ono. Serão também encenações com objectivos diferentes. Mas é por isso que devemos deixar de as considerar? O gesto que aquela fotografia capta, inocente ou não, propagandístico ou não, encenado ou não, é um gesto bonito. Que esse gesto tenha como protagonistas um ditador e a sua mulher, desculpa-me que o diga com toda a franqueza, comove-me ainda mais. Isto por uma única razão: o homem está curvado sobre a mão da amada. Pensar nessa possibilidade, ainda que consciente da sua improbabilidade, não passará de um devaneio infantil e ingénuo. Mas talvez o amor seja assim mesmo. Aliás, como toda a arte. Ou talvez não. Essa seria outra discussão.

 
At 6:06 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Eu acho uma boa notícia que Hitler ou seja quem for seja capaz de amar alguém. Isto é: se é que ele foi capaz. Mas, claro é uma coisa que nunca poderemos saber, faz parte do foro íntimo de cada um. Como a Maria João disse Picasso foi um sacanóide. Mas na fotografia não parece, a segurar assim o guarda-sol para alquela mulher que vai à frente, quase a dançar.
Que importa? Nas fotografias estamos quase sempre felizes, quando enfrentamos a máquina é quase sempre encenado. Algumas ficam melhores que outras, eu prefiro as melhores às piores. Agora, que não podemos traçar a história de uma vida a partir de um álbum de fotos, isso parece-me certo.

 
At 6:12 da tarde, Blogger maria pragana said...

Que Hitler foi um monstro, já todos sabemos e ninguém esquece. Mas até os monstros são pluridimensionais. Fixar alguém numa única dimensão, por mais cómodo que seja ou por mais justo que possa parecer, é que é ingénuo. Dentro das concavidades de cada um (no peito, no crânio, cada um escolha a localização que lhe aprouver), há uma miríade de sentimentos que, mesmo que possam ser contraditórios, não se excluem. Admitir isso parece-me de uma grande lucidez.

 
At 6:25 da tarde, Blogger MJLF said...

A fotografia “encenada” de Yoko Ono e John Lennon é da autoria de Annie Leibovitz, que pelos vistos não se fotografou ao junto da sua amada Susan Sontag. :)
O gesto de Hitler perante a sua amada (encenado ou não) recordou-me a presença da música nos campos da morte, leva-me a reflectir sobre o que é a espécie humana à qual todos pertencemos, levanta-me questões se calhar sem resposta. Boltanski, que é um artista que admiro muito, tem-nos questionado através de imagens estas feridas, sinto que o gesto do Henrique é semelhante: http://antologiadoesquecimento.blogspot.com/2007/01/perguntar-ofende-1.html

http://antologiadoesquecimento.blogspot.com/2007/01/perguntar-ofende-2.html

A visão do jms recorda-me " O Visconde cortado ao meio" de Calvino. Nem tudo é a preto e branco nos seres humanos. As personagens femininas nessa novela relativisam o bem e o mal, assim como aqui :)

Maria João

 
At 7:16 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Por falar nisso, o Barão Trepador subia às arvores porque dali podia mijar mais alto. É tudo uma questão de prespectiva, e a fotografia é boa.

 
At 7:28 da tarde, Anonymous Anónimo said...

http://ideiafix.blogs.sapo.pt/arquivo/salaz02.gif

salazar e christine garnier.

 
At 7:36 da tarde, Blogger Filipe Guerra said...

Não sei qual é o mal, 68 anos depois de o ditador nazi ter desaparecido. Hitler tinha aquela amante, toda a gente sabe, quando muito trata-se de uma boa fotografia «histórica», por um lado; por outro é propagandística, como quase tudo, mas para o lado que se quiser, não vai alterar os factos históricos: quem for nazi acha que o Hitler era amoroso ao olhar para aquela fotografia amorosa; quem for antinazi vê que os criminosos também amam, e não é por isso que vai mudar de ideias ou de política. Acho mais grave, isso sim, querer-se cercear ou impor a proibição da arte ou de objectos de comunicação, sejam eles quais forem. Lembrei-me agora que o Jorge de Sena, um antinazi conhecidíssimo, escreveu um conto - não me lembro o nome - todo ele baseado no ponto de vista do oficial nazi (e na ideologia nazi) sediado na Ucrânia ocupada. Jorge de Sena mostra o outro lado, é essa uma das funções da arte.

 
At 11:28 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Claro que a foto não é inocente. Hitler tinha uma relação estável
com a fêmea de outra foto (http://www.fpp.co.uk/Hitler/images/dogs/
Hitler_w_Blondi_550.jpg).

Esta (do Insónia) foto vale como
amostra de fingimento (eles até podem estar a fingir
que estão a fingir), e pode ser postada e analisada sob várias
perspectivas, incluindo a artística.

Rui Costa

 
At 12:11 da manhã, Blogger hmbf said...

Sara, não podemos traçar a história de uma vida a partir de um álbum de fotos mas podemos pensar uma história a partir de uma fotografia.

Maria Pragana, gosto dessa ideia dos monstros serem pluridimensionais.

Etanol, a presença da música nos campos da morte também é uma imagem muito forte.

José S., neste caso talvez tudo seja mesmo uma questão de perspectiva.

Anónimo, e por que não?

GAF, não conheço esse conto. Mas gostava de conhecer.

Rui, se as feministas cá do burgo te caírem em cima é bem feita. :)

 
At 12:25 da manhã, Anonymous Anónimo said...

caro hmbf,

a propósito da energia vital criadora que está por aqui a crepitar nos dedos de Glenn Gould, queria só sugerir a inclusão nesta série de uma fotografia do casal Guilhermina Suggia e Pablo Casals, geniais músicos e violoncelistas, ela portuguesa e ele espanhol.
Como se sabe, seguiram mais tarde caminhos diversos, mas o tal gesto penso que foi documentado.

Quanto ao Hitler e a Eva Braun acho interessante ver ou rever o filme "Der Untergang" (2004), baseado no diário da última secretária do Hitler em 1945, Traudl Junge. Nesta versão que decorre nos seus 3 últimos dias de vida- Adolf e Eva-, os opostos e as coincidências do bunker berlinense dão azo a estas fotografias e outras.

SL

P.S.Casals também tocava Bach genialmente...

 
At 12:30 da manhã, Blogger hmbf said...

SL, o casal Suggia/Casals já estava em lista de espera, sugerido pela nossa mui extremosa colaboradora Maria João. Agradeço na mesma a lembrança. Já há foto a aguardar um bom dia, uma boa noite. E esse filme é, sem dúvida, uma boa sugestão.

 
At 12:56 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Este é um blog que acho interessante. Mas para ser franco a arrogância recrudescente do teu discurso impressiona-me. Hitler é o menos. Deverias atentar na forma como dizes as coisas, deter-te mais tempo nelas antes de as dizeres. O meu conselho, mesmo que gratuito, é que repenses o processo criativo inerente à tua escrita. Porque te alimentas excessivamente da cultura, o que escreves parece sempre algo reciclado, já bastante mastigado... não por ser o mesmo, mas por derivar excessivamente daquilo que os outros fazem, daquilo que os outros produzem. Enfim, por parecer quase sempre uma reacção ao alheio, o que é uma falsa independência.
Mas eu tendo a pensar no crítico de arte como um parasita, o que talvez não seja totalmente justo.

 
At 1:43 da manhã, Blogger hmbf said...

Caro umleitorquevaiescrevendo, muito obrigado pelo seu comentário, pelas suas preocupações e angústias, pelas sugestões. Que a "arrogância recrudescente do meu discurso”, esteja ela onde você a encontrar, não o fira a si nem a ninguém é o que mais desejo. Quanto a ter tento na língua, não imagina você o quanto me incomodam os maxilares de tanto os conter. Ah! Eu sei tanto de tudo o que o nada é, eu sei tudo, eu sou um Deus, tu és uma criação minha… Só não me peçam o calculismo e a prudência dos desapaixonados, vivo bem com a morte por perto. O "meu processo criativo" é a ausência de processo. Sou um génio, a imperfeição perfeita em pessoa, eu alimento-me da cultura. Nhac, nhac… Eu arroto a cultura e sempre que faço cocó há uma cultura imensa a sair de dentro de mim, eu regurgito cultura. E tenho amigos que se masturbam a pensar nas mulheres dos outros, sempre muito dependentes da sua independência. Eu quero é amar, homem. O resto é-me um dia atrás do outro. Mas agradeço a provocação do seu comentário, sinceramente. É sempre consolador saber que há algures um anónimo gratuitamente apaixonado por nós.

 
At 3:58 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Dirijo-me a ti na segunda pessoa, se não te importares. Penso que é mais sincera... Quer dizer, não me parece saudável uma tal derisão para contigo mesmo (para comigo não me importo), cheia de meias-verdades. Eu não queria ser impertinente, mas também não sou manso. Assim como a paixão não exclui a razão. Ora, há sempre um processo, mesmo que seja inconsciente. Por vezes temos de obrigar-nos a mudar de direcção. Como eu disse, acho este blog interessante e gosto de acompanhá-lo, mas não resisti a pronunciar-me (de resto, a minha influência é nula). Compreendo que o que torna este blog tão estimulante é o ritmo que nele se impõe: decerto se tornou já natural... Mas é um ritmo que eu imagino mais fabril do que febril, apaixonado.
Suponho que a questão é se de facto és um criador ou apenas um funcionário... pareces-me dividido. Não que definires-te seja fundamental... Mas a boa arte nasce quase invariavelmente de um grande esforço consciente, deves ter ao menos consciência disto. Para haver reflexão é preciso tempo (que nem sempre há, eu sei). E eu não investirei contra o crítico de arte, desde que ele saiba onde é que fica na cadeia alimentar.

 
At 9:50 da manhã, Anonymous Anónimo said...

hmbf, encontrei: o livro é Antigas e Novas Andanças do Demónio, Ed. 70, 1984; o conto, pp. 171-183, é «Defesa e Justificação de um ex-criminoso de guerra».
gaf

 
At 11:57 da manhã, Blogger hmbf said...

Muito obrigado GAF, acho que tenho esse por aqui.

 
At 11:49 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Gaf

Primeiro, parece-me de um lirismo absurdo concluir, a partir daquela fotografia que Hitler "também amava". Se ele amava ou não, nenhuma fotografia do mundo no-lo poderia revelar, pois não há nada mais fácil, em fotografia, do que encenar sentimentos. Há fotografias que provam acontecimentos (desde que acreditemos que não foram manipuladas), mas dificilmente uma fotografia serve para provar a existência de um sentimento.
Em segundo lugar, mesmo que a fotografia provasse que hitler também amava, que importância tem "o amor" em quem, directa ou indirectamente, foi responsavel pela morte de uns 50 milhões de pessoas? Será que o seu "amor" por uma ou por dez pessoas redime o seu ódio por 98 % da humanidade? Se a fotografia provasse que hitler também etc, provaria o quê? Que afinal hitler era um bom homem que, enfim, também tinha os seus defeitos? Que hitler era um ser monstruoso mas não a 100%? Bom, acredito que as suas vítimas morreriam muito mais descansadas se tivessem sabido que afinal o verdugo era um bom marido... A verdade é que esta foto é um atentado e um insulto à memória dos milhões de vítimas do nazismo, e não há álibi retórico que o passa negar.
Por fim, não deixa de ser também algo chocante o facto de a fotografia do casal de pombinhos exterminadores aparecer numa série de amorosos no terreno das artes. Eu sei que os artistas não são necessariamente anjinhos, mas também não é preciso exagerar. A não ser que consideremos que o hitler era também, à sua maneira, um artista...
jms

 
At 12:26 da tarde, Blogger hmbf said...

JMS, bem sei que o comentário não me é dirigido mas não posso deixar de manifestar a minha inquietude com o teu comentário. Todas essas questões me passaram pela cabeça, acredita. Sinto-me tanto mais incomodado quanto reescrevi um poema a partir dessa fotografia. Julgo mesmo que tu estás cheio de razão em muitas das questões que colocas, mas, como deves imaginar, a intenção não é branquear o criminoso, não é insultar a memória de milhões de vítimas do nazismo, não é considerar o ditador um artista, não é desculpabilizá-lo, não é redimir-lhe o ódio, não é desresponsabilizar, se assim posso dizê-lo, a consciência história… Tu perguntas, e muito bem, «mesmo que a fotografia provasse que hitler também amava, que importância tem "o amor" em quem, directa ou indirectamente, foi responsável pela morte de uns 50 milhões de pessoas?» Eu acho que o amor tem sempre toda a importância, mas eu sou, como já deves ter reparado, um lírico. Neste caso específico tem a importância que um filme recente sobre o ditador tem, mostrar que ele é humano, que não é um monstro, que os seres humanos são capazes das maiores atrocidades e, no entanto, tem a sua vidinha doméstica, os seus gestos de afecto. Não deixa de ser humano, por ter sido quem foi. É bom que nos lembremos disso, porque o que não falta por aí é quem procure desculpabilizar as suas políticas falando de caso excepcional, de monstro, de fantasma, de demónio na terra. Mas repito, acho que tens muita razão em algumas questões que estás a colocar. No entanto, a mim só me passou pela cabeça aquele gesto que a fotografia regista: o ditador curvado sobre a mão da amada. Foi só isso. Independentemente dos personagens em causa, tu não vês beleza naquele gesto? Ou não te consegues abstrair das personagens? Quando olhas uma fotografia, uma obra de arte, um poema, pensas em quê? Quando olhas o Mao Tsé-Tung do Andy Warhol, vês um trabalho do Andy Warhol ou vês o Mao Tsé-Tung?

 
At 1:59 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Henrique, o filme de Sokurov sobre Hitler é excelente. Houve quem tivesse visto nessa reflexão por imagens uma espécie de "branqueamento" do ditador, mas eu não vejo isso no filme, o que vejo é o retrato do declínio de um mito; uma representação da sua, por assim dizer, "humanização" (com todo o processo de decadência física e mental).
Quanto ao Andy Wharol, limitou-se a reproduzir em serigrafia um ícone, sem qualquer tipo de mediação ou de reflexão, mas o wharol nunca passou de um troca-tintas acéfalo e de um business-man, acho eu, pelo que dele não se esperaria outra coisa.

Não veria beleza naquele gesto tão convencional e amaneirado mesmo que fossem outros os personagens, mas a questão não é essa. A questão é que não acho que possamos "abstrair", como dizes, nem hoje nem daqui a 500 anos. Se um dia encontrar o Genghis Khan no inferno, por exemplo, podes crer que lhe vou às trombas, por muitos 500 anos que tenham passado.
jms

 
At 4:28 da tarde, Blogger almariada said...

hi(t)lariante irrepreensível

 

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