29.7.08

TUDO SOBRE O AMOR

«O cinismo disse, ou pretendeu dizer, tudo sobre o amor: ou seja, que se trata de uma copulação de máquinas orgânicas e sociais em grande escala (no fundo do amor, os órgãos, as determinações económicas, o dinheiro). Mas o que é típico do cinismo é pretender fazer um escândalo de algo que não é escandaloso, e de se fazer passar por audacioso sem qualquer audácia. Antes o delírio do bom senso que a sua estupidez. Porque o que salta logo à vista é que o objecto do desejo não são pessoas nem coisas, mas meios inteiros que ele percorre, vibrações e fluxos de qualquer tipo a que ele se une, introduzindo nele cortes, capturas, um desejo sempre nómada e migrante, cuja principal característica é o «gigantismo»: foi o que exemplarmente mostrou Charles Fourier. Em suma, tanto os meios sociais como os biológicos, são objecto de investimentos do inconsciente, necessariamente desejantes e libidinais, que se opõem aos investimentos pré-conscientes de necessidade de interesse. A líbido como energia sexual é directamente investimento de massas, de grandes conjuntos e de campos orgânicos e sociais. Não percebemos bem em que princípios é que a psicanálise apoia a sua concepção do desejo, quando supõe que a líbido tem que se dessexualizar e até que se sublimar para proceder a investimentos sociais, e que, inversamente, só no decurso de processos de regressão patológica é que os re-sexualiza. A não ser que o postulado dessa concepção seja ainda o familiarismo, que defende que a sexualidade só opera em família, e que tem de se transformar para investir conjuntos mais vastos. Mas na realidade a sexualidade está em todo o lado: no modo como um burocrata acaricia os seus dossiers, um juiz faz justiça, um homem de negócios faz circular o dinheiro, a burguesia enraba o proletariado, etc. E não é preciso recorrer a metáforas, tal como a líbido não recorre a metamorfoses. Hitler entesava os fascistas. As bandeiras, as nações, os exércitos e os bancos fazem tesão a muita gente. Uma máquina revolucionária não é nada enquanto não adquirir pelo menos tanto poder de corte e de fluxo como estas máquinas coercivas. Não é por extensão dessexualizante que a líbido investe os grandes conjuntos, mas sim, ao contrário, por restrição, blocagem e rebatimento ela é determinada a recalcar os seus fluxos para os conseguir reter em células estreitas do tipo «casal», «família», «pessoas», «objectos». E é evidente que essa blocagem está necessariamente fundamentada: a líbido só passa para a consciência se estiver relacionada com um corpo qualquer, com uma pessoa qualquer que ela toma como objecto. Mas até a nossa «escolha de objecto» remete para uma conjunção de fluxos de vida e de sociedade que esse corpo, essa pessoa, interceptam, recebem e emitem, sempre num dado campo biológico, social, histórico, no qual também nós estamos e com o qual comunicamos. As pessoas que amamos, inclusive as pessoas parentais, apenas intervêm como pontos de conexão, de disjunção e de conjunção de fluxos cujo teor libidinal de investimento propriamente inconsciente traduzem. Sendo assim, por muito fundamentada que esteja a blocagem amorosa, ela muda de função conforme conduza o desejo para os impasses edipianos do casal e da família ao serviço das máquinas repressivas ou, pelo contrário, condense uma energia libidinal capaz de alimentar uma máquina revolucionária (e foi ainda Fourier que compreendeu tudo isso, ao indicar as duas direcções opostas da «captação» ou da «mecanização» das paixões). Mas é sempre com mundos que fazemos amor. E o nosso amor dirige-se à propriedade libidinal que o ser amado tem de se fechar ou abrir a mundos mais vastos, massas e grandes conjuntos. Os nossos amores têm sempre algo de estatístico, e das leis dos grandes números. E não será assim que é preciso entender a célebre fórmula de Marx: a relação do homem e da mulher é «a relação imediata, natural e necessária do homem com o homem»? Ou que a relação entre os dois sexos (o homem com a mulher) é unicamente a medida da relação de sexualidade em geral enquanto investe grandes conjuntos (o homem com o homem)? E assim se percebe aquilo a que se chamou a especificação da sexualidade nos sexos. E não se deveria também dizer que o phallus não é um sexo, mas toda a sexualidade, isto é, o signo do grande conjunto investido pela líbido, donde derivam necessariamente ao mesmo tempo os dois sexos, tanto na sua separação (as duas séries homossexuais do homem com o homem, da mulher com a mulher) como nas suas relações estatísticas no seio desse conjunto?»

Gilles Deleuze, Félix Guattari, O Anti-Édipo - Capitalismo e Esquizofrenia, trad. Joana Moraes Varela e Manuel Maria Carrilho, pp. 304-306, Assírio & Alvim, Lisboa, 1995.