31.10.08

ASSALTO AO TESOURO DE MADAME MM /37


Jorge Aguiar Oliveira

30.10.08

ASSALTO AO TESOURO DE MADAME MM /36


Jorge Aguiar Oliveira

CATÃO

A pátria é triste. Sofro. Estou calmo.
Único honesto, entre desonestos, clarividente,
entre os cegos, a indignação há muito acalmo.
Estou só. Sofro quando ninguém sente.
A honestidade ― que solidão! A coragem cansa.
Em breve, cadáver que a outros mortos fala,
penso em Atenas, plena de alegria mansa,
e no coração afogo palavras que o pudor cala.
Estou cansado de prever o negro acontecer.
Algo nasce. Algo morre. Com quem perde, estou.
Honestidade é pátria de quem outra não sabe ter.
Ao abismo das causas perdidas, quieto, vou.
Melhor do que ocupar-me da minha pobre vida,
agora que os pássaros a cantar começam,
na espada pego, com mão há pouco ferida
― o ventre rasgo. Percebo que meus pés tropeçam.


Lourenço Marques, 7.2.75


Eugénio Lisboa nasceu em Lourenço Marques, em 1930. Licenciou-se em 1953 em Engenharia Electrotécnica, pelo Instituto Superior Técnico. Ensaísta e crítico literário, leccionou Literatura Portuguesa na Universidade de Maputo (Moçambique), na Universidade de Estocolmo (Suécia) e na UNISA (África do Sul). Foi Conselheiro Cultural da Embaixada de Portugal em Londres e docente do King´s College. Co-dirigiu com Rui Knopfli cadernos literários de jornais tais como A Tribuna e A Voz de Moçambique. O poema aqui apresentado foi respigado no livro Matéria Intensa (Instituto Camões, 1999).

LABIRINTO #30

s/ titulo, acrilico s/papel, 21x30cm, 2008

Maria João

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29.10.08

ASSALTO AO TESOURO DE MADAME MM /35


Jorge Aguiar Oliveira

APRENDER A CONTAR #35

HISTÓRIA DE AMOR
(I)

Era uma vez uma Ela e um Ele e sabe Deus quantas mais personagens secundárias, que, consideradas sob outra perspectiva, podiam bem ter sido protagonistas; nesta história, porém, são personagens secundárias, o que nos faz muita pena, e pelo facto apresentamos as nossas desculpas. Voltando aos nossos dois heróis e à nossa história de amor, que é uma história muito simples, teríamos a dizer que ele gostava muito dela, por assim dizer, de todo o coração, e que por sua vontade se casaria de imediato com ela, com o profundo desejo de a fazer feliz, bem como a si próprio, que é um desejo que tem sido desejado desde que há homens no mundo. Só que havia um obstáculo, e o obstáculo era este: aquela que ele amava e que desejava tomar como esposa era sobremaneira irascível, tendendo infelizmente a zangar-se por tudo e por nada com grande precipitação, o que não lhe agradava nada, e a ela porventura também não. Parecia ser uma fraqueza dela, que ela provavelmente teria preferido que passasse a ser uma força; infelizmente, porém, a sua fraqueza revelou-se forte, ao passo que a sua força se mostrava bastante fraca, um facto que tanto ela como ele, que em tudo mais a prezava, estavam em posição de lamentar, dito de outro modo, tinham bons motivos para deplorar. Ela tinha um rosto e um porte magníficos, de um esplendor esbelto, para nos servirmos desta expressão enquanto não nos ocorrer nenhuma melhor. A inspiração é rara, e os autores têm de contentar-se com o pouco de espírito que o destino clementemente lhes concede. Se ela era grande e imponente, oh decerto, mas assim que se zangava, a sua beleza quebrava-se e perdia-se, e isso mesmo intuía com consternação aquele que em tudo o mais a admirava, e foi armado com esta intuição que, certo dia,
assim por volta das cinco da tarde, ele lhe disse, em tom confidente e explicativo: «Ouve, meu amor, caso-me contigo e sirvo-te o resto da vida, desde que consigas refrear por um ano inteiro esse teu mau génio, que tanto te diminui quando te domina.» Foi a sorrir que disse estas palavras, como um homem satisfeito com a sua coragem, e com efeito uma declaração tão sincera requer bravura. Isso qualquer um percebe. E ela, acatou o que ele disse? Sim, foi isso mesmo que ela fez, e resta-nos apenas supor que tenha dado provas de grande brandura e paciência, que tenha florido como uma flor na Primavera, e que, findo o período de prova, se tenha mostrado tão amável, revelando tão grande sossego por dentro e saúde por fora, que desse gosto olhar para ela, ocupação a que se terá dedicado com grande atenção aquele que, supomos nós, agora se alegrava com o resultado e se decidia a cumprir a sua palavra. Ao certo, ao certo, não sabemos nada; temos apenas a esperança de que tudo tenha corrido pelo melhor, o que nem sempre é o caso, mas uma vez por outra também pode suceder, e é com esta esperança que pomos a história dentro do cofre onde ela pertence, fechamos a porta e nos regozijamos com o seu valor que, se não é grande, será ao menos modesto.

Robert Walser (1878- 1956), Histórias de Amor, trad. Isabel Castro Silva, Relógio D’Água, pp. 179-180, Abril de 2008.

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ASSALTO AO TESOURO DE MADAME MM /34


Jorge Aguiar Oliveira

28.10.08

O MAIS IMPORTANTE NÃO É O MELHOR #2

O inquérito a “escritores, críticos e jornalistas da área da cultura” prossegue a bom ritmo. Depois de Frederico Lourenço e Luís Mourão responderam Nuno Júdice e Rui Lage. Nuno Júdice gosta de livros autografados. O poeta, ficcionista ensaísta e professor universitário português, cita Os Passos em Volta, de Herberto Helder, como melhor livro de ficção. Parece-me uma óptima escolha. Já no que respeita à poesia, fiquei algo sem saber como. Sou dos que desconhecem Memória dum Pintor Desconhecido, de Mário Dionísio, embora me agrade saber que o meu desconhecimento contribui para que este livro seja melhor que outros. Já os mais importantes são Aparição, de Vergílio Ferreira, e Homem de Palavra(s), de Ruy Belo. Li os dois. O mais engraçado nestas escolhas é Vergílio Ferreira voltar a ser mencionado. Para o bem ou para o mal, o autor de Para Sempre parece estar em todas. Vem Rui Lage estragar a festa, com respostas estilo lençol e um argumentário de fazer inveja a poetas, ficcionistas, ensaístas e professores universitários portugueses com ou sem franja. As respostas deste cowboy da novíssima poesia lusitana reiteram Livro do Desassossego como o Livro que muitos desassossega, talvez por ser tão difícil classificá-lo de ficção. No entanto, sublinhe-se a opinião do poeta: Nem romance, nem conto, nem novela, nem ensaio, nem diário mas uma espécie de milagre que não mais voltou – nem voltará – a repetir-se, o Livro do Desassossego é a obra “melhor” e “mais importante” do século XX português. E europeu. Caralho, eu próprio, que sou um génio, não diria melhor. Quanto a poesia a escolha foi para Limite de Idade, de Vitorino Nemésio, poeta justamente lembrado num meio que tanto o tem esquecido. É daqueles casos que nos mete a pensar, coisa rara e difícil. Talvez lhe falte a atenção dos canonizadores para que possa deixar de ser apenas o melhor e passar a ser, pelo menos, um dos mais importantes. Fica sempre bem, dá saúde, e faz crescer. Na vida e na morte, como na memória e no esquecimento. Nemésio é, sem dúvida, um grande poeta. E Limite da Idade, a da Semântica Electrónica, do Cão atómico e d’O Cavalo Sidério, um livro de fazer inveja a muitos outros. Nos melhores é que a porca troce o rabo. Lage deixa de lado a ficção, anteriormente resolvida com o desassossego pessoano, e concentra-se nos poemas. Que as “Odes” de Álvaro de Campos e seus respectivos netos isto, que Alberto Caeiro e seus muitos filhos aquilo, que os pais adoptivos e os pais biológicos não sei quê, que Schopenhauer – olé - preferia o conceito de entidade ao de verdade e isso explica uma putativa desistência do mundo essencial já que à verdade não acederemos senão confiando desenganadamente nas ilusórias aparências. Ufa! Ora, eu cá estou convencido, porque disto nada percebo a disto tudo falo, que há uma essência na maçã contaminada do Edén que nem a sua bela aparência logra fazer esquecer. Por isso a não como se me for possível evitá-la. Mas depois Gadamer entra na peleja, porque já não bastava o Arthur, e as Teorias da História aí estão para nos atazanarem o juízo. Penso nisto: É o grande senão dos cânones: a sua existência dentro da História, que se move e nos arrasta com ela, é uma contradição. De tempos a tempos, o cânone sai desautorizado. Mas enquanto isso não acontece, morde, provoca comichões. Desde cedo afectado pelo pé-de-atleta, sugiro uma pomadinha Canesten contra as comichões provocadas pelo fungo canónico. A ele se devem vítimas, diz Lage, como Eugénio (nos anos 80), Herberto (nos anos 90) e só o Deus Cânone saberá quantos mais. Decepcionante, esta resposta do poeta Lage. Mais valia não ter respondido a responder não respondendo. Sobre o assunto postarei uma laje não sem antes acrescentar Condorcet, dito António Nicolau: «os homens conservam ainda os erros da sua infância os do seu país e do seu século, muito tempo depois de terem reconhecido todas as verdades necessárias para os destruir». Alguém duvida que, perante isto, o mais importante poeta do século XX português foi mesmo Luís Vaz de Camões mascarado de Bocage a galar Florbela Espanca numa discoteca de Matosinhos?
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APRENDER A CONTAR #34

QUASE-TISANA N.º RL-24.X

Era uma vez um pé de lápis. Saído de casa de manhã encontrou um sapato. Surpreendido pela estranha forma disse para consigo: que será isto? Estacou diante do sapato e começou a rodeá-lo, da direita para a esquerda, da esquerda para a direita, depois para cima, depois para baixo. Mas para dentro? Aí o lápis quis dobrar a cabeça. Mas não via nada. Recomeçou a rodear o sapato dando voltas sobre voltas. Mas para dentro? Recomeçou da direita para a esquerda, da esquerda para a direita, subindo aos poucos pelo corpo do sapato. Começou a estar estonteado. Para dentro, dizia, para dentro. E continuava às voltas, às voltas, às voltas. Até que por fim, exausto, caiu no chão. Atordoado ia fechar os olhos quando viu que estava dentro de água. Dentro de água? À sua volta flutuavam inúmeros outros lápis emergindo nos mais variados ângulos. Eram muitos lápis. Como? ― disse para consigo ― então sou tantos? Olhou para cima e viu o sapato. Ao erguer os olhos ergueu também a cabeça, mas todos os outros lápis se ergueram ao mesmo tempo, possuídos de uma flexibilidade amolecida que a tontura colectiva não chegava para explicar. Erguiam-se como ondulantes fitas, mas não ondulantes: coleantes. Era um erguer de rastejar. Começaram subindo pelo sapato. Ascensão sinuosa, achatada. O sapato era enorme, acidentado. Agora todos os lápis gritavam: Para cima! Para dentro! Um exército de ondulações, tacteantes, platelmintes de lábios pintados. Para cima! Para dentro! Os lápis subiam de cores. Para cima! Para dentro! O bordo do sapato. Bastante estreito. Inesperado para os lápis, no seu esforço de subida. O impulso fora em excesso. Agora as cabeças pendiam para dentro mas para baixo. Pendiam exaustamente desordenadas. Era uma dentadura mole da fenda. Para dentro era fora. Um instante de reflexão e todos os lápis escorregam pelo sapato fora. O sapato flutuava coberto de marcas da passagem dos lápis desaparecidos.

Ana Hatherly (1929), 463 Tisanas, Quimera, pp. 173-174, 2006.

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LIDOS OU RELIDOS EM 2008 (6)

“Breve história do progresso”, Ronald Wright, Dom Quixote (2006)


Amy Whinehouse, antes de ler.


1. Ronald Wright cita as três perguntas que Gauguin escreve no mural:
Quem somos? Donde vimos? Para onde vamos?; e diz que vai tentar responder à terceira pergunta.

2. Wright lembra o “progresso” dos “estrondos” a propósito da pólvora: do foguete ao canhão e por ali fora até à bomba atómica, capaz de estourar o mundo e o progresso. “A tecnologia é viciante. O progresso material cria problemas que são – ou parecem ser – solúveis apenas com mais progresso. Também aqui, o demónio está na escala: um bom estouro pode ser útil; um estouro melhor pode acabar com o mundo.” O mesmo quando o caçador passa a matar 200 mamutes – levando a manada inteira a cair de um penhasco –: demasiado progresso!

4. Wright lembra também como o colapso da União Soviética levou algumas pessoas – um dos mais célebres é Fukuyama, um “pensador” sobrevalorizado – a concluir que o capitalismo e a democracia eram o fim da História.

5. Mas Wright afinal responde às duas primeiras perguntas: 1) somos macacos; 2) vimos de África. Diferentemente do que se passa com os macacos, nos últimos 3 milhões de anos temos sido moldados cada vez mais pela natureza e menos pela cultura. Wright introduz o conceito de “armadilha do progresso”, explicando-a a partir da bomba atómica que, representando uma progressão lógica da seta e da bala, se tornou “a primeira tecnologia a ameaçar a nossa espécie inteira com a extinção”. No capítulo intitulado “A grande experiência”, Wright propõe-se ver como o aperfeiçoamento dos métodos de caça “terminou com a antiga Idade da Pedra e como a fuga dessa armadilha, com a invenção da lavoura, levou à nossa maior experiência: a civilização mundial”.

7. Durante a Antiga Idade da Pedra (que começou há cerca de 3 milhões de anos e terminou há apenas 12 mil anos, quando os gelos se retraíram para os pólos e cordilheiras), há cerca de 15 mil anos, a Humanidade atingira todos os continentes, com excepção da Antárctica, fazendo a caça grossa escassear. Mamutes e rinocerontes acabariam por desaparecer da Europa e da Ásia, camelos e bisontes gigantes extinguem-se nas Américas, um rasto de extinção que “segue o Homo Sapiens à volta do mundo.” E o que se passa com a caça é isto: “A perfeição dos métodos de caça determinou o fim da caça como modo de vida. Carne acessível queria dizer mais bebés. Mais bebés queria dizer mais caçadores. Muitos caçadores queria dizer menos caça disponível (...) e assim acabamos por exaurir a terra com os nossos banquetes móveis.” Já Woody Allen dizia: o nosso mundo é um vasto restaurante.

9. Com a Revolução Neolítica, ou Agrícola, subiu-se a fasquia. Os recolectores repararam que as sementes acidentalmente caídas no solo germinavam no ano seguinte. A agricultura desenvolveu-se independentemente e ao mesmo tempo no Médio Oriente, no Oriente, na Mesoamérica (México e regiões vizinhas da América Central) e na América do Sul, entre outras áreas menos importantes.

10. Há cerca de 3 mil anos, a civilização tinha crescido em pelo menos sete locais: Mesopotâmia, Egipto, Mediterrâneo, Índia, China, México e Peru, o que aponta para a seguinte conclusão: “Dadas certas condições gerais, em toda a parte as sociedades humanas caminham para uma maior dimensão e complexidade, e também para uma maior pressão ambiental.”

11. Wright explica como os homens foram obrigados a deixar o Crescente Fértil – florestas destruídas por excesso de queimadas e pelos fornos para fazer cal e estuque, destruição das pastagens pelas cabras – e a procurar um segundo paraíso mais abaixo, na Mesopotâmia.

12. Conta-se como os habitantes da Ilha da Páscoa deitaram abaixo todas as árvores e como “a palavra para madeira, rakau, se tornou a mais preciosa da sua língua”; e como, antes (em 2000 a.c.), a terra onde viviam os Sumérios se tornara branca, por causa do sal – os rios lavam o sal das rochas e da terra e levam-no para o mar “mas quando as pessoas desviam a água para terras áridas a maior parte evapora-se e o sal fica.” Wright percorre o “colapso interno” de Roma e dos Maias e analisa as situações mais “resistentes” da China e do Egipto.

13. A invenção da agricultura não resolveu o problema alimentar por duas ordens de razões: a) biológica: “a população cresce até atingir os limites do fornecimento de alimentos”; b) social: todas as civilizações se tornam hierarquizadas e a concentração no topo faz com que não haja o suficiente “para dar a volta.”

14. As notas de rodapé, que são centenas e aparecem no fim do livro, estão quase todas trocadas. É o que dá facilitar, em vez de comprar a versão original.


Rui Costa

ASSALTO AO TESOURO DE MADAME MM /33


Jorge Aguiar Oliveira

27.10.08

TELEJORNAL


Um presidente da república em minúsculas. Gostava mais dele quando estava sempre calado. Assim que abre a boca, sai asneira. Mais valia emudecer de vez. Uma oposição sem líder, um líder sem oposição. O Rui diz que a Ferreira Leite foi um erro de casting. Inclino-me mais para que o erro de casting tenha sido Portugal. 34 anos de democracia a sermos governados por uma corja de imbecis pendurados em auto-estradas, portáteis minúsculos, diálogos surdos, anedotas, fotografias históricas que hão-de um dia ser a vergonha do nosso passado. Os livros de poesia da Ana Hatherly estavam arrumados na estante da poesia estrangeira. Andamos tão desanimados que até o que temos de bom julgamos vindo lá de fora. Este país é pindérico, passa a vida a passar ao lado de uma grande carreira, este país é como a Raposo no lugar do pendura, toda covinhas no rosto enquanto predispõe as pernas ao gozo de um empresário que invista nela pelo menos tanto quanto investiu nos botões de punho e no BM topo de gama. Andamos todos desgraçadamente a pagar os abusos da filha da putice que nos governa. E de olhos vendados, a justiça espreita pela greta dissimulada porque convém estar atento a quem merece alguma atençãozinha. País diminutivo, país saloiamente assoberbado perante quem pouco mais tem que o corpo que traz na roupa. As ruas de Lisboa cheias de indigentes e putas muitas a cada esquina. Não há pretos no Porto? Há quem faça o trabalho por eles. Cosmopolitismos miseráveis, nem vê-los. Prescindo. Prefiro o tédio da dignidade ao espectáculo miserável da exploração. E na rádio tem razão o humorista quando diz: um grupo de pais reuniu-se à porta da escola reivindicando o direito a professores disponíveis para levar porrada dos alunos. Valha-me a Matilde e o seu primeiro dente a abanar. Era mesmo disto que este país precisava, de uma dentadura nova.

APRENDER A CONTAR #33

TRÊS COMO TANTAS

O homem caminhava três passos à frente da mulher. Parava, voltava-se. Ela parava também. O homem punha o dedo no ar, invectivava-a. A mulher, com os olhos nele, esperava, pacientemente, que o homem acabasse. Mas o homem não se mostrava disposto a acabar. Continuava a ralhar-lhe como se não tivesse fim o ressentimento que contra ela acumulara ao longo dos anos, de toda uma vida, afinal, de desencontros. Teria sido alguma vez digno da sua afeição aquele homem, ali, de dedo no ar, a ralhar, a ralhar?, pensava a mulher. Ou nem tanto pensava. Sobre que ralhava o homem, afinal? Difícil perceber. Era uma mistura de roupa por engomar com infidelidades antigas.

*

Mariana pregava o botão na camisa e podia ver-se que o fazia com aquela ponta de que as mães põem, por exemplo, no pentear dos filhos. Adivinhavam-se-lhe nos ademanes um propósito: quero que o que é meu pareça bem ou, pelo menos, não faça má figura diante dos outros. Donde é que vinha essa impressão? De gestos indefinidos, mal esboçados, que eram como carícias arrependidas a meio do caminho, como gestos de ternura que, por vontade dela, não chegassem ao destinatário. Vítor compreendia-o e sentia-se triste de morrer. Não gostava de Mariana a ponto de se juntar com ela. Antecipadamente, a camisa ficava-lhe apertada no pescoço.

*

No dia do seu casamento Virgínia foi feliz. Via realizado o seu desejo de deixar de viver com os pais, ia passar a lua-de-mel ao Algarve, região de que tanto gostava, podia comer um quilo de sorvete de morango, que ninguém ralharia com ela.
Trinta anos depois, da luta de mel a lembrança mais forte e sempre evocada era o desarranjo intestinal que não digo um quilo de sorvete de morango, mas quase um quilo, lhe provocara.

Alexandre O’Neill (1924-1986), Uma Coisa em Forma de Assim, Presença, p. 190, 1985.

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26.10.08

ASSALTO AO TESOURO DE MADAME MM /32




Jorge Aguiar Oliveira

APRENDER A CONTAR #32

HORÁRIO E TRABALHO

Um amigo, diplomata brasileiro, foi colocado na Embaixada do Brasil na Holanda. Chegou à noite e, logo na manhã seguinte, telefonou para a Embaixada para combinar com o Embaixador a sua apresentação. Atendeu o porteiro, um português imigrado que assegurava a guarda daquela casa.
O diplomata perguntou:
― O Senhor Embaixador está?
― O Senhor Embaixador não está.
E, como ele sabia como se compunha o quadro da Embaixada foi perguntando, um por um, pelos vários titulares. Não estava nenhum. Admirado perguntou:
― Então, de manhã não trabalham?
Resposta do porteiro:
― Não. De manhã não vêm. A tarde é que não trabalham.

António Alçada Baptista (1927), A Pesca à Linha – Algumas Memórias, Presença, p. 148, Janeiro de 1998.


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25.10.08

LABIRINTO #29

Tríptico, óleo s/ tela, 70x180cm, 2008

Maria João

23.10.08

ASSALTO AO TESOURO DE MADAME MM /31


Jorge Aguiar Oliveira

APRENDER A CONTAR #31

VIDA E MILAGRES DE PÁPÁRIKÁSS,
BASTARDO DO IMPERADOR

Era uma vez uma grande boa vontade que se pôs a correr mundo e que no gastar dos sapatos daqueles dias se fez tão pequenina que cabia em qualquer bolso. O crescimento definitivo foi numa quarta-feira de Primavera, dia em que a meteram na parte de dentro de umas calças e a embarcaram para o México. No México só há polícias sinaleiros baixinhos e adolescentes de olhos encarnados, sempre a bocejar, e a dizer de hora a hora a palavra: cabana, de forma que a boa vontade não sabia o que havia de fazer.
Para ir ganhando tempo, resolveu montar uma indústria chapeleira, com a qual inundou o mercado. Como é natural, as cabeças andavam todas contentes, de trás para diante e de diante para trás, o que as fazia produzir um som comprido, em forma de enseada, que os músicos iam recolhendo para as suas óperas. Dado o bom êxito inicial, a boa vontade não só se deixou cumprimentar, num estrado vindo da América, como estabeleceu ligações com Pápárikáss, homem muito odiado e sempre pelos casinos ―: aderiu à guerra que estalou naquele tempo, lançando de repente os célebres chapéus marca PERA, para abrigar generais. Estes, porém, dissolveram a empresa, sob a alegação seguinte: não está a acompanhar.
Solteiros de profissão e naturais de Sevilha, os criados revoltaram-se, mexendo muito uns nos outros e recusando-se a andar. O distúrbio custou duzentas mortes, um casino, a esposa de Pápárikáss (pendurada de uma janela a arder), onze bois do abastecimento, e a Sagrada Relíquia, que o inimigo apanhou comendo-a logo ali com um apetite enorme.
Então, como hoje, as ruas estavam cheias de desonestos, e uma canção acanalhada, francesa, La Petite Enorme, correu todos os bares, pondo em perigo fastios e governação. O sinal de acabar aqueles insucessos foi um ovo estrelado milagreiro, que não só deitava petróleo e carvão, quando ofendido, como sabia processos divinatórios de encontrar os ladrões naqueles sítios certos em que eles é raro estarem. Isso acabou de vez com a ameaça de distúrbio civil, coisa sempre de temer quando as guerras grandes acabam e os generais voltam para casa.
Comemorando a vitória, mandou o governo um grande Parque onde as crianças se arejavam imenso e cuspiam à vontade à vista de todos os peixes. Ao sábado, tocava a música, e apareciam mãos por todos os lados, o que originou um desporto bastante original: o sape-gato-codorniz-galinha. Era assim: uma enorme correnteza de mãos, formando meta. Com o sinal da partida iam todas por ali fora às trabuzanadas umas nas outras e a que chegava primeiro era separada do respectivo pulso, e enviada para França. Nunca mais se sabia dela e os prémios eram distribuídos por todos os assistentes que, em sinal de regozijo, comiam bacalhaus e prometiam novos formatos de mãos, para as competições seguintes.
Assim começa a história da boa vontade que embarcou para os brasis e lá montou indústria.


Mário Cesariny (1923-2006), Manual de Prestidigitação, Assírio & Alvim, pp. 151-152, Janeiro de 1981.


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ASSALTO AO TESOURO DE MADAME MM /30


Jorge Aguiar Oliveira

22.10.08

O MAIS IMPORTANTE NÃO É O MELHOR #1

O segundo inquirido pelo OLAM foi Luís Mourão, autor do weblog Manchas. Respostas curtas para explicações elípticas. Segundo o ensaísta, “Na tua face”, de Vergílio Ferreira, é o melhor livro de ficção portuguesa do século XX. Li, mas do mesmo autor prefiro o talvez mais consensual “Para Sempre”. Vale a pena recordar as palavras de Frederico Lourenço nas respostas ao mesmo inquérito: «Li muitas páginas de romances de Agustina Bessa-Luís com o entusiasmo arrebatado que nunca me suscitaram as leituras de Vergílio Ferreira (autor imensamente sobrevalorizado)». Já na poesia, Pessoa volta a marcar pontos com o heterónimo Álvaro de Campos. Todos os leitores de Pessoa têm um heterónimo preferido. O meu também é Álvaro de Campos. E Bernardo Soares, claro, se o considerarmos um heterónimo. Quanto à última questão, a tal, a resposta de Mourão parece-me algo evasiva: «Dizer do “melhor” faz-nos deslizar para o campo do subjectivo e do afectivo sem que sintamos que com isso cometemos qualquer crime “teórico”. Dizer do mais importante implica trabalhar no cânone. A esta distância, não acho que se consiga apontar “o mais importante”, mas apenas obras muito importantes em diferentes períodos (em que por acaso se incluem as duas que elegi como melhores)». Lá está o cânone, essa coisa determinada por não sei quem a partir de não sei que objectivos fundamentos.

LABIRINTO #28

Labirinto#28, óleo s/ tela, 120x100cm, 2008.

Maria João

APRENDER A CONTAR #30

A CAÇADA

A minha primeira caçada aos gambuzinos aconteceu pelos tempos em que eu andava ainda na escola. Convidaram-me e explicaram-me. Até me ofereceram o saco conveniente e necessário.
Excitado, preparei-me em casa. Treinei devidamente, emboscado atrás da porta, a tentar caçar experimentalmente o meu pai, que subia a escada. Pareceu-me que não gostou. Os pais, não é...?
Na noite da caçada, lá fomos. Eu entusiasmado, com a lanterna e o saco apropriado. E também a moca que estava atrás da porta, que à noite há ladrões, foi a justificação que me veio à cabeça no momento. Todos concordaram.
Mas não me venham dizer que não há gambuzinos. Apanhei três. Um deles parece-me que se chamava António André e ficou coxo. Ainda está, creio. Uma fractura excelente. Mesmo
pela rótula.
Tudo me leva a crer que a caça aos gambuzinos é realmente importante. Temos que apanhá-los. Temos mesmo. Seja lá como for.

Mário-Henrique Leiria (1923-1980), Novos Contos do Gin seguidos de algumas Fábulas do Próximo Futuro, Editorial Estampa, p. 79, 2.ª Edição, 1978.

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ASSALTO AO TESOURO DE MADAME MM /29


Jorge Aguiar Oliveira

21.10.08

APRENDER A CONTAR #29

SOBRE O LADO ESQUERDO

De vez em quando a insónia vibra com a nitidez dos sinos, dos cristais. E então, das duas uma: partem-se ou não se partem as cordas tensas da sua harpa insuportável.
No segundo caso, o homem que não dorme pensa: «o melhor é voltar-me para o lado esquerdo e assim, deslocando todo o peso do sangue sobre a metade mais gasta do meu corpo, esmagar o coração.»

Carlos de Oliveira (1921-1981), Trabalho Poético, Círculo de Leitores, p. 206, Abril de 2001.

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20.10.08

ASSALTO AO TESOURO DE MADAME MM /28


Jorge Aguiar Oliveira

APRENDER A CONTAR #28

MERA SUGESTÃO


Os meus amigos dizem-me que sou muito sugestionável. Acho que têm razão. Como argumento, acrescentam um pequeno episódio que me aconteceu na quinta-feira passada.
Nessa manhã, estava eu a ler uma história de terror, e, ainda que estivéssemos em pleno dia, fui sugestionado. A sugestão infundiu-me a ideia de que na cozinha havia um feroz assassino; e este feroz assassino, esgrimindo um enorme punhal, aguardava que eu entrasse na cozinha para se atirar a mim e cravar-me a faca nas costas. De modo que, apesar de eu estar sentado em frente à porta da cozinha e ninguém poder ter entrado nela sem que eu visse e de, excepto aquela porta, a cozinha não ter outro acesso; não obstante todos estes factos, eu, apesar de tudo, estava inteiramente convencido de que o assassino aguardava atrás da porta fechada.
Encontrava-me de tal maneira sugestionado que não me atrevia a entrar na cozinha. Isto preocupava-me pois aproximava-se a hora do almoço e seria imprescindível que eu entrasse na cozinha.
Tocou então a campainha.
— Entre! — gritei sem me levantar — Não está trancada.
Entrou o porteiro com duas ou três cartas.
— Tenho a perna dormente. — disse — Podia ir à cozinha e trazer-me um copo de água?
O porteiro disse «Claro», abriu a porta da cozinha e entrou. Ouvi um grito de dor e o ruído de um corpo que, ao cair, arrastava atrás de si pratos e garrafas. Então saltei da minha cadeira e fui à cozinha. O porteiro, com metade do corpo sobre a mesa e um enorme punhal cravado nas costas, jazia morto. Agora, já tranquilizado, pude comprovar que, realmente, não havia nenhum assassino na cozinha.
Tratava-se, como é óbvio, de um caso de mera sugestão.

Fernando Sorrentino (1942), Existe um homem que tem o costume de me dar com um guarda-chuva na cabeça, trad. António Ladeira/Hélder Semmedo, OVNI, p. 37, Outubro de 2006.

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19.10.08

ASSALTO AO TESOURO DE MADAME MM /27


Jorge Aguiar Oliveira

LE CLÉZIO TRADUZIDO POR HERBERTO HELDER

Volto a pegar em Poesia Toda, de Herberto Helder, por causa de A Faca Não Corta o Fogo. Possuo a edição de Novembro de 1990. Reparo que As Magias incluem um texto de J. M. G. Le Clézio, o mais recente Nobel da Literatura, mudado para português por Herberto. O texto intitula-se Um poema (Iniji) que não é como os outros. Deixo aqui os primeiros parágrafos:

Interrogamo-nos acerca da poesia? Desejaríamos saber o que pretende ela, aquilo que pretende de nós. É que muitas vezes não nos diz nada. Palavras, fragmentos de frases, balanceadas, hesitantes, versáteis, palavras que não conseguimos reter.
Refrões de cançonetas, talvez? Mas então onde está a música? Talvez músicas silenciosas, tacadas no fundo da água, a cem braças de profundidade.
Os outros poemas, todos os poemas célebres, organizados, compostos, exércitos em armas que marcham a passo certo. Não estamos lá quando passam. Viramos a cara, vamos procurar noutro lado. Em geral, quando passavam, esses grandes poemas, havia um extremo vazio, um intenso vazio (o medo, o cansaço), e era a ele que preferíamos.
Ou ainda outros poemas, que falavam de coisas graves, insultavam, blasfemavam. Faziam um grande barulho de trovão, e nós, pequenos homens fracos que não gostávamos de tempestades, metíamos a cabeça entre os ombros, à espera de que aquilo passasse. Os gritos e os insultos, não, isso não era para nós.
Cada vez mais poemas, sempre, nos livros. Fileiras de linhas, frases cortadas, em suspenso, nas páginas brancas... Mas olhávamos esse branco das páginas e, de longe, as cristas dos maciços verticais; árduas colinas de que não queríamos aproximar-nos, estavam bem onde estavam, de longe, ao longe.
Diziam coisas, esses poemas, e ao mesmo tempo não diziam nada. Palavras voltejantes, não iam a parte nenhuma, sem força, sem duração, sem memória, lidas vagamente, abandonadas depois. Criavam o seu próprio rumor, dispensando ouvidos, zumbir de abelhas invisíveis. Líamos aqui uma palavra, ali outra, e tínhamos dificuldade em ligá-las, pois eram palavras sem raízes, não viviam, pareciam conchas vazias; podia fazer-se com elas um colar.
Agora, depois de Iniji, já nos não interrogamos. Há uma certeza. Viu-se qualquer coisa, seguiu-se essa coisa, como se a gente estivesse a fazê-la, como se tivesse encontrado ouvidos para escutar a música do fundo da água.

O MAIS IMPORTANTE NÃO É O MELHOR

Através do A Terceira Noite, fico a saber de um inquérito, dirigido a “escritores, críticos e jornalistas da área da cultura”, sobre os melhores livros da literatura portuguesa do século passado. Os resultados poderão/deverão ser acompanhados no weblog Os Livros Ardem Mal. O primeiro a responder foi Frederico Lourenço, entre outras coisas tradutor de Poesia Grega de Álcman a Teócrito. Para Lourenço o melhor livro de ficção publicado em Portugal no século XX foi A Ilustre Casa de Ramires, de Eça de Queirós. Nos parágrafos onde se explica a escolha, podemos ler o seguinte: «Por muito que tente, não consigo, de facto, entusiasmar-me com a ficção portuguesa. Claro que há livros que li com admiração: O Livro do Desassossego (Fernando Pessoa), Sinais de Fogo (Jorge de Sena), Finisterra (Carlos de Oliveira). (…) Li muitas páginas de romances de Agustina Bessa-Luís com o entusiasmo arrebatado que nunca me suscitaram as leituras de Vergílio Ferreira (autor imensamente sobrevalorizado). Mas haverá um romance de Agustina que funcione em pleno como “livro”, no sentido em que aplico esse termo à Ilustre Casa de Ramires? Duvido». Não concordando com tudo o que afirma Frederico Lourenço, nomeadamente com o “desprezo” declarado pela obra de Vergílio Ferreira, aprecio muito esta clareza de ideias. O livro de poesia portuguesa escolhido foi Geografia, de Sophia de Mello Breyner Andresen: «É para mim o melhor livro de poesia portuguesa do século XX pela simples razão de que nenhum outro livro me tem dado tanto prazer e tanta felicidade ao longo de vinte e cinco anos de releitura continuada». Está explicado. No entanto, os mestres da tertúlia no Café-Teatro do TAGV gostam de complicar as coisas. Guardam uma última pergunta na manga. Pergunta traiçoeira, manhosa, tipicamente académica. E a pergunta é:

Se a pergunta não fosse «qual o melhor» mas sim «qual o mais importante», as suas respostas seriam as mesmas ou seriam diferentes? Em quê, no segundo caso?

Esta distinção entre melhor e mais importante é capciosa, porque legitima uma hierarquização objectiva do gosto. O mais importante deixa de ser aquele que é melhor. Pressupõe-se que o melhor apenas o seja subjectivamente, para Frederico Lourenço ou para outro leitor qualquer, partindo do princípio, algo pretensioso, de que o mais importante resulte já de uma objectivação histórica, não contaminada pelo gosto individual, assente em pressupostos académicos, críticos, imunes à tal subjectividade dos juízos de gosto. Ora, isto não faz sentido algum. Os livros mais importantes só podem ser os melhores e os melhores só podem ser os mais importantes, pois os mais importantes são sempre os melhores para um alguém que existe, que é concreto, não para um alguém abstracto. De que me vale dizer que este ou aquele livro é o mais importante do século XX se ele não for o melhor para alguém? Quem determina a importância de um livro? Os leitores, os catedráticos, os próprios livros? Frederico Lourenço, imbuído de espírito académico, responde à questão sem sequer a questionar: «Aqui não tenho qualquer dúvida na resposta. O mais importante livro de ficção portuguesa do século XX é O Livro do Desassossego de Bernardo Soares; e o mais importante livro de poesia, a Mensagem de Fernando Pessoa (o único livro de poesia que Pessoa publicou em vida)». Gostava de saber por que não são estes mais importantes livros os melhores? Sendo Pessoa, como afirma Lourenço, o autor mais importante (e que de longe mais admira) da literatura portuguesa do século XX, o que justifica que os seus livros sejam relegados para segundo plano em prol de obras alheias? Por que não são estes livros admiráveis, fundamentais e importantes os melhores? Que obscuras e subliminares razões justificam que o mais importante não seja o melhor?